- Texto de Márcia Pinna Raspanti
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, o número de famílias chefiadas por mulheres mais que dobrou em termos absolutos (105%), subindo de 14,1 milhões, em 2001, para 28,9 milhões, em 2015. Em termos percentuais, o total de famílias chefiadas por homens diminuiu de 72,6%, em 2001, para 59.5%, em 2015, enquanto o percentual de famílias chefiadas por mulheres subiu de 27,4% para 40,5%, no mesmo período.
As mulheres chefes de família sempre fizeram parte da sociedade brasileira. Nos tempos coloniais, os homens iam e vinham, se deslocando em busca de novas ocupações e oportunidades, deixando para trás mulheres e filhos. Atividades como mineração e pecuária atraiam aqueles que sonhavam em enriquecer e voltar para a Europa – onde, muitas vezes, já tinham deixado uma família formada. Nesse processo, núcleos familiares se formavam devido ao concubinato e às uniões informais. Quando eles partiam, elas ficavam responsáveis pelo sustento dos filhos.
Mary del Priore nos conta: “A existência de mulheres sozinhas nas cidades coloniais, por exemplo, dava uma característica especial às famílias, que se constituíam, muitas vezes, apenas de mãe, filhos e avós. Como hoje, multiplicavam-se os lares monoparentais com chefia feminina. Algumas dessas famílias incluíam escravos e escravas. Outras, parentes ou compadres e comadres agregados”. As mulheres lutavam para dar melhores condições aos filhos. Elas se uniam, ajudavam uma às outras, tentando sobreviver de pequenos negócios como hospedarias e venda de doces, ou da exploração dos serviços de seus escravos “de ganho”.
Essas mulheres, ricas ou pobres, tinham que se esforçar para serem respeitadas pela sociedade. “As mulheres viúvas ou abandonadas, que tocavam suas fazendas com a ajuda dos filhos ou de irmãos, deveriam aparentar viver com honra e recato, cumprir deveres de mulher cristã, manter costumes de decoro”, diz a historiadora. Elas não podiam ser “frágeis”: trabalhavam e cuidavam de seus negócios da mesma forma que os homens. As mais abastadas davam ordens aos escravos e capatazes, montavam em seus cavalos e inspecionavam as terras e roças.
As listas nominativas – espécie de censo demográfico do século XVIII – revelam vários destes casos como o de D. Maria Joaquina, paulista que:
“vive de suas quitandas, viúva, branca, de 56 anos, morava ao norte da Sé com uma filha solteira e 5 escravos.” Ou de Maria Antonia da Fonseca, quitandeira, viúva, branca de 50 anos, morava em Santa Ifigênia com 5 agregados e 10 escravos.
Entre os escravos alforriados, as mulheres também eram maioria. E cabia a elas, na maioria das vezes, cuidar da própria sobrevivência e da dos filhos. A moda se tornou uma opção no restrito mercado de trabalho. No século XIX, os brasileiros mais ricos adquiriam o hábito de fazer compras nos locais chics do Rio de Janeiro, como as ruas do Ouvidor e a Direita. Muitas escravas forras foram trabalhar neste comércio do luxo e aprenderam novos ofícios, abrindo posteriormente seus próprios negócios. Costuravam, faziam arranjos em chapéus, bordavam, aplicavam pedrarias e arranjavam perucas, eram cabeleireiras…
Mães e trabalhadoras. Essa é a realidade brasileira desde que o Brasil começou a se formar. Não é novidade. Lembro-me de que, no final dos anos 90, fiz uma reportagem sobre a PNAD do IBGE. A editora me disse que precisávamos dar destaque ao fato de que o levantamento apontava um número significativo de mulheres chefes de família. Ora, pensei comigo, devemos deixar claro que isso não é um fato novo, mas um fenômeno histórico. Não é resultado da dissolução dos costumes, como foi dito ainda ontem, mas é resultado, muitas vezes, do abandono masculino e da irresponsabilidade paterna (nem sempre, obviamente). Ou fruto da necessidade e do destino…
A situação das mulheres chefes de família que se encontram na parte mais baixa da pirâmide social brasileira sempre foi dramática. Nos anos 80 do século passado, houve uma transformação nos costumes que trouxe mais autonomia às mulheres. Muitas passaram a escolher a separação por uma série de fatores, inclusive em prol da carreira. Mary del Priore lembra que, entre os mais pobres, “não foram os costumes liberais que colocaram o Nordeste como primeira região do país em número de mulheres chefes de família; foi a miséria, que empurrou os maridos para longe, em grandes fluxos migratórios, para onde partiram sozinhos, deixando mulheres e filhos para trás. Esse matriarcado na pobreza não supriu todas as necessidades, mas sem ele a degradação seria maior”.
Em um país em que o divórcio só foi aprovado em 1977, sabemos do estigma que acompanha as mulheres que criam seus filhos sozinhas. Segundo a nossa tradição, a mulher que não tem um homem para tutelá-la e protegê-la é vista como vulnerável. “Nas famílias latinas, que marcam nossa cultura, o pai é o defensor da honra da mulher. Na ausência dele, é o irmão. Na hora de brigar no condomínio, na oficina mecânica, de alugar um apartamento, uma mulher descasada tinha, até há bem pouco tempo, dificuldades imensas”, explicou a cientista social Maria Coleta Oliveira, do Núcleo de Estudos de População da Universidade de Campinas (Unicamp). “Hoje, isso está mudando nos grandes centros urbanos. As mulheres estão se inteirando de que podem conquistar espaços que não existiam antes.”
Os costumes mudam, entretanto, os preconceitos ficam. O que aprendemos com a História é que, com coragem, determinação e ajudando umas as outras, as mulheres chefes de família continuam a cuidar de seus filhos, apesar dos estigmas e discriminações. Por necessidade ou opção, aquelas que tomaram para si essa difícil tarefa devem ser respeitadas e, principalmente, amparadas por políticas públicas inclusivas e responsáveis.
“Uma senhora brasileira em seu lar” de Jean-Baptiste Debret.
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