Homenagem ao meu pai, Agenor Tachinardi
Meu pai, meu companheiro! Memórias de infância
Por Maria Helena Tachinardi
Maio de 2017
Meu pai e o rio Jundiaí se entendiam muito bem. A alma do rio, plácida e
acolhedora, compreendia aquele homem afeito a pescaria aos domingos, nas
tardes relaxantes dentro da mata fresca e perfumada, ensombreando o leito
cristalino e silencioso do Jundiaí. Eram ambos criaturas de Itaici, o bairro que, até
certo ponto, disputava fama com Indaiatuba, sobretudo pelo forte papel social da
Estrada de Ferro Sorocabana: por aquele entroncamento passavam diariamente
12 trens de passageiros.
As tardes de domingo com meu pai à beira do Jundiaí são inesquecíveis. Eu tinha
seis, sete, oito anos ... e o acompanhava na preparação das iscas de miolo de pão
e minhoca e no cuidado com as varas. Levávamos de volta para casa o samburá
cheio de corimbatás, lambaris, traíras, bagres e cascudos.
Quando eu nasci, meu pai tinha 31 anos, e certamente já pescava no rio Jundiaí,
na altura do “rio cortado”. Hoje, só posso imaginá-lo sorridente, naquela época,
praticando o lazer de que mais gostava. Meu pai me ninou quando eu era
pequenina e mal respondia pelo apelido de “Maiena” dado por minha irmã, Vera.
Papel social igualmente importante em Itaici, semelhante ao da estação da
Sorocabana, teve meu pai com seus dois estabelecimentos comerciais que o
tornaram referência na região: o Bar e Sorveteria Itaici e o Armazém Santo
Antonio. Do primeiro, em frente à estação, lembro-me de um entra-e-sai de
passageiros apressados que tinham os minutos contados para descerem do
vagão, atravessarem a rua e serem atendidos por meu pai, sua mãe, Emma, por
suas irmãs, Laura, Zulmira e Noêmia, e por minha mãe, Adalgisa. Vera e eu,
tiquinhos de gente, nos misturávamos aos fregueses, que já nos conheciam, o que
tornava aquele ambiente comercial uma extensão da casa onde todos morávamos,
o casarão que, pela tradição oral, teria sido frequentado por Dom Pedro I, pois
Itaici estava na rota da histórica Itu, para onde o imperador viajava a cavalo. O
imóvel teria sido de propriedade do Chico Itaici, outro personagem da história local. Nossa família providenciava tudo para satisfazer o apetite dos famintos
passageiros: bolos, sanduíches, café com leite, sorvetes de massa e de palito. O
empreendimento familiar prosperou, mas meu pai trabalhou tanto naqueles
balcões que adoeceu: estresse, foi o que me lembro terem dito sobre o cansaço
extremo que o acometeu. Esgotamento nervoso. Foi por isso que nos mudamos
para a rua Candelária, em Indaiatuba, quase esquina com a rua 24 de maio, para
ele descansar, mas para quem tinha nas veias o sangue de comerciante era difícil
se afastar das atividades de comprar, vender, servir. Assim, meu pai, de dono de
bar passou, no final da década de 1950, a vendedor do Café Interior, de
propriedade de Roque Frias. Eu o ajudava a anotar os pedidos em armazéns,
vendas e bares da região, e depois voltávamos para a entrega da mercadoria.
Nosso carro era um Chevrolet, o “verdinho” da família, que cheirava a café.
Foi por essa época que eu adoeci. Aos seis anos, tive febre reumática, sequela de
uma infecção na garganta. Essa doença, provocada pela bactéria streptococcus,
pode afetar o coração, mas, felizmente, e com a ajuda do meu pai, me livrei de
consequências mais graves. Tive de abandonar o primeiro ano, mas como eu
gostava muito da escola, minha mãe, que lecionava no Grupo Escolar Randolfo
Moreira Fernandes, apanhava a lição com a dona Landinha e a levava para casa
para eu estudar. Assim, não perdi o ano.
A doença me deixou quase paralítica: eu tinha muitas dores nas articulações,
estava impossibilitada de subir um pequeno degrau e os dedos das mãos ficaram
encolhidos. Lembro-me de o médico ter dito aos meus pais que o pus estava
chegando ao coração e, se isso acontecesse, seria fatal. Assim, tomei muitas e
muitas doses de penicilina aplicadas por meu pai, quem, sem nunca ter feito curso
de técnica de enfermagem, virava-se muito bem nessa prática. Depois de
debelada a infecção, fui submetida a uma cirurgia para retirada das amídalas, em
Campinas. Fiquei tão fraca, tão debilitada, que meu pai me ajudava a caminhar,
era quase um reaprendizado desse exercício. Em Itaici, íamos de mãos dadas até
a caixa d’água que abastecia a Maria-Fumaça, perto da ponte, onde o trem seguia
rumo a Indaiatuba e Itu. Meu pai assava pedaços de carne, dos quais eu apenas
sorvia o suco para me fortalecer. A lembrança dos meus seis anos é da doença, de
dores, de tombos, de perninhas fracas.
De Indaiatuba retornamos para Itaici, onde meu pai, irresistivelmente, voltou para o
balcão. Ele era, então, na década de 1960, o dono do Armazém Santo Antonio, à
frente do qual se manteve até poucos anos antes de sua morte, em junho de 2004.
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No total, Agenor Tachinardi esteve atuante nos balcões de seus estabelecimentos,
em Itaici, por mais de 50 anos, período em que poucas vezes saiu para descansar.
Quando isso acontecia era para pescar no rio Diamante, em Mato Grosso do Sul,
com amigos.
No Armazém Santo Antonio, de secos e molhados, meu pai atendeu toda a
“turma”, isto é, os ferroviários que moravam nas casas ao redor da estação. Eles
compravam fiado e pagavam as despesas mensalmente, quando passava o trem
pagador. Nesse dia, as cadernetas precisavam estar atualizadas. Eu o ajudava
nessa atividade. Meu pai fazia contas de cabeça e me ensinou a somar
rapidamente, sem auxílio de calculadora, que nem fazia parte do cotidiano dos
comerciantes à época. Tínhamos uma linda máquina registradora no armazém,
moedor de café, máquina de cortar frios, balança no balcão e no chão, para pesar
mercadorias pesadas, como sacos de cereais.
O armazém do Agenor era completo e nele também trabalhou toda a família. Era
separado da casa em que vivemos, na rua Joaquim Pedroso de Alvarenga, por
uma porta. Junto a ela, ficava o telefone de parede, linha de número 23 muito
usada para emergências médicas. O armazém era ponto de referência, uma
espécie de posto comunitário, para onde moradores acorriam para pedir ajuda –
meu pai teve algumas kombis que levaram doentes para serem atendidos em
Indaiatuba. Agenor também aplicava injeções, e prestava todos esses serviços
com a paciência de um comerciante que busca entender a alma de cada freguês.
Atendeu muitos bêbados e figuras folclóricas do bairro, perdoou dívidas, nunca
deixou faltar mercadoria e encarou por décadas uma rotina prazerosa para ele:
levantar-se cedo, buscar pão para atender os fregueses e, sem descanso,
atravessar o dia vendendo, recebendo viajantes, caminhões de entrega, até perto
de 8 horas da noite. Certamente, foi ao mesmo tempo um comerciante como
poucos, marido, pai, farmacêutico, assistente social e animador cultural, pois
gostava de receber no armazém cantores de cururu e repentistas. O armazém era
também, aos domingos, ponto de encontro musical e de alegria.
Junto do armazém, por um tempo funcionou o açougue do meu avô Amadeu
Tachinardi, que também oferecia jogos como entretenimento aos homens de Itaici.
Ao complexo do armazém e açougue juntavam-se dois campos – um de malha e
outro de bocha, que meu avô cuidava como se fosse a sala da sua casa. Eu ia
com ele ao rio Jundiaí buscar areia fina e fresca carregada em uma carroça, para
completar o piso dos dois campos, “machucados” pelo arremesso de bolas de
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madeira lisas e riscadas e discos de metal. Depois de esparramar a areia,
aplainávamos a superfície e as canchas estavam prontas para as partidas. No
açougue, Amadeu produzia linguiça pura de porco, deliciosa, que fez fama junto
aos passageiros da Sorocabana.
Meu pai era um homem bonito, elegante, sorridente, capaz de falar linguagens
compreensíveis a iletrados e cultos. Ele completou o curso primário e não pode
prosseguir nos estudos. Formou as filhas e vibrou com as conquistas delas. Minha
irmã, Vera Lúcia, falecida em julho de 2016, foi educadora respeitada em
Indaiatuba, e supervisora de ensino. Sílvia Regina, minha irmã mais nova, é
psicóloga, e eu sou jornalista. Minha mãe, Adalgisa, com quem Agenor esteve
casado por mais de 50 anos, foi uma das professoras mais elogiadas na cidade.
Desse casal amoroso nasceram as três filhas e os três netos: Romeu, Lúcia e
Mariana. Os bisnetos, Joaquim, Gabriel, Luísa e o mais novo integrante da família
– o bebê da Mariana que nascerá em junho [de 2017], um dia conhecerão a história do
principal comerciante de Itaici, aquele que atendeu os seus concidadãos com
humildade e nobreza de caráter.
Armazém em Itaici
Crédito: acervo familiar.
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