Por Edgard Steffen
“Esperança e Glória” (Hope and Glory) excelente filme do diretor John  Boormann, conta a história de uma família londrina
durante a 2ª Grande Guerra Mundial, pela ótica de um menino de 9 a  10 anos. A ação ocorre em
meio aos bombardeios de Londres e mostra
as modificações  psico-sociais, a
influência  da guerra  sobre o comportamento e os valores da
família, as adaptações das pessoas ao dia a dia da conflagração, os bombardeios
de Londres, as reações do menino, os brinquedos e brincadeiras em meio aos
destroços e o fim antológico: a alegria das  crianças quando descobrem que sua escola
havia sido destruída num  bombardeio. 
Para mim esse filme teve um sabor todo especial: o menino-personagem da história
teria quase a mesma idade que eu tivera durante o conflito; levei a vantagem de
estar a milhares de quilômetros daqueles acontecimentos e a mais parecida com o
bombardeio que vivenciei foram os rojões e morteiros que escaparam sobre o
telhado de nossa casa, no centro de Indaiatuba, São Paulo, quando o partido político a
que meu pai pertencia perdeu a eleição de 1934. 
Se uma hipotética bomba (a
imaginação de criança não tem limites...) caísse sobre o Grupo Escolar “Randolfo Moreira Fernandes”, eu e meus colegas certamente choraríamos em vez de ter a
esfuziante alegria das crianças do filme.
O “Randolfo”
era, para minha geração, o “Grupo Novo”. 
Recém inaugurado, pelos seus
corredores e salas circulavam figuras emblemáticas como “seu” Eulálio Rosa Cruz
(diretor), “seu” Carlos Tanclér (porteiro) e as professoras como a terna
Hosana, a  rígida Francisca
(Yaiá) ao lado de Yolanda (minha irmã), Silvia, Áurea, Maria José (Zezé),
Helena, Alice e outras esquecidas nos meandros de minha memória.
Exerciam, com
dignidade, a missão de ensinar tanto letras, contas, geografia, história quanto
cidadania. A todas se dedicava o respeito de chamá-las pelo prenome acrescido
do título “professora” ou pelo popular (mas respeitoso) “Dona”. Jamais poderíamos
imaginar que, um dia, professores viriam a ser tratadas pelo “Tia”. 
Esse
qualificativo – aparentemente carinhoso – sem o prenome ou sobrenome, coloca-as na vala
comum da impessoalidade, como vem acontecendo desde a década de 80. 
Explanado
meu protesto contra a impessoalidade de tio, onde hoje é nome de escola
estadual, esteve pouco tempo em Indaiatuba, porém graças à personalidade, à
capacidade de impor disciplina aliada à didática eficiente, sua figura viria
permanecer indelével na memória dos que foram seus alunos. 
Ex-jogador de
futebol, carreira interrompida por lesão do menisco, não dava aulas de educação
física; substituía- as
por jogo de futebol, no campo do “Primavera”, localizado nas vizinhanças do grupo escolar. 
Com seus próprios recursos comprou uma bola oficial de couro -
bola de “capotão” era objeto de desejo para quase 100% dos meninos que jogavam
futebol na rua e tia...voltemos ao “Randolfo”.
Um
jovem destacava-se no contexto: Professor Arnaldo Rossi. Vindo de Pedreira com
bolas de meia ou de borracha – e formou um time completo. Todos participavam da
aula de futebol e os mais craques eram escalados no time principal, também
uniformizado pelo mestre Arnaldo. O ovo de Colombo para fazer aquele grupo de meninos
(alguns retardatários já em plena puberdade), pouco afeitos ao estudo,
interessarem-se pelas aulas de aritmética, linguagem, geografia e história,
constituía-se em medida extremamente eficaz: o castigo para os preguiçosos e
para os indisciplinados era não participar dos treinos e jogos. 
Fez milagres! 
Repetentes contumazes puderam participar da fotografia comemorativa da turma de
1941.  
Laércio Milani, o grande goleiro do Palmeiras, do Santos
e da Seleção Paulista provavelmente jogou no time do Randolfo, antes da
Portuguesa Santista descobri-lo no “Primavera” e introduzi-lo no futebol profissional.
Para
aqueles meninos e moços da turma de 1941, o professor futebolista era um ídolo.
Num tempo em que as aulas de ginástica no curso primário mais pareciam brincadeiras
de roda, coisa de meninas brincando nas ruas, aquele professor – alto, magro,
elegante em seus ternos claros – ensinava a classe a se posicionar em campo,
chutar de trivela, bater certo na pelota para aumentar a velocidade e aprimorar
a direção da bola. 
Chegava a tirar seu paletó e mostrar, na prática, como se
fazia. 
Lembro-me de um desses dias em que, entusiasmado, bateu bola mais vezes
do  que
a prudência recomendava; com fácies de dor, levantou a barra da calça para
avaliação do estrago. Os alunos que estavam perto, puderam ver o inchaço que se
formou naquele joelho que frustrara a carreira do futebolista (centeralfo, se
não me trai a memória) para dar vez ao mestre dos alunos difíceis. 
[Mais de] Sessenta e
três anos passados, sua memória continua viva, respeitada e reverenciada.
Modestamente, este é o objetivo
desta crônica.

 
 
 
 
 
 
 
 
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