Nilson Cardoso de Carvalho
1995
O Largo da Matriz, primeiro espaço comum, reunia em torno de si as
casas mais importantes do povoado, sobressaindo, imponente, a igreja, ponto de reunião
das pessoas, dos fiéis nos dias de missa, procissões, festejos religiosos e também
nas eleições, quando se reuniam as ‘mesas paroquiais’ no corpo da matriz,
pequeno número de eleitores, para se proceder as eleições de juízes de paz,
vereadores e os cargos eletivos do Império em todos os níveis.
Era o local cívico e religioso da comunidade. Ali residiam os
principais do lugar: oficiais da Guarda Nacional, fazendeiros senhores de
engenho, fazendeiros ‘cafelistas’, comerciantes principais e as autoridades
locais.
O Largo, como o nome diz, era um largo com chão de terra sem
calçamento, que em sua largueza ampliava a perspectiva da matriz. Em fotos do
início do século ele aparece ainda limpo, apenas com algumas palmeiras.
Em 1930 era chamado ‘Praça Rio Branco’, quando este nome foi mudado
para ‘Praça Centenário’, em comemoração ao centenário da elevação de Indaiatuba
à freguesia, e finalmente, para homenagear a grande benemérita fundadora do
Hospital mudaram o nome para ‘Praça Leonor de Barros Camargo’. Há mais de
trinta anos, 1964, quando eu e minha família aqui nos radicamos, Indaiatuba era
um lugar muito agradável, tal como (ainda) é.
A igreja matriz, sem a sufocante floresta à sua frente e os
ridículos arranha-céus circundantes, imperava majestosa sobre o seu largo. Largo este de
tradições tão antigas na cultura
luso-brasileira, inclusive com sua indispensável ‘Rua Direita’.
Centro histórico,
desde que ali foi implantada a primeira capelinha no século dezoito, o local se
mantinha intacto, com seu casario colonial, de alinhamento uniforme, múltiplas
portas e janelas envidraçadas, todas abrindo para o espaço aberto do largo.
Esse conjunto homogêneo se manteve intacto
durante muitos anos depois que aqui chegamos e só no final da década de
setenta, início dos anos oitenta, começaram a vir abaixo os casarões, vítimas de
muitas circunstâncias, mas principalmente da idéia equivocada do que seja
“progresso”, isto é: “tudo o que é velho
deve ser demolido”.
Lembro-me de uma das primeiras vítimas: um casarão na esquina com a
Quinze de Novembro que deveria ter mil histórias para nos contar, desde sua trabalhosíssima
construção, iniciada ainda no meio da floresta onde o construtor escolheu as
árvores que dariam o seu madeiramento, passando pela história das pessoas que nele viveram e, quase no final de sua existência,
quando viu surgir o Indaiatuba Clube que ali teve sua sede.
Senti um choque ao vê-lo, numa manhã, semidemolido, já destelhado
com madeiramento todo à mostra e... madeiramento tão perfeito como se acabasse
de ser construído!
Nas calçadas ao seu redor colocaram as grandes telhas coloniais
empilhadas. Chamava a atenção a extensa parede de pau a pique, encostada ao
casarão vizinho e que começava a ser demolida com imenso trabalho, pois estava
muito firme com sua ‘trama de paus roliços amarrados com cipós’.
Em frente a esse existia um outro notável casarão, antiga
propriedade de José Estanislau do Amaral, avô da mais famosa pintora
brasileira, Tarsila do Amaral, e também avô do nosso querido amigo Tércio
Ferreira do Amaral.
Neste casarão nasceu aos 7 de agosto de 1869 Antonio Estanislau do
Amaral, um dos primeiros ecologistas de que se tem notícia no Brasil, amante
dos pássaros, das árvores e da natureza, cuja obra mais importante e
desconhecida, inclusive pelos indaiatubanos, é o horto Itatuba; uma floresta
ocupando muitos alqueires de terras, com árvores nativas brasileiras de todas
as espécies, crescendo e se multiplicando livremente, sem a interferência do
homem.
Por estar na época fora de Indaiatuba não presenciei a derrubada
desse casarão; fui poupado de testemunhar o espetáculo, mas não da surpresa desagradável
de dar por sua falta, um dia ao passar por lá e verificar que só havia sobrado
o imenso terreno com jabuticabeiras e entulho.
Sei que as cidades, tais como os homens que as criam, são
organismos vivos, e como tais vão se modificando no transcorrer do tempo; mas
sei também que é possível, como nos lugares civilizados, estabelecer uma
orientação para que estas modificações se façam de forma racional, sem
descaracterizar o que ela tem de fundamental, pois sem características
fundamentais a cidade perde sua identidade; e, como um sinal de alerta, tenho ouvido ultimamente
várias pessoas dizerem que
Indaiatuba está se tornando uma cidade ‘sem identidade’.
Texto publicado no
“Diário Votura”, em 4-10-1995