quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

A história da escravizada Querubina Galvão

BINA 

Texto de Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro (1)

 

"Essa preta simpática, de semblante calmo e fisionomia sorridente era a Bina, assim chamada carinhosamente por todos nós, porém o seu nome era Querubina Galvão. Foi adquirida ainda menina, como escrava, pelo meu avô (2) juntamente com o irmão gêmeo chamado Querubim Galvão. foram comprados pelo preço de dois contos de réis cada um, quantia elevada paga somente a escravos fortes de canela fina. No cativeiro do meu avô permaneceram sempre, mesmo depois da alforria (3).


Querubina Galvão - BINA
Nasceu em 1830 e faleceu em 1938

A Bina criou todos os filhos dos meus avós e quando adulta, tornou-se ótima cozinheira, famosa pelo seu tempero, muito elogiado. Após a morte dos meus avós, ela ficou em companhia de uma tia solteira até o seu falecimento, ocasião em que veio morar com minha mãe (4), acabando de nos criar.

Quando moça presenciou e participou da procissão dos escravos que trouxeram o "crucifixo" que pertenceu ao Frei Galvão fundador do Convento da Luz, em São Paulo, até a fazenda do meu avô em Itu, carregando-o sobre uma almofada pelo caminho das fazendas. Esse crucifixo é uma relíquia de família que está agora em minha casa e o seu retrato figura no 'Livro da Vida', de Frei Antônio de  Santana Galvão como "pertencente a família Teixeira de Camargo de Indaiatuba" (5) (6).

Uma passagem pitoresca ocorrida na vida da nossa família testemunhava o grau de confiança que nela depositávamos. O meu tio avô Inácio de Paula Leite de Barros, o Nhô Barros (7), era dono de duas fazendas em Itaici, casas na cidade, solteiro, e tinha naquela época, no banco, a estimada quantia de 600 contos de réis, sendo por isso considerado um bom partido casamenteiro.

Acontece que Nhô Barros desejava esposar a sua sobrinha Zica, irmã de minha mãe mas, ela não aceitou por ser seu tio. Achava o parentesco muito próximo.

Mas a fama de um bom partido foi longe e um parente mais afastado, fazendeiro em Jaú, o major Prado é esperado em Indaiatuba. Deveria chegar em trem especial com a família, para oferecer a Nhô Barros a mão de uma filha em casamento.

Grandes preparativos, todo mundo feliz com o acontecimento, mas o imprevisto aconteceu: Nhô Barros desapareceu!

Procuraram-no na cidade, nas fazendas, por toda parte porém, nada de encontrá-lo.

Meu avô, que hospedava a família, teve de apresentar desculpas e o pessoal, despedindo-se, regressou para Jaú sem ter conseguido o objetivo. Quando tudo voltou à calma, sai o Nhô Barros de dentro de um guarda-roupa muito grande que existia em casa do meu avô.

A única pessoa que sabia do esconderijo era Bina, a quem ele havia confiado o segredo. Esta, disfarçadamente, tratou de de pensar todo o cuidado com o fugitivo, inclusive escondendo a chave consigo. 

Esse guarda roupa ainda hoje existe. Esse episódio revela a confiança, a discrição e o zelo demonstrados pela Bina mediante aquela situação delicada.

Outra ocasião, quando eu já era moça formada, aguardava a nomeação para o magistério; dizia se naquela época que esperava uma cadeira, ou seja, uma classe.

Como era importante ingresso no magistério, em casa se referiam ao assunto da cadeira. A Bina, estando sempre em nosso meio, ouvia a prosa e, na sua cabecinha encanecida, fazia conjecturas, sem nunca se manifestar sobre o assunto até que um dia chega a nossa casa uma bonita poltrona de madeira, com assento e encosto de legítimo couro, presente de um irmão para nossa mãe.

Estávamos admirando a cadeira quando a Bina surge na varanda e muito feliz externa a sua alegria pela "chegada da cadeira da Nhá Sylvia", como ela dizia.

Todos nós participamos da sua alegria, mas não a decepcionamos. Somente mais tarde lhe dissemos a verdade.

No aconchego da nossa família, do carinho que dedicávamos, viveu a sua longa vida: 108 anos de muito trabalho, de muita dedicação e de muita saúde.

Internada no Hospital Augusto de Oliveira Camargo, desta cidade, nos últimos meses de sua existência, para ter melhor assistência, pois o peso dos anos a mantinha quase sempre na cama, veio a falecer dormindo, posição em que foi encontrada morta, numa certa manhã."


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Notas de Eliana Belo Silva:

(1) Texto publicado originalmente no Jornal Votura de 22 de fevereiro de 1991 e depois no livro "O Tempo e a Gente", publicado pela autora em 1997.

(2) A autora se refere ao avô materno dela, Joaquim Galvão de Barros Leite, fazendeiro escravocrata. Em seu texto "Notas sobre os escravos de Indaiatuba" (publicado originalmente no Jornal Votura de 18 de janeiro de 1991), a autora registra que esse avô foi proprietário de uma fazenda onde mais tarde seria o Jardim Morada do Sol e também da Fazenda Boa Esperança. Os escravizados nessas fazendas receberam o sobrenome do proprietário: "Galvão" - como Querubina e seu irmão gêmeo, e "Barros Leite".

(3) Lei Áurea, sancionada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, abolindo a escravidão no Brasil. 

(4) Donária Augusta Galvão de Paula Leite, casada com Luiz Teixeira de Camargo.

(5) MARISTELA, Frei Galvão - Bandeirante de Cristo. Ed. Escolar, Profissionais Salesianas, 2a. edição, 1978.

(6) A autora conta que: "Manoel Galvão de França, [...] depois de ter recebido os Sacramentos, pediu o crucifixo e mantendo-o nas mãos, disse à família: esse crucifixo recebemo-lo de Frei Galvão. Desejava que depois de morto lhe tirassem das mãos e o entregassem ao filho mais novo, Joaquim. Aí acrescentou: "fiquem vocês sabendo que foi Frei Galvão quem deu a este crucifixo a indulgência da morte". Dirigindo-se á filha mais velha, disse: Tinhanhã, você é a responsável para que ele seja entregue a Joaquim". Ficaram os filhos muito tristes com a última vontade do pai, pois que pois queriam entregar o crucifixo ao irmão mais novo. [...] Semanas depois do falecimento de Manoel, apareceu na fazenda do seu filho Joaquim a escrava Germana. Trazia sobre uma almofada com o maior respeito o crucifixo acompanhada de outras pessoas como em procissão, para assim cumprir a instância de Tinhanhã, a última vontade do pai." 

(7) Também conhecido como Barrindo, Inácio de Paula Leite de Barros foi proprietário de uma fazenda chamada Bairrinhos em Itaici: afirma a autora que parte dessa fazenda hoje é o Vale das Laranjeiras. Era proprietário também da Fazenda Solidão. Ainda segundo a autora, "ele tinha muitos escravos" e todos foram registrados e batizados com o sobrenome dele: Paula Leite ou Paula Leite de Barros. Ele foi dono de uma casa no antigo Centro de Indaiatuba, na Rua Pedro de Toledo - Herdada por Messias - a qual foi vendida para o Dr. Adib Pedro e que depois pertenceu a Eduardo Guimarães Fernandes. Nesta casa, durante muito tempo, funcionou o jornal Tribuna de Indaiá. A construção original não existe mais.


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