terça-feira, 6 de julho de 2010

A implantação do Museu Ferroviário de Indaiatuba

O conteúdo desta postagem foi produzido por Paulo Sérgio Barreto e foi apresentado no I Fórum Nacional de Conselhos de Patrimônio Cultural, realizado em Itajaí, Santa Catarina (Brasil) com o título de "A produção simbólica e interpretativa do patrimônio cultural e turístico na sociedade globalizada.∗"


RESUMO

 

Com o processo de globalização das últimas décadas, a cultura e o turismo veem sendo exploradas como áreas que suscitam interesse de grupos, empresas e setores públicos. A busca da identidade cultural, o sentindo de pertencimento e os vínculos sociais são postos em cena, como práticas de recuperação e de fomento do Patrimônio Cultural e Turístico, no posicionamento diferenciado e singular no interior da sociedade globalizada.

 

Para antropólogos e sociólogos dos “Estudos Culturais” a globalização redefine as identidades culturais em três níveis. No primeiro, se expressa pelo consumo padronizado e homogêneo assinalado pelas indústrias culturais e meios de comunicação de massa. O segundo, oposto ao primeiro, enfatiza a resistência cultural ao processo de globalização destacando as “raízes”, o lugar e suas idiossincrasias. E, um terceiro - intermediário dos dois anteriores – caracterizado pelo hibridismo cultural.

 

Em particular, o patrimônio cultural apropriado pelo turístico assinala novas práticas que dão visibilidade a lugares e grupos no processo de uma sociedade globalizada, ora como resistência e afirmação identitária e de preservação da memória, da história oral e das praticas cotidianas existente no acervo tangível e intangível de determinados patrimônios culturais e turísticos.

 

Neste sentido, serão apresentados o CD-rom sobre o Museu Multimídia da cidade de Valinhos – SP; o Cd-play sobre o Museu Ferroviário de Indaiatuba e o livro histórico sobre a cidade de Nova Odessa –SP. Estes trabalhos visaram resgatar e envolver determinados grupos de moradores das respectivas cidades com ênfase na busca de identidade, memória e de sentido de pertencimento aos lugares e aos seus patrimônios culturais.

 

Palavras Chaves: Patrimônio Cultural, Turismo e Identidade, Cultural e Globalização.

 


Com o processo de globalização, nas últimas décadas, a cultura e o turismo vêem sendo exploradas como áreas que suscitam interesses de grupos, empresas e setores públicos. A busca da identidade cultural, o sentindo de pertencimento e os vínculos culturais e sociais são postos em cena como práticas de recuperação e de fomento do Patrimônio Cultural e Turístico, no posicionamento diferenciado e singular no interior desta fase do capitalismo.

 

A globalização é um processo presente e atuante, favorecendo o mercado e impondo uma lógica social e econômica, atualmente, no interior da perspectiva desigual, excludente e de apartação social e, mesmo, de conexão e de diluição das fronteiras nacionais, através das novas tecnologias baseadas na informática, nos meios de comunicação de massa e nas industriais culturais.


Para antropólogos e sociólogos dos “Estudos Culturais”, a globalização redefine as identidades culturais em três níveis. No primeiro, se expressa pelo consumo padronizado e homogêneo assinalado pelas indústrias culturais e pelos meios de comunicação de massa. O segundo - oposto ao primeiro, explicita a resistência cultural ao processo de globalizando enfatizando as “raízes”, o lugar, o local e suas diossincrasias. E, uma terceira identidade cultural – intermediária, das duas anteriores – caracteriza-se pelo hibridismo cultural; uma saída cultural que chama o local e o global enfatizando qualidades distintas que demarcam as diferenças, as singularidades e as particularidades do patrimônio cultural de determinados grupos, comunidades, cidades e regiões.

 

Hall propõe uma compreensão articulada entre identidade cultural e globalização (2). Ora pelo processo de padronização do consumo, gosto e estilo de vida; ora por um certo hibridismo cultural havendo uma ressignificação e incorporação do local ao processo de globalização, respeitando-se as lógicas identitárias de grupos, povos e nações e, por fim, uma identidade construída pela resistência ao mundo globalizado. A questão fundamental para o autor é o sentido de tradução de como o processo de globalização é assimilado e questionado por indivíduos, grupos, classes sociais e etnias.

 

Neste sentido, muito do que é proposto enquanto “desenvolvimento” e “progresso” secreta uma leitura de mundo – uma ideologia enquanto falsa consciência – que pensa, por exemplo, o “produto” turístico e cultural a partir dos pressupostos do mercado globalizado e busca reproduzir essa lógica identitária da uniformização e da padronização do consumo, voltado exclusivamente para o mercado, dotado de “excelência”, “eficácia” e “padrão” de consumo, enquanto pré-requisitos necessários e naturais para povos, grupos, classes sociais e etnias etc.


O processo de globalização, se por um lado, afeta a todos tendendo a uniformização, cria também espaços de questionamentos e de visibilidade para o diferente e para a alteridade. E o patrimônio cultural e turístico, assim como os meios de comunicação, podem ter uma tendência de redefinir, ressignificar e fragmentar identidades, segmentando-as e nivelando-as para o consumo cultural, do lazer e das viagens. Como pode viabilizar o diálogo, o reconhecimento, a tradução e a compreensão do “outro” – em nós mesmos – com ética, cidadania e envolvimento sustentável e participativo junto às comunidades afetadas.

 

Em particular, o patrimônio cultural e turístico assinala novas práticas que dão visibilidade a lugares e grupos culturais no processo de uma sociedade globalizada. Ora enfatizando o consumo inclusive como forma de inserção e inclusão social de grupos sociais; ora como resistência e afirmação identitárias e de preservação da memória a partir da história oral, das práticas cotidianas tangíveis e intangíveis existentes nos patrimônios culturais e turísticos.

 

O processo de globalização, de um lado, aproxima o local ao global, através de novas tecnologias e pela circulação de produtos, bens e serviços estimulando o consumo e estilos de vida, em larga escala, dados através dos meios de comunicação e da propaganda. O que Ortiz captará como processo de mundialização da cultura (3). Por outro lado, aproxima o local pelas vias de acesso – em rede – onde a circulação de ideias, desejos de consumo, lugares e informações estão presentes no cotidiano. O lugar torna-se uma mercadoria para o turismo e para a cultura globalizada. As particularidades e as singularidades são atravessadas também, pelo processo de

mercantilização, quando estas são destituídas da participação dos atores sociais capazes de “pegar pela mão” as suas referências, seus imaginários, seus símbolos como práticas cotidianas na vida social. Mesmo no exercício da memória e da história, há a possibilidade das tradições serem “inventadas” com o intuito de mercantilizá-las, e, assim, em reafirma a cultura, o lugar e o cotidiano dos indivíduos e dos grupos sociais no mundo globalizado.

O presente trabalho pretende descrever 03 (três) experiências nas áreas de cultura e turismo em consonância ao que foi exposto acima. A implantação do Museu Multimídia de Valinhos – SP (1996); o Museu Ferroviário de Indaiatuba – SP (2004) e o livro histórico sobre a cidade de Nova Odessa – SP (2004). Estes trabalhos visaram resgatar e envolver determinados grupos de moradores, das respectivas cidades, com ênfase na busca de identidade, na memória e no sentido de pertencimento aos lugares e aos seus patrimônios culturais e turísticos.

 

A implantação do Museu Ferroviário de Indaiatuba – SP (2004).

 

A estratégia para a implantação do Museu ferroviário em Indaiatuba – SP consistiu-se em recuperar os depoimentos, as falas e as memórias dos ferroviários aposentados da extinta Estrada de Ferro Sorocabana. A partir destes depoimentos, estruturou-se à montagem do Museu Ferroviário levando em consideração o imaginário, as trajetórias familiares, profissionais e o universo dos ferroviários da antiga Sorocabana. No total, foram entrevistados 15 (quinze) ferroviários. Inicialmente, o trabalho consistiu em realizar entrevistas individuais e/ou em grupos, periódicas, registrando os depoimentos dos ferroviários com o auxílio de uma câmara de VHS, a partir de roteiros de perguntas semiabertas. Algumas entrevistas foram realizadas nas casas dos próprios ferroviários.

 

Outras numa escola pública, como uma sessão “terapêutica” com o grupo dos ferroviários e, mais voluntários e curiosos, durante oito (08) meses. A proposta metodológica era de confrontar as falas, as memórias, os sentimentos e as histórias particulares, entre os envolvidos, buscando mapear a trajetória de ingresso e a performance profissional dos ferroviários aposentados. Bem como, a partir das experiências e dos saberes visualizar o acervo e a montagem participativa do museu ferroviário.

 

A ênfase recaía na construção da identidade ferroviária marcada pelos percalços da sociedade brasileira, durante a segunda metade do século XX. Em particular, os ferroviários tinham uma trajetória comum de ingresso na Sorocabana.

 

Alguém da família ou conhecidos convidava o futuro ferroviário a ingressar na Companhia. Geralmente, estes ingressavam em plena adolescência e exerciam inicialmente atividade de aprendizes. Por lei, os adolescentes tinham restrições etárias para exercerem determinadas tarefas na Companhia Sorocabana. Mas a lei era burlada para garantir a vaga, o aprendizado e o reconhecimento do futuro trabalhador como alguém a ser incorporado como “ferroviário”. Estes teriam uma trajetória cotidiana e familiar assentada pelas constantes mudanças dos postos de trabalho e do lugar de moradia. Em virtude dessas mudanças, os ferroviários passavam alguns anos em determinadas comunidades, vivendo, nos idos dos anos 40 e 50, todas as dificuldades e carências próprias de uma Estação de Trem, no interior de uma cidadezinha qualquer, do Estado de São Paulo.

 

Eram comuns, nos depoimentos e nos relatos, as marcações das diferenças profissionais e de status entre os ferroviários. No imaginário popular, os ferroviários estavam associados aos maquinistas, aos chefes de estações e aos telegrafistas. Profissionais que compunham o universo dos escritórios, oficinas, locomotivas, plataformas e estações com os seus uniformes, objetos, código e linguagens próprias.

 

Havia outros profissionais. Alguns mesmos, estigmatizados pelos próprios colegas de trabalho pelo tipo de tarefa e pela rotina árdua, de sol-a-sol, estafante e invisível aos olhos dos moradores e dos usuários dos trens. Os profissionais, como, “a turma da manutenção”, eram àqueles ferroviários que não eram vistos pelos pares, como ferroviários. Mas “obreiros” que mantinham a rotina diária de andanças por quilômetros para ajustar, apertar, recolocar e refazer no lugar, os trilhos e os leitos defeituosos ou acidentados. E mesmo, havia disputas simbólicas e por prestígios entre os diversos ferroviários ligados as outras companhias, como entre a Paulista, a Mogiana etc.

Ser ferroviário era estar possuído de um reconhecido legitimo e eficaz que dotava o indivíduo de saberes, experiências e distinções sociais. Era para as moças solteiras, dos anos 30 a 50, um “bom partido”. O chefe de Estação compartilhava, junto com o padre, o delegado e o prefeito o exercício da autoridade e das prerrogativas públicas, dentro de uma sociedade limitada pelo machismo que socialmente reconhecia os mesmos, como possuidores de emblemas e de referencias profissionais que os diferenciava e os qualificava perante os outros.

 

Até os idos dos anos 60 e 70, os ferroviários eram considerados como uma categoria profissional possuidora de prestígios sociais, passaram desde então a serem considerados como uma profissão menor e destituída de espíritos aguerridos, emblemáticos e de distinção. Não resistindo às novas lógicas econômicas e sociais, a categoria profissional vai se proletarizando devido à ausência de investimentos e de ampliação da malha ferroviária pelas companhias privadas. A partir dos anos 50, ocorreu um processo de desqualificação deles, após a incorporação das companhias privadas pelo Estado e pelo advento das novas modalidades de lazer e de transporte individual, como o automóvel particular. Dos anos 70 para cá, começou um processo paulatino de sucateamento das malhas ferroviárias com o vandalismo e o abandono de algumas estações, trens, vagões e materiais de rodagem.

 

Concomitante a isso, os ferroviários são recolocados pelo Estado em funções que os desqualificaram mais ainda, ou, quando muitos, alguns, foram aposentados compulsoriamente. Alguns relatam que, os chefes de estações, tornaram-se “bedéis”, de escolas públicas, ou, mesmo, contínuos, perdidos numa repartição pública qualquer. Neste sentido os saberes, as experiências, as práticas de vida foram se perdendo e as frustrações, as descrenças e desencantos dominavam este pequeno grupo de aposentados.

 

A proposta do Museu era em trabalhar a identidade ferroviária buscando pelas falas, pelos objetos expostos e os painéis “plotados” recuperar a trajetória profissional e trabalhar com o imaginário, o simbólico e o patrimônio intangível que estão presentes nos indivíduos, grupos e comunidades. Ao mesmo tempo, categorizar um museu a partir de um fazer e de uma prática cotidiana que marcou, em particular, o Estado de São Paulo, com o advento do café, desde o século XIX até hoje.

 

Considerações finais

 

Pensar a produção do simbólico e do patrimônio cultural na sociedade atual é tentar redefinir os parâmetros de absorção, de tradução, de diluição e de perdas das referências e das identidades culturais que estão em constante processo de transformações e de mudanças. A lógica do capitalismo, na sua fase de globalização, incorpora o “outro” nos meandros do mercado redefinindo as relações sociais dentro de uma contradição entre o local e o global: ora acomodando essas contradições; ora forçando um processo de resistências, de hibridismos e de afirmações das identidades culturais ressaltando as singularidades e particularidades que atravessam os lugares e as interações entre indivíduos, grupos, classes sociais e etnias.

 

Nesta fase atual do capitalismo os lugares, os indivíduos, os grupos sociais vivem o processo acelerado de mudanças culturais e sociais afetando as categorias profissionais, as paisagens, as cidades, os espaços, as memórias e as identidades culturais. Este processo cria novas tradições e traduções que são negociadas numa escala cada vez mais mundializadas acenando para novos atores sociais que compreendem o mundo não só pelas amarras da comunidade, mas ainda, também, pelas amarras das novas tecnologias e do mercado criando assim novas solidariedades, algumas, infelizmente, marcadas por laços, de curto prazo, difusa, efêmera, descartável e volátil.

 

 


 

( (1) Paulo Sérgio Barreto é mestre em Sociologia da Cultura pela UNICAMP e Especialização em Ecoturismo - Senac. Além de Professor em Turismo, Arquitetura, Design e Comunicação Social montou, nos últimos anos, entre outros projetos, o Museu Multimídia da Prefeitura de Valinhos; o Memorial da Rigesa – Valinhos, Centro Cultural da Unilever em Vinhedo e o Museu Ferroviário em Indaiatuba etc. Coordena pesquisa e organiza e produz livros institucionais, cd-rom's e exposições temáticas na região de Campinas. Contatos: umpotlatch@yahoo.com.b

(2) HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, p. 35-75.

(3) ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. P.13-35.


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