Este Manual foi elaborado como uma resposta às agressões
dirigidas a professoras e professores e a escolas como estratégias
de ataque de movimentos reacionários à liberdade de ensino e
ao pluralismo de concepções pedagógicas, princípios previstos
na Constituição Federal (1988).
Porém, ao longo deste trabalho,
a complexidade deste fenômeno nas escolas foi conferindo ao
significado de “defesa” um sentido especial, mais amplo que a
mera reação à agressão injusta.
De fato, debater e elaborar respostas legítimas e adequadas
às violações individuais sofridas por docentes, estudantes e escolas
foi o movimento inicial deste compromisso coletivo, mas
compreendê-las no contexto do ataque sistemático ao direito à
educação de crianças, adolescentes, jovens e adultos permitiu
pensar a defesa como estratégia de transformação do ambiente
do conflito, como afirmação dos princípios éticos, políticos e jurídicos
que dão suporte à educação brasileira em suas diferentes
etapas e modalidades.
A defesa proposta pelo Manual tem duas dimensões complementares:
a primeira compreende o conjunto de estratégias e medidas
específicas pensadas como respostas às agressões concretas; a segunda
valoriza o debate público sobre essas situações como forma
de enfrentamento de um conflito social gerado pela manipulação
das ideias. Esse debate, feito na escola ou na comunidade escolar, tem como princípios e objetivos constitucionais:
- o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho;
- a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber;
- o pluralismo de concepções pedagógicas e
- a valorização dos profissionais da educação escolar, dentre outros princípios importantes.
Entendemos que a explosão destes conflitos contra professoras
e professores não é voluntária, mas deliberadamente provocada
por movimentos que se alimentam da desinformação geral,
dos preconceitos e, de forma leviana, mobilizam o sentimento
das famílias sobre temas naturalmente inquietantes do ensino
(política, desigualdades, gênero, sexualidade, racismo etc.).
Ocorre que os princípios constitucionais da educação escolar são
direitos previstos como cláusulas pétreas (imutáveis) na Constituição,
cujo propósito é justamente servir à proteção e à defesa
de educadoras e educadores, estudantes e escolas contra ameaças
que possam sofrer.
A democracia e, como consequência, a gestão democrática
da educação têm como finalidade, como “chão”, a garantia dos
direitos humanos, em especial, do direito humano à educação
de qualidade para toda a população. Dessa forma, a gestão democrática
não pode ser usada para restringir os direitos previstos
legalmente e depende de dois aspectos complementares.
De um lado, o direito à participação (de famílias, educadores,
estudantes, movimentos sociais etc.) nos debates e, quando
for o caso, nas decisões que impactam a vida escolar. De outro
lado, igualmente básicos, estão os direitos fundamentais como
as liberdades e o pluralismo, que de tão importantes para o próprio
funcionamento da sociedade democrática não estão sob deliberação. Devem simplesmente ser respeitados pela sociedade e
protegidos pelo Estado.
Isso significa que a participação das famílias não pode ser
usada para limitar o direito constitucional de suas filhas e seus
filhos ou de filhos e filhas de outras famílias a uma educação crítica
e criativa, que contemple várias visões de mundo, estimule a
capacidade de refletir e de pesquisar a realidade e que os prepare
para uma sociedade cada mais complexa e desafiante. Muitas
vezes, mobilizadas pelo desejo de proteção de suas filhas e seus
filhos, várias famílias acabam contribuindo para que crianças e
adolescentes cresçam despreparados e vulneráveis para enfrentar
o mundo e para atuarem conscientemente pela superação das
desigualdades, discriminações e violências nas suas vidas e na
sociedade brasileira.
Significa também dizer que nem os poderes do Estado (Legislativo,
Executivo e Judiciário) nem seus órgãos ou instituições,
como secretarias de educação e escolas, podem decidir censurar
quem quer que seja. Isso seria uma afronta à democracia e, por
isso, uma medida inconstitucional, como já reconhecido pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 5.537, que cassou, com esses mesmos argumentos,
os efeitos da Lei de censura aprovada no Estado de Alagoas.
Vale trazer dois trechos dessa decisão:
A toda evidência, os pais não podem pretender limitar o universo informacional
de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer
conteúdo com o qual não estejam de acordo. Esse tipo de providência
– expressa no Art. 13, § 5º – significa impedir o acesso dos jovens a
domínios inteiros da vida, em evidente violação ao pluralismo e ao
seu direito de aprender. A educação é, justamente, o acúmulo e o
processamento de informações, conhecimentos e ideias que provêm de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com
amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e,
igualmente, na escola. (…)
A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar
o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só
pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar
o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um
pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de
emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural
do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos
ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser “vulnerável”. O
excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza.
(ADI n. 5.537 MC, Relator: Min. Roberto Barroso, julgado em 21
mar. 2017, p. 20; 24)
Portanto, tão importante quanto ouvir as inquietações de famílias
e estudantes é afirmar o dever de escolas, profissionais de
educação e secretarias de educação em promover um ambiente democrático
que resguarde a liberdade acadêmica e o pluralismo de
concepções em um contexto de valorização profissional docente.
Ao longo do processo de produção deste Manual, foi ficando
nítido que a defesa mais eficiente contra a censura nas escolas
passa por (re)afirmar os princípios e direitos fundamentais do
ensino e, tomando-os sempre como base, oportunizar à comunidade
escolar uma reflexão lúcida e produtiva sobre o que efetivamente
mobiliza esta onda de agressões aos professores.
Neste sentido, este Manual de Defesa propõe dois movimentos
que se complementam:
- de um lado, uma resistência legítima aos ataques com
base nos direitos constitucionais relacionados à educação e ao ensino, e, quando for o caso, com respostas jurídicas às agressões
abusivas e injustas;
- de outro, uma resposta político-pedagógica aos episódios
de censura e ameaça no âmbito das próprias escolas, de modo
que a ocorrência das agressões sirva para aprofundar reflexões
nas comunidades escolares sobre a necessidade de defender – na
perspectiva da educação popular, do direito à igualdade e às diferenças
e da gestão democrática escolar – a liberdade de ensinar e
aprender e o pluralismo de concepções pedagógicas na educação.
Considerando essa lógica estruturante e visando organizar
um conjunto de estratégias político-pedagógicas e jurídicas para
que escolas e professores possam exercer suas funções com base
nos princípios expressos na Constituição Federal e na LDB, um
conjunto de organizações e articulações de sociedade civil, confederações
de trabalhadoras e trabalhadores da educação, instituições
científicas, educadores, pesquisadores e ativistas produziram
este Manual de Defesa.
Destaca-se ainda o apoio da Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal; o
apoio internacional do Fundo Malala, criado pela Prêmio Nobel
da Paz Yousafzai Malala para defender o direito à educação de
meninas e mulheres em vários lugares do mundo; e o apoio das
muitas pessoas que contribuíram para a viabilização do material
por meio de doações voluntárias a uma plataforma virtual de levantamento
de recursos financeiros. Agradecemos imensamente
a todas e a todos pela aposta nesta iniciativa.
Fizemos um grande esforço coletivo para que o Manual de
Defesa seja nítido e acessível a profissionais da educação, estudantes e familiares. Somando-se a outras iniciativas de defesa da
liberdade de pesquisar, ensinar, estudar e aprender nas escolas,
em um ambiente plural, acolhedor e democrático, ele é a nossa
contribuição para conter o avanço do pensamento autoritário
no Brasil que fere o direito à educação crítica e criativa de
crianças, adolescentes, jovens e adultos; criminaliza o trabalho
docente; ataca os direitos conquistados pelas mulheres, pessoas
LGBT e população negra e toma a educação como um mero
ato burocrático.
Manifestamos aqui nossa grande expectativa que o Supremo
Tribunal Federal possa referendar as liminares do Ministro Luís
Roberto Barroso e se posicionar pela inconstitucionalidade de
leis propostas e inspiradas no Movimento Escola Sem Partido
– com base nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade apresentadas
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
(CNTE), pela Confederação Nacional de Trabalhadores em
Estabelecimentos de Ensino (CONTEE) e pelo PDT (Partido
Democrático Trabalhista) – e de outras legislações que visam
proibir a abordagem de gênero, sexualidade e relações raciais nas
escolas do país.
Subscrevem:
- Ação Educativa Democrática
- Ação Educativa
- AGB - Associação dos Geógrafos Brasileiros
- Agência Pressenza
- Aliança Nacional LGBTI
- ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
- ANDES-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior
- ANFOPE – Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação
- ANPAE – Associação Nacional de Política
e Administração da Educação
- ANPEd – Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
- ANPOF – Associação Nacional de
Pós-Graduação em Filosofia
- Articulação de Mulheres Negras Brasileiras
- Associação Brasileira de Ensino de Ciências
Sociais
- Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Intersexos
- Campanha Nacional pelo Direito
à Educação
- CEDECA-CE – Centro de Defesa da Criança e
do Adolescente Ceará
- CEDES – Centro de Estudos Educação
e Sociedade
- CENDHEC – Centro Dom Helder Câmara de
Estudos e Ação Social
- Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
- CFEMEA
- Cidade Escola Aprendiz
- Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos da Mulher
- CNTE – Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Educação
- Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos
- Comissão de Direitos Humanos
do Conselho Federal de Psicologia
- Comissão Pastoral da Terra
- Comitê Goiano de Direitos Humanos
Dom Tomás Balduíno
- CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
- CONTEE – Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
- Dom da Terra AfroLGBTI
- FINEDUCA – Associação Nacional de Pesquisa
em Financiamento da Educação
- FORUMDIR – Fórum Nacional de Diretores de
Faculdades, Centro de Educação ou Equivalentes
das Universidades Públicas
- Fórum Ecumênico ACT-Brasil
- GAJOP – Gabinete Assessoria Jurídica
Organizações Populares
- Geledés – Instituto da Mulher Negra
- Grupo Dignidade
- IDDH – Instituto de Desenvolvimento
e Direitos Humanos
- Instituto Pólis
• Instituto Vladimir Herzog
- Intervozes
- Justiça Global
- Marcha das Mulheres Negras
- Mirim Brasil
- Movimento Humanista
- Movimento Nacional em Defesa do Ensino
Médio
- MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra
- Núcleo da Consciência Negra – USP
- Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras
de Belo Horizonte
•
- Odara – Instituto da Mulher Negra
- Plataforma DHESCA
- Professores contra o Escola sem Partido
- QuatroV
- Rede Brasileira de História Pública
- REPU – Rede Escola Pública e Universidade
- SINPEEM – Sindicato dos Profissionais
em Educação no Ensino Municipal
de São Paulo
- Sinpro Guarulhos
- Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos
Humanos
- Terra de Direitos
- UNCME – União Nacional dos Conselhos
Municipais de Educação
- Undime - União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação