segunda-feira, 1 de abril de 2024

Os 60 anos do Golpe

Artigo de Marcos Kimura

No dia 1º de abril, há 60 anos, os militares brasileiros derrubaram o então presidente João Goulart e instalaram uma ditadura que durou duas décadas. O País do Futuro anunciado pelos Anos JK, Bossa Nova, Cinema Novo, Teatro de Arena, bicampeonatos mundiais de futebol e basquete, Maria Ester Bueno em Wimbledon, bicampeonato olímpico de Adhemar Ferreira da Silva e, por que não dizer, Brasília; deram lugar ao País do Ame-o ou Deixe-o.  

Para o levante, uniram-se duas correntes entre os militares: a Sorbonne, liderada por Castello Branco, que queria “modernizar” o país, abri-lo ao capital internacional e integrá-lo ao mundo livre americano; e os linhas duras, personificado em Costa e Silva, nacionalista, estatista e determinado a eliminar o comunismo até o último simpatizante. Num primeiro momento, Castello prevaleceu, mas no rodízio de ditadores que se estabeleceu (modelo adotado pela ditadura argentina anos depois), deu lugar a Costa e Silva e o AI-5 (como atenuante ao mandatário da vez, o ato foi decretado quando ele já estava incapacitado). As limitadas garantias jurídicas desapareceram, assim como muita gente que pegou em armas ou simplesmente lutava pela redemocratização. Prisões e torturas viraram rotina enquanto o pais celebrava o tricampeonato mundial no México e o breve Milagre Econômico, com o astuto Delfim Neto usando o crédito internacional barato e o arrocho dos salários para impulsioná-lo. Quando veio a Crise do Petróleo em 1973, a coisa começa a desandar, até chegar à crise econômica de 1983, resultado da política de endividamento. A essa altura, a economia estava estatizada, havia uma estupida reserva de mercado protecionista que incluía desde bebidas alcoólicas a automóveis e informática e os sonhos da Sorbonne se tornaram no pesadelo da inflação, carestia e o Doi-Codi e Operação Bandeirantes relutantes em sair de cena. A Diretas Já, mesmo derrotada no Congresso, era o fim do regime. Um final frustrante porque faltou o que os vizinhos argentinos fizeram: julgamento e cadeia para quem torturou e matou. 


Sou praticamente um ano mais velho que o golpe – ariano, como eu – e cresci durante o regime de exceção, na maior parte aqui, em Indaiatuba, cidade que teve sua versão da Marcha com Deus e a Família pela Liberdade e participou da campanha Ouro pelo Brasil. Eram tempos de cantar o Hino Nacional em datas cívicas (lembro de um Sete de Setembro específico em que estava perfilado no Coticap – hoje Etecap – com uma ressaca dos infernos), cartazes de procurados colocados no ponto de ônibus intermunicipais (só teríamos uma estação rodoviária em 1982), gente exilada (um primo foi para o Chile, até o golpe de Pinochet, e foi para Argentina, até o golpe de Videla) e ufanismo nos meios de comunicação (“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde-amarelo, branco, azul anil” que de tão ruim, nem foi lembrado pelo povo que acampou nas portas dos quartéis em 2022). De uma professora, dona Jair, ouvi pela primeira vez o nome Lamarca, dito entre dentes cerrados, que se tratava do maior bandido que o Brasil já teve. Incitou mais a curiosidade que o medo.

Comecei a ler jornais em 1975 (meu pai assinava a Folha da Tarde) e no colegial comecei a comprar O Pasquim, já longe dos anos áureos, mas ainda capaz de fazer com que a edição sobre o atentado do Riocentro (1981) fosse recolhida nas bancas. Antes da faculdade, na USP, tive algum convívio com integrantes do PCB e vi pelos jornais e noticiários o nascimento do PT depois de Lula liderar as greves dos metalúrgicos do ABC e ser preso, em 1980. 


Na universidade, as principais correntes do movimento estudantil eram o PC do B, dissidência stalinista que foi lutar e morrer no Araguaia e achava que a Albânia era o farol da revolução internacional; e a Liberdade e Luta – a Libelú – trotskista, que se aliou ao recém-nascido PT, mesmo achando que Lula era um pelego. Para ambas tendências, o velho Partidão era reformista. Colegas do PCB me chamavam de diletante, uma forma de insulto para eles, mas para mim era um cumprimento. Que diria Luis Carlos Prestes ao ver seu partido virar o Cidadania? O presidente da UNE (União Brasileira dos Estudantes) era Aldo Rebelo, do PC do B, posteriormente deputado federal e ministro dos Esportes, e um dos principais líderes no campus da USP era Demétrio Magnioli, da Libelú, hoje analista internacional da Globonews (meldels!).


Fui ao Congresso da UNE em Piracicaba e participei da invasão à Reitoria da USP, que me fizeram concluir que o movimento estudantil era importante só para os estudantes e para dar matéria para os jornais. Por isso, durante a ocupação da reitoria, a Rota de Paulo Maluf se limitou a circular ameaçadoramente pelo campus. Poucos anos antes, em 1977, o então secretário da Segurança do Estado, coronel Erasmo Dias, mandou invadir, bater e prender estudantes reunidos na PUC-SP, mas a repercussão nacional e internacional da repressão caiu mal para a imagem do regime. Em 1982, o clima era outro, embora ainda não soubéssemos disso. 


Na época das primeiras eleições para governador, em 1982, nosso professor de Estatística, Severo, que trabalhava no Gallup, afirmou que, como os primeiro e segundo colocados no pleito já estavam decididos – Franco Montoro (PMDB) eleito e Reinado de Barros (PDS) em segundo – a dúvida ficou para o terceiro colocado. “Se chover, Lula fica em terceiro, se não, será Jânio Quadros”. Por quê? Porque o eleitor do ex-presidente das vassouras era em grande parte de uma idade em que não se é obrigado a votar, que não vai sair de casa se chover. Não choveu, e Lula, segundo a biografia escrita do Fernando Morais, entrou numa depressão da qual só saiu após uma ligação de Fidel Castro. Na eleição seguinte, foi o deputado federal mais votado.


Veio, então, a campanha das Diretas, que surge timidamente, mas foi crescendo, graças em grande parte à adesão da Folha de São Paulo, emergindo como principal jornal brasileiro (quem não viveu os anos 80 não tem ideia do que era a Folha). O movimento culmina em mega-comícios na Candelária, no Rio de Janeiro, e no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, com ambas organizações reivindicando um milhão de pessoas presentes. No Rio, não posso afirmar, mas em São Paulo não havia aquilo tudo (neste século, um milhão virou carne de vaca, da Parada Gay ao ato de Bolsonaro). Lá de trás, comentei com amigos não-militantes, como será que o povo vai reagir quando a Emenda Dante de Oliveira não passar? O consenso foi: não vai.


Passados quase 40 anos do fim da ditadura, e ainda vivemos à sua sombra, da impunidade dos que perpetraram crimes contra a Humanidade em nome de uma suposta guerra ideológica, à estrutura de corrupção e atraso da máquina estatal, que domina toda a economia. Surgiu para combater um inimigo inexistente (achar que o latifundiário João Goulart instalaria um regime socialista e faria uma reforma agrária para valer é um delírio), atrasou a economia estatizando-a de vez e isolando o país dos avanços tecnológicos que aconteciam, a um custo humano irrecuperável. 

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