Incêndio no Bozelli
(Transcrição do capítulo 14 do livro "História de Indaiatuba na perspectiva biográfica de Antônio Reginaldo Geiss.)
O que é fogo?
São muitos os conceitos e definições. Para esse capítulo pode ser
aplicável saber que “fogo” é:
toda combustão acompanhada de desenvolvimento de luz, calor e,
geralmente, de chamas;
labareda;
residência de uma família;
ardor, energia, vivacidade;
agitação, desassossego;
sentimento veemente; excitação.
Atiçar fogo: fomentar discórdia.
Brincar com fogo: tratar descuidadosamente de coisas perigosas.
Comer fogo: a) enfrentar dificuldades; b) estar furioso.
Cortar o fogo: evitar que um incêndio se propague.
Pegar fogo: inflamar-se, incendiar-se.
Pôr as mãos no fogo por alguém: responsabilizar-se por essa pessoa.
Incêndio.
É difícil construir memórias da infância bem
elaboradas, de forma completa e cronológica. Dessa época, memorizamos poucos
fatos com muita clareza, condição classificada como amnésia infantil. Há
teorias que justificam essa ausência considerando que a criança ainda não tem a
linguagem totalmente elaborada a ponto de armazenar memórias concretas, muito
embora os fatos passados tenham impacto na formação da personalidade e,
portanto, na vida presente. Partindo dessa premissa, há memórias infantis que
são relembradas através de outros sentidos, como por exemplo o olfato, que
acusa “um cheiro de comida de vó”. Nessa perspectiva, estão as memórias das
sensações, incluindo traumas advindos de experiências desagradáveis.
Geiss lembra de dois incêndios que aconteceram na sua
infância: o incêndio do Bozelli e o incêndio do Mazzoni. Depois de dedicar a
vida adulta para memorização de fatos ocorridos em Indaiatuba, é difícil
separar suas lembranças pessoais daquelas adquiridas através de fatos que ouviu
e estudou, através de contatos com outras memórias. O fato é que esses
incêndios trazem uma mistura de sensações, uma nostalgia triste.
O incêndio ocorrido no armazém de Francisco Bozelli,
na década de 1930, é narrado por ele com esse viés de pesar. O local era
denominado “Casa Paulista – Ao Mercado Grande” e ao relembrar o fato, a
agitação e desassossego chega a dar compaixão daquele menino Toninho que Geiss
foi um dia.
Coitado de
Toninho, que susto levou!
Uma grande
labareda se formou rapidamente, o fogaréu descontrolado propagou-se e tomou a
dimensão do prédio todo. Além do calor, da iluminação e da fumaça, o incêndio
era agravado por sucessivas explosões. Isso assustou a todos, que com veemente
sentimento de excitação, foram atraídos para o local do sinistro. A combustão
não era como as pequenas fogueiras que Toninho conhecia, “que deixa a gente
inebriado, numa sensação de torpor ao acompanhar a dança das chamas.”
Não, não foi
assim.
Os sucessivos
estampidos provocados por tambores de querosene e formicida assustaram
profundamente a todos da pequena cidadezinha, que por muito e muito tempo
comentou o assunto nos botecos, nas soleiras de portas e janelas e nas rodas em
volta dos fogões à lenha, no odor de querosene.
A família Bozelli
tinha uma hospedaria no Largo da Matriz chamada Hotel Bozelli, negócio
respeitado e conhecido na região. Em frente ao hotel, bem na esquina da frente,
a família montou também um armazém, inaugurado com propaganda e certa pompa e circunstância diferenciada para
a época. O armazém de esquina tinha cerca de 15 metros de fachada na
Rua Augusto de Oliveira Camargo e cerca de 11 metros com a frente voltada para
a Rua 15 de Novembro.
Por toda a madrugada a labareda com explosões
foram testemunhadas pela população curiosa. Os que, por algum motivo, não
escutaram os estouros, foram despertados naquele domingo de Páscoa - 29 de março, por volta das duas horas
da manhã, com o sino da matriz, que não parava de bater, avisando a todos do
perigoso evento.
Somente pela manhã
o fogo terminou, parte por que já havia consumido quase tudo, parte pela ajuda
dos habitantes desesperados, que com medo que o fogo se alastrasse nos vizinhos,
corriam em debandada – muitos de pijama ou saiotes - para lá e para cá, com
baldes e bacias de água retirada de poços, bicas e de poucas torneiras públicas;
e parte porque o corpo de Bombeiros de Campinas auxiliou, mesmo que bem no
finalzinho.
Hoje em dia quem
trabalha com substâncias potencialmente perigosas deve seguir regras rígidas de
segurança, são fiscalizados e passíveis de autuações e multas, mas naquela
época não era assim. Como já foi dito, os armazéns de secos & molhados tinham
um estoque variado, misturava-se vários tipos de alimentos com produtos
potencialmente explosivos, como querosene e formicida, como no caso do armazém
dos Bozelli.
- O estoque, as
instalações, tudo... tudo ficou destruído lembra-se Geiss. Só ficou aquele
esqueleto em pé, dando uma sensação de tristeza e ao mesmo tempo de impotência
aos que por ali passavam. Eu fiquei horas parado, como que hipnotizado olhando
para aquilo tudo. Vi que duas famílias vizinhas ao prédio, de dona Mariquinha
Bicudo e de Pedro Sargentelli, retiraram todos os móveis que puderam de suas
residências e os acomodaram na rua, onde julgavam que estivessem longe da
ameaça.
No dia seguinte,
segunda feira bem cedinho, enquanto Toninho ficou em casa, com crises de
taquicardia e com a boca seca - com a autorização da mãe para dormir, o
delegado de Indaiatuba na época, Dr. Sylvio Corrêa, determinou a abertura de
inquérito para investigação da causa do incêndio.
Chamou a Polícia
Técnica por telefone para fazer a vistoria no prédio e determinou que fossem
tomadas declarações dos proprietários e funcionários[1]. Neste mesmo dia o primeiro a ser chamado foi o ‘Seo’ Francisco.
Em sua declaração,
tomada na mesma segunda-feira, Sr. Francisco, filho de Paulo Bozelli e Maria
Araldi, disse que estava em casa dormindo quando foi acordado por volta das
três e meia da manhã por Waldemar Filetti, que desesperado e assustado,
informava ofegante que seu armazém estava em chamas. Declarou ainda que, ao ir
correndo para o local, praticamente do lado da sua casa, notou que uma das
portas do armazém estava arrombada, com sinais de violência nas trancas e
soleiras. Contou que dois de seus filhos, os que trabalhavam com ele, Orlando e
Roberto Bozelli, estavam viajando e o outro funcionário além deles, era João Zapelfino. Contou que o frágil e velho prédio do
armazém, o estoque e mais duas casinhas do lado dele foram adquiridas cerca de
20 anos antes do sinistro. Terminou informando que tinha um contrato de seguro
com a Companhia de Seguros Sul América, no valor de 84:000$00 (oitenta e quatro
contos de réis).
Perguntado sobre
se suspeitava de alguém, disse que não, que achava que um ladrão provavelmente
entrou para roubar alguma coisa do estoque (declarado no valor de 40:000$00) e
provocou o incêndio.
O delegado então
chamou outras testemunhas, indicadas por ele mesmo, que estavam no local, para
que fossem prestar declarações e, se possível, esclarecer as causas do evento.
Iracema Filetti de Moraes, 29
anos, filha do casal Antônio de Moraes e Ivania Filetti, foi a primeira
testemunha. Declarou que estava dormindo quando ouviu um barulho estranho.
Abriu a janela para o Largo da Matriz e viu o prédio do armazém pegando fogo.
Afobada, chamou o irmão Waldemar Filetti, que por sua vez foi chamar o
proprietário, aos berros.
Ao chegar no local, percebeu
que todo o estoque estava pegando fogo ao mesmo tempo, não havia um foco
específico: “tinha fogo no armazém, no depósito de louças e ferragens e nas
sacarias”. Terminou declarando que “achava que o fogo foi ateado
propositalmente. ”
Na terça-feira,
Toninho também não queria ir na escola.
Planejou
argumentos imbatíveis para convencer a mãe. Urgia acompanhar de perto os
acontecimentos.
_ Nada disso! Já
faz cinco dias que você não vai na Escola.
Havia sido Semana
Santa, feriado, e a mãe queria que tudo voltasse ao normal o mais rápido
possível depois do grande abalo; “chega de traumas”, pensava Dona Gegê.
Osvaldo Rapozo,
com 28 anos, filho de Mariana e Manoel Rapozo, disse que chegou após o
incêndio, viu toda a destruição, nada sabendo sobre suas causas. Apenas
declarou que “dias antes do incêndio, Bozelli pediu-lhe para que, com seu
caminhão, removesse cerca de 40 sacos de feijão que se achava em depósito anexo
ao armazém, onde iria construir um forno para padaria”[2].
Sylvio Tanclér, 25
anos, filho de Carlos Tanclér e Maria Lanzi Tanclér foi a terceira testemunha.
Disse que acordou com batidas insistentes na porta da casa dele, também bem
próxima do armazém, na Rua Augusto de Oliveira Camargo. Como outros populares,
tentou desesperadamente conter e isolar o incêndio, para que não se alastrasse
nas casas vizinhas. Sobre os motivos, causas ou outros assuntos relacionados ao
incêndio, nada declarou.
De Cyrillo Zapelfino foi o quarto depoimento
registrado. Com 41 anos de idade, comerciante e também morador no mesmo
quarteirão, disse que várias pessoas o chamaram para tentar combater as chamas.
Saiu rapidamente de sua casa com um balde, assim como outros, mas chegando
perto do local viu que de nada adiantaria o esforço, uma vez que as chamas
vinham de todos os lados, com explosões.
Waldemar Filetti,
também filho de Ivania Filetti e Pedro Sargentelli, conforme contou sua irmã,
chamou o dono do armazém, em seguida correu para o Largo da Cadeia para chamar
a polícia, e veio gritando pela Rua Candelária, batendo desesperadamente em
tudo quanto era porta e janela enfileiradas, chamando demais moradores para
ajudar a apagar o incêndio.
_Fogo, Fogo, Fogo!
Mas ao chegar, também percebeu que o esforço
das pessoas com os baldes seria inglório.
O professor
público Eduardo Silva, então exercendo o cargo de Diretor de Escola no Grupo
Escolar Randolfo Moreira Fernandes, com 42 anos, filho de Antônio de Paula
Silva e Anna de Paula Silva, nascido em Campinas e com residência também na Rua
Augusto de Oliveira Camargo, perto
do incêndio, declarou que acordou com os gritos de uma das filhas de Francisco
Bozelli, de nome Ivaninha, pedindo socorro. Ao sair correndo para ver no que
poderia ajudar, deparou-se com as labaredas vindas de todos os lados. Foi então
até o posto telegráfico – onde trabalhava a mãe do menino Toninho, de onde viu
que rapidamente chegaram os soldados do destacamento local (seguindo, na
correria, Waldemar Filetti), tentando desesperadamente com outras pessoas
combater, sem sucesso, o incêndio. Informou que quem extinguiu, finalmente, as
insistentes chamas, foram os bombeiros que vieram de Campinas.
Amélio Mazzolla,
filho de Humberto Mazzolla e Angelina Mazzolla, com 24 anos, natural de Salto,
era chefe do Centro Telefônico, local onde morava nos fundos. Como os demais,
acordou de madrugada com insistentes chamadas da campainha da mesa do centro
telefônico. Atendendo ao chamado, nada pode ouvir claramente porque a pessoa
falava, soluçava, tossia, espirrava e chorava ao mesmo tempo. Isso tudo junto
com explosões, o badalar do sino da Matriz e o cheiro de fumaça.
Não é difícil
entender o desespero dos moradores da pacata Indaiatuba que, de ruídos sonoros cotidianos,
praticamente só ouvia o apito do trem, o sino da igreja e o trotar de animais
no chão batido. Foi nesse momento que Waldemar Filetti, batendo
desesperadamente na sua janela, chamou sua atenção para o incêndio; pediu então
socorro ao Corpo de Bombeiros de Campinas.
João Zapelfino,
empregado do armazém, declarou que durante o tempo em que foi empregado de Bozelli,
nada de anormal notou naquela rotina comercial, sendo o patrão rigoroso
cumpridor de seus deveres. Confirmou o que Osvaldo Rapozo disse: que esvaziaram
parte do estoque para construir uma padaria e provavelmente um bar, informando
ainda, sobre essa possível retirada do estoque, que o patrão já havia falado
que tinha entrada com os papéis na prefeitura, solicitando viabilidade para o
projeto. Sobre o seguro do prédio, informou que sabia que foi feito no final do
ano anterior, sem saber de valores.
O filho Orlando
Bozelli, de 20 anos, disse que não estava em casa no dia do incêndio porque
tinha ido, a mando do pai, para São Paulo vender o feijão que havia sido
retirado do armazém. Foi lá que soube do ocorrido.
Pegou o primeiro
trem noturno e voltou para Indaiatuba, quando então, após descer na estação e
caminhar cerca de cem metros, já avistou o esqueleto chamuscado que havia
sobrado do que fora o armazém do seu pai.
Crédito da imagem: Arquivo Público Municipal “Nilson Cardoso de Carvalho” da FPMI
O laudo do
relatório da polícia técnica da Secretaria de Segurança Pública primeiramente
excluiu as hipóteses de descarga atmosférica e combustão espontânea. Causas
acidentais como palito de fósforo ou toco de cigarro foram citadas, mas
descartadas, uma vez que se uma dessas fosse a causa, o incêndio não teria se
espalhado tão rapidamente e ao mesmo tempo por todos os lugares. Por fim, sinalizou para a possibilidade de ter havido um curto
circuito ou ser considerada a hipótese de causa proposital. Ou seja: não foi
conclusivo.
“Se bem que os peritos não tenham encontrado
qualquer indicio material, ou arrumação suspeita que indicasse a intervenção
humana com o objetivo de atear e propagar o fogo, e isto em virtude de ter
sido, como já foi dito, total a destruição, a hipótese de propositalidade
também não pôde deixar de ser considerada no caso presente, porque não seria
difícil a alguém ter, furtivamente, penetrado no interior do estabelecimento e
ali ateado o fogo (...). Isto posto (...) que cabe ao inquérito policial apurar
convenientemente o ocorrido. ”
A notícia que
havia se espalhado igual ao fogo, também foi cruel; e o seguro feito pelo
senhor Francisco Bozelli, apontou-o como suspeito.
_Ele ficou muito
abalado, lembra-se Geiss.
Tanto que, passado
pouco tempo após o incêndio, após exatos dois dias, em 31 de março, o desespero
dele, talvez superlativado com revolta e ou depressão, levou Bozelli a uma
atitude desesperada: suicidou-se com um corte de navalha no pescoço.
Deixou bilhete
escrito a próprio punho dizendo que assim o fazia, porque não “podia suportar
ao desastre”.
Deixou filhos e a
esposa Maria Rosa Frigieri, que na ocasião do acidente estava “paralítica e
muda”.
Para os que
ficaram, resta conceder o benefício da dúvida e a compaixão pela dor.
Tombado na
desgraça daquele incêndio, Seo
Francisco não pode se defender da suspeita de ter provocado o incêndio que
destruiu sua propriedade[3].
[1]
Informações do incêndio no armazém da família
Bozelli foram também retiradas do Inquérito Policial aberto em 29 de março de
1937.
[2] Havia solicitação de aprovação desse projeto na
Prefeitura de Indaiatuba na ocasião do incêndio.
[3] O inquérito termina com os autos sendo remetidos M.M.
Dr. Juiz de Direito da Comarca, por intermédio da Delegacia de Itu.
Outras imagens (que não estão na fonte citada, retirada do processo:
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