sábado, 19 de março de 2011

Mapas

texto de Rafael Henrique Wolf*

Na primavera de 1993 eu estudava na EEPSG Joaquim Pedroso de Alvarenga, como era chamada na época. Era um aluno da sétima série e tinha treze anos de idade. Lembro-me com saudade desse tempo onde a minha vida era simples e objetiva, sem grandes felicidades, mas principalmente sem grandes tristezas.

Vivia nessa escola, já que duas manhãs por semana eram reservadas para as aulas de Educação Física, enquanto nas tardes estudava as outras matérias. Era uma correria nesses dias de Educação Física, pois, morando nas Chácaras do Trevo, tinha de pegar um ônibus às seis e meia da manhã (o primeiro e único), praticar as atividades estipuladas pela professora e voltar para casa correndo, literalmente, sempre na subida, como deve saber que ainda passa por lá rumo ao centro da cidade. Não sei como não me tornei um marotonista. Chegando em casa era banho, almoço e de volta ao ponto de ônibus, com uma colega que me chamava em casa e um colega a quem chamávamos em sua casa. Cinqüenta minutos antes do início das aulas, já estava na escola de novo.

Costumava passar o tempo com os colegas ou então ia até à biblioteca, onde sempre havia algo interessante. Posso dizer que minha ambição intelectual era quase insaciável. Queria saber de tudo, e num mundo sem internet e TV a cabo era lá a minha base de informações. Naquele dia específico a grande novidade era a chegada de um novo mapa-múndi, contendo as nova nações surgidas após a derrocada do comunismo russo. Letônia, Estônia, Arzebaijão, Geórgia, Tadjiquistão e Turcomenistão eram nomes novos e fascinantes, e como desde a mais tenra infância tinha obsessão por saber em que lugar do mundo eu estava (certa vez pedi de presente de aniversário um simples globo terrestre), o que eu mais queria era ver a exata localização das novas nações. O inspetor e bibliotecário Antônio Carlos, a quem chamo ainda hoje quando o vejo nos jogos do Primavera de “Inspetor”, foi quem me mostrou o novo mapa, que e eu fui logo estendendo na mesa para analisar. Chamo essa época de “Era Romântica da Informação”. Puxa, foi ontem!

Já estava começando a decorar o nome de algumas capitais quando senti a fragrância de um perfume delicioso, e ao levantar os olhos vi a dona desse perfume, na porta, olhando diretamente a mim. Quando cruzamos o olhar, ela sorriu e veio até onde eu estava, e foi logo perguntando:

- Oi! O quê que você tá fazendo?

Érica. Conheci várias. Acho que um daí ainda me caso com uma. Mas nenhuma jamais foi ou será taaaão linda quanto aquela. A mais bela de uma classe com várias meninas belas, por quem nós meninos babávamos e nos humilhávamos por um pouco de atenção. Como você já percebeu, elas vinham até mim, mas é deprimente dizer que havia uma diferença entre o interesse delas por mim e pelo garotos “bonitos e atléticos”, como diziam. Eu era o inteligente. Isso diz tudo, certo? E se estou pintando a Érica para vocês como a “Bela”, é natural que a mim coubesse a alcunha de “Fera”, sem nenhuma fada no meio. Peraí! Não me imaginem como vocês vêem nos filmes! Eu não usava óculos, não era gordinho e adorava futebol! Acho que esse comentário é meio estereotipante e tem certa dose de preconceito, mas acredito que devo ser perdoado, pois ou apenas um rapaz latino-americano (cadê o sentido disso?).

- Oi! Eu tô olhando esse mapa novo que chegou. Ele tem as novas nações européias.

- Me deixa ver. Mostra pra mim.

A Érica não falava comigo exclusivamente para me pedir cola ou ajuda com questionários e trabalhos escolares. Era uma das poucas com quem falava sobre variados assuntos. Por isso é claro que minha fascinação por ela era dez vezes maior. E, como disse acima, eu era o inteligente, e por conta disso sabia o meu lugar. Se apenas eu e ela sobrássemos vivos, a raça humana seria extinta, com certeza. Penso que ela também me achava fascinante, como quando a gente vai no zoológico e vê algum animal esquisito. Diferentemente da maioria dos outros aluno da 7ª A, eu a conhecia a menos de um ano, e acho que ela nunca conheceu um menino inteligente até então, daí o fascínio (que convencido eu pareço quando escrevo “menino inteligente”, não?, mas pessoalmente eu não era nem sou assim, apenas digo a verdade: eu só tirava “A”, só “A”... Vai dizer que uma pessoa assim não é inteligente?).

Ela deu a volta e se abaixou para olhar os lugares que eu apontava. Uma força sobrenatural impelia meus olhos para seus seios, mas a respeitava demais e me controlei. Depois disso ela se sentou na minha frente e me perguntou:

- Queria saber uma coisa. Por que você é assim?

- Assim como?

- Você fica aí olhando mapas! Ninguém faz isso!

“Eu quero ser seu cachorro”, canta Iggy Pop. O rostinho dela nessa hora era algo indescritível. No entanto, aquelas palavras tocaram-me profundamente. Onde quer que fosse, eu me considerava parte do “grupo”. Apenas um átomo entre átomos semelhantes. Mas ninguém fica olhando mapas, só eu. De repente percebi que não fazia parte de “grupo” nenhum. Estava fora, deslocado. O mundo desejava que eu me conformasse às suas ordens. O sistema havia enviado uma de suas melhores agentes para me dar o aviso. Meu corpo estava mudando. O corpo da Érica estava mudando, e como! Era preciso que minha mente também mudasse. Era preciso jogar o jogo. Uma simples tarde de um dia comum. Uma simples biblioteca, um simples aluno e uma simples estonteante aluna. A verdade da vida se revelou para mim. Depois de mudado, talvez até tivesse uma mínima chance de namorar com a Érica, algo como uma em um milhão. Mas seria uma chance, e é o que basta para alimentar anos de ilusão. Começaria respondendo a pergunta:

- Sou apenas curioso.

- Ah, tá. Vamos subir para a sala? Já vai bater o sinal.

Fomos caminhando lado a lado. Quisera eu que fosse de mãos dadas. Imagine que está tocando ao fundo a música “All I have to do is dream”, do grupo Everly Brothers. Mas, tudo bem. Minha personalidade dali para frente iria mudar. Entraria no “grupo” nem que fosse a fórceps. Garotas como a Érica passariam a me olhar como um igual. Inferior, mas igual.

Quase uma década depois eu a vi no shopping. Seria bom se fosse algo como “ela estava descendo pela escada rolante e eu subindo para ir ao cinema, e ao passar um pelo outro nos reconhecemos e sorrimos, cheios de alegria”. Não foi. Estava no último ano de faculdade e havia feito provas duríssimas ao longo da semana. Deixei a Unicamp aliviado e só pensava em relaxar assistindo ao filme do peixinho fujão. A fila para entrar estava gigantesca, e o dono estava quase tendo um ataque de nervos tentando organizá-la. Na minha frente havia uma mulher com uma criança pequena, de uns seis anos de idade. Não tinha um perfume marcante nem o cabelo era tão bonito. Era um pouco mais baixa que eu e já tinha uma certa barriguinha. A calça jeans não moldava tão bem o bumbum. Era ela. Descobri isso quando já estávamos entrando na sala e a menina deixou o ingresso cair e se abaixou para pegá-lo. A mulher se virou e cruzamos o olhar, como naquele dia. Só que dessa vez não houve sorriso. Ela pegou a menina e entrou apressadamente. Eu fiquei tão chocado que não consegui dizer nada. Entrei devagar e sequer tentei localizá-la. Não aproveitei o filme como gostaria, e voltei para casa tão logo a sessão terminou.

Bem sei que as pessoas mudam. Não tem jeito, é um fato. A Érica mudou. Estava acabada. Eu diria que também “mudei”. Ainda leio mapas.


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* Originalmente publicado no Livro "Um Olhar sobre Indaiatuba" (1) em 2006.

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