segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

O vigário, o relógio e o sino

Texto de Francisco Nardy Filho*


O relógio da Matriz Nossa Senhora da Candelária de Indaiatuba era uma verdadeira maravilha, funcionava muito bem; contava as horas, não só indicando-as com os seus ponteiros, como assinalando-as com o bater do seu martelo no sino da grande torre - e não assinalava somente as horas, mas as meias horas e quartos.

Àquela hora, a antiga gente indaiatubana não necessitava de relógios para saber as horas, para servi-la lá estava o relógio da Matriz indicando-as com seus ponteiros e batendo-as no sino.

O vigário Padre Antonio Cassemiro da Costa Roriz julgava que aquele bater constante do martelo no relógio no sino acabaria por rachá-lo e depois, como conseguiria ele um sino assim tão bom para a sua Matriz? 

Ordenou então ao Sacristão que amarrasse o martelo do relógio para que então não mais batesse no sino, o que o Sacristão prontamente executou.

E assim passou um dia, passou outro, sem que o relógio batesse as horas, o que causou estranheza àquela boa gente, pois esse relógio jamais faltara em bater as horas. 

Alguns bons indaiatubanos foram se entender com o vigário, se prontificando a concorrerem com o que fosse necessário para o concerto do relógio, a fim de que este continuasse a bater, como vinha fazendo há tantos anos.

Agradeceu-lhes o Padre Antonio Cassemiro esse oferecimento e lhes declarou que não havia desarranjo algum no relógio e que fora ele, temendo que o bater constante do martelo do relógio no sino viesse a rachá-lo, e depois quem daria um sino assim tão bom para a Matriz? Mandara ele amarrar o martelo do relógio.

Alguns desses bons indaiatubanos aceitaram como bem acertado o que o vigário fizera, outros não; e para estes o motivo pelo qual o vigário assim procedera era o seguinte: o padre Antonio Cassemiro embora já avançado em anos, gostava de orelhar a sota (1) e de uma patuscada e, assim, quando o rano verde ia parte animada a festança, atrasava uma hora seu relógio e, quando algum amigo escrupuloso vinha lhe dizer que faltavam poucos minutos para a meia-noite, ele calmamente tirava o relógio do bolso e dizia: "cá no meu relógio ainda faltam tantos minutos para as onze e é por este que me regulo". 

E continuava, calmamente, a apreciar a funçonata ou a orelhar a sota. Quando o relógio da Matriz dava as doze batidas da meia-noite, percebia ele, entre os presentes risotos e cochichos, que ele bem sabia o que significava e bem o aborrecia; e que foi para se livrar desses aborrecimentos que ordenara ao Sacristão amarrar o martelo do sino, pois assim, sem essas badaladas, à meia-noite passaria despercebida - assim diziam os velhos indaiatubanos. Se verdade, não sei.

Passados os dias sem que o relógio batesse as horas, alguns indaiatubanos dirigiram uma representação à Câmara de Itu para que esta ordenasse ao vigário Antonio Cassemiro a fazer com que o relógio voltasse a bater as horas.

Recebendo a Câmara de Itu essa representação, ficou sem saber como proceder. Primeiro, porque Indaiatuba já tinha sua Câmara e era à essa que deveriam se dirigir e não a Itu e, em segundo porque não sabiam se tinham ou não poder para obrigarem os senhores vigários a fazerem com que os relógios de suas igrejas batessem as horas. Era verdade serem as Câmaras que atestavam a boa conduta dos vigários no desempenho de seus deveres, para que com esse atestado o recebesse, suas côngruas; todavia quem deveria atestar a boa conduta do vigário de Indaiatuba era a Câmara dessa Vila e não a de Itu.

E, nesse embaraço, sem saber como proceder, resolveu a Câmara de Itu enviar a representação dos indaiatubanos ao Presidente da Província para que este deliberasse, e assim o fez.

Dias depois recebeu a câmara um ofício da Presidência da Província determinando que a Câmara ordenasse ao vigário de Indaiatuba a fazer com que o relógio da Matriz continuasse a bater as horas.

A Câmara de Itu enviou cópia do mesmo ao vigário de Indaiatuba. 

Recebendo cópia desse ofício, o Padre Antonio Cassemiro coçou a nuca, sorveu uma boa pitada de rapé e disse lá com os seus botões: "o Senhor governo quer que o martelo do relógio continue a bater no sino, pois que bata, e se este rachar, ele que nos dê outro".

E o relógio da Matriz Nossa Senhora da Candelária de Indaiatuba voltou a bater as horas.

Muita coisa tenho ouvido dos velhos indaiatubanos com referência ao Padre Antonio Cassemiro, alguns até o desabonaram, creio, todavia, que há muita fantasia, pois o Padre Antonio Cassemiro foi por três vezes vigário de Indaiatuba, onde residiu por muitos anos e gozou de estima.


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1) "Orelhar a sota" é um termo usado por Machado de Assis, e significa jogar cartas, jogar baralho.

2) Texto reproduzido do acervo do Museu Republicando de Itu - USP, originalmente divulgado pela Dra. Anicleide Zequini aqui

3) Se você gostou deste texto, também poderá gostar deste: https://historiadeindaiatuba.blogspot.com/2011/11/o-tempo-abstrato-nosso-patrimonio-e-o.html

4) Para que você possa ter a percepção da temporalidade na qual essa narrativa aconteceu, considere que o Padre Antonio Cassemiro da Costa Roriz foi o segundo pároco da Igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária e ficou entre 05/09/1841 à 1884.

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