O horizonte parece sombrio.
O ensino da história foi excluída do rol de disciplinas obrigatórias no Ensino Médio, pela Medida Provisória 746/16. Isso significa menos emprego para muitos de nós, que estão se formando. A esse apagamento da disciplina, soma-se, também, a menor – cada vez menor – visibilidade das Ciências Humanas. Afinal, para que serviram, se os grandes debates que atravessaram o século XX não explicaram genocídios e guerras, não impediram a desigualdade, nem a fome ou, nos regimes democráticos, não promoveram a cidadania plena: aquela que agencia educação, saúde e emprego? Sem função aparente, num mundo funcional, elas parecem não ser necessárias.
Mudanças de conteúdos para o ensino médio têm sido feitas em toda a parte. Nos países que tiveram colônias e que hoje recebem imigrantes, o esforço de explicar os processos de colonização tem por objetivo integrar as populações estrangeiras. Tal agenda fez “cair fora” centenas de especialistas em áreas específicas. A Antiguidade greco-romana, para ficar num exemplo. Até os estudos sobre “alteridade”, que tiveram no recém-falecido Todorov seu ícone, não diminuem a xenofobia e o racismo na “civilizada” União Européia. Termos como “nação” e “fronteiras”, que justificaram barbáries, voltaram ao vocabulário dos políticos. E o que dizer do impacto das comunicações, da tecnologia e da mundialização no contexto da Educação? Tudo isso joga a História num balaio de interrogações, quando o que buscamos, num horizonte instável, são respostas.
A nossa disciplina, como tudo, aliás, se transforma. Ela é dinâmica. E penso, que essa talvez seja a hora de meditarmos um pouco sobre a relação entre o “fazer história” ou lecionar história, com o mundo em que vivemos: o “mundo liquido”, como quer Zygmunt Bauman. Ou a “era das incertezas” na expressão de Edgard Morin. Não é fácil. E, a essa altura, a diminuição do espaço dos historiadores no Ensino Médio parece assustador. Como reagir? O historiador francês, Pierre Nora, já nos definiu como sendo os “profissionais do entusiasmo”. Vamos colocar, então, nosso entusiasmo a favor das mudanças.
Ora, sabemos que nosso ofício evoluiu, baseado numa lógica de profissionalização cujo objetivo é contribuir ao sucesso educativo do maior número possível de pessoas, usando, para isso, competências e saberes específicos. Num país grande e desigual, essa evolução não foi a mesma em toda a parte. Mas, correspondeu, sim, a realidades complexas num sistema de ensino que até hoje não se consolidou. E que, inacabado, está “em crise” há tempos. Quem não houve falar em “crise na Educação”?
Vivemos, simultaneamente, várias crises endógenas. Uma nasce do desequilíbrio provocado pelas dúvidas que emergiram na historiografia, com o fim das certezas do marxismo, as mudanças e questionamentos sobre as narrativas históricas, o papel da memória, a rapidez com que conceitos são criados e abandonados, o relativismo nas interpretações. Outra se alimenta das dúvidas que a modernidade introduziu por meio de “tecnologias”: arquivos digitalizados, pesquisa através da internet em lugar dos velhos e poeirentos arquivos, infinitas possibilidades de fontes, sobretudo no campo das comunicações: fotografia, cinema, música, ao alcance cada vez mais rápido do pesquisador, submergindo-o. E outra ainda, é proveniente das contradições sociais: alunos desigualmente interessados ou preparados, dependendo do nível de educação que receberam com suas dúvidas, dificuldades e muitas vezes, desinteresse, produto da massificação do ensino. Ora, precisamos dar conta de tantas tensões, não com o objetivo de restaurar uma ordem antiga, idealizada. Mas, tendo em vista uma adaptação às novas realidades, graças à inovação, a renovação e tudo mais que encarne o progresso.
Sem nenhum cenário pré-definido, acredito que talvez seja esse o momento para pensarmos como sair de rotinas petrificadas, para trilhar um cenário híbrido e rico de contradições que nos obrigará, também, a reconstruir nossa identidade de professores de História do Brasil. Se há uma demanda forte por melhor escolarização em nosso país, vamos colaborar oferecendo um nível de estudos cada vez melhor. Se há aceleração e transformação tanto da sociedade quanto da cultura, façamos o ensino e a produção de História, acompanhá-las. Uma vez que a mudança está aí, nada de nostalgia do passado idealizado, quando a escola distribuía saberes codificados. Aproveitemos para criar mecanismos que combatam a desigualdade, oferecendo aos nossos alunos uma ponte com as novas tecnologias e essa palavra detestada: o mercado. Sim, estou falando em mercado de trabalho, pois é para lá que eles irão. Como fazer isso? Não tenho receita certa, mas algumas intuições. Teremos que passar por um processo de aprendizado coletivo, sem respostas ou garantias definitivas. Teremos que assumir a incerteza e a ambiguidade diante de um cenário que desconhecemos. Teremos um destino, mas, caminharemos sem mapa ou bússola.
Todos, porém, que já estivemos ou estamos em sala de aula, acumulamos alguma experiência e aprendemos a desconfiar das derivas autoritárias. Temos um objetivo, e, é em sua direção que iremos caminhar: desenvolver pessoas autônomas e livres. E temos matéria para fazê-lo, respondendo de maneira inventiva às mudanças impostas. Tudo, sem esquecer o otimismo e o bom-humor, inoxidáveis frente às incertezas, ao rancor ou ao pessimismo irracional que tais mudanças costumam criar. Sejamos, sim, em tempos sombrios, os “profissionais do entusiasmo”.
- Texto de Mary del Priore.
- Publicado orginalmente aqui.
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