quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 9

Capítulo IX - Aflição e Desdém



Amanhecia a sexta-feira, dia 6 de dezembro de 1907 (1) . Dona Meritá arrumou as coisas de Domenico e dos outros hóspedes, estranhando a ausência do moço.

Por que ele não haveria de ter voltado? Nem ao menos para buscar o guarda-chuva?

Na noite anterior, mandara que suas filhas procurassem o jovem hóspede pela cidade, busca fácil, considerando o tamanho da cidadezinha. Mas as meninas retornaram para fugir da chuva que caia desde o dia anterior, ora indo, ora vindo. Não acharam, nada viram sobre ele. Andaram por todo o Largo da Matriz, por todo o Largo da Cadeia, mas ele não estava em lugar algum.




Largo da Matriz – A Igreja Nossa Senhora da Candelária sem as torres.
Foto do acervo do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba – Fundação Pró-Memória de Indaiatuba

O carpinteiro Hugo também estivera ali na noite anterior, ela perguntou também para ele sobre o paradeiro do jovem italiano, mas aquele também nada sabia. Concentrada em seus afazeres, esqueceu durante um tempo o assunto e foi cuidar da rotina, cuidando dos cinco filhos e da pequena hospedaria. Urgia iniciar os preparativos para o almoço.

O relógio da matriz Nossa Senhora da Candelária batia três horas da tarde naquela sexta-feira, quando Antônio foi até a venda de Adão, que funcionava normalmente, como se aquelas paredes não tivessem sido testemunhas do ato covarde que transcorrera no dia anterior. Assim como eles, todos os outros moradores da cidadezinha levavam a vidinha de sempre, mal supondo o abalo que levariam, sem desconfiar da lamentável cena que ali se desenrolara. Os dois foram até o fundo do quintal. Antônio mostrou-se receoso, dizendo que a quantidade de terra jogada por eles no final da tarde anterior havia sido pouca.

Adão ficou muito agitado com o comentário, disse que Pedro Sargentelli se recusara a continuar o serviço. E como se cobrir totalmente o poço realmente fosse uma forma eficaz de encobrir o frio assassinato, logo procurou outra pessoa, desta vez o preto Delfino, figura conhecida na cidadezinha para continuar o aterramento; “ele era discreto, quase não falava, meio retardado e muito forte (2).” Seria a pessoa ideal.

Ao depor (3) , Delfino de Moraes, 40 anos, disse que, ao perguntar por que haveria de entupir um poço até então descoberto, o contratante respondeu: “tenho irmãos pequenos que podem cair ali.”

Mario Dotta, que escreveu “A Tragédia da Rua Candelária”, narrou o envolvimento do preto Delfino no episódio:
“... exigem eles esforço excessivo do negro Delfino, que trabalha quase sem descanso, num esforço extenuante.... Delfino não agüenta o ritmo do serviço e quer desistir. É estimulado de novo com novas promessas convincentes, mas tem de terminar na mesma noite o serviço. O peão bronco começa a assustar-se. Sem imaginar os motivos, a natureza rude do peão adverte que há algo de inconfessável na tarefa aloucada. A insistência é demais ...”

Por fim, Delfino entupiu o poço com tudo o que havia de terra no quintal, deixando o terreiro bem limpinho. E como ainda só havia aterrado o poço até um pouco mais da metade, Adão deu um pano para que fosse esticado na boca e preso nas bordas, recoberto e disfarçado em seguida com mais um pouco de terra.

A mãe de Adão, Rosália R., (4) de 42 anos, italiana, casada, era colona da Fazenda da Dona Escolástica mas sempre vinha até a venda do filho para visitá-lo e ajudar na arrumação e limpeza .




Casarão do Pau Preto na fazenda de dona Escolástica, onde a mãe de Adão era colona
Foto do acervo do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba – Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Com essa intenção, chegou e entrou no quintal no momento em que Delfino e Adão raspavam o terreiro, jogando tudo o que podiam dentro da cisterna. Começaram a conversar, Adão dizendo que o poço estava sendo entupido para que o seu cavalo, que seria colocado ali, não caísse no buraco, como já havia ocorrido em outra ocasião, com um conhecido dele. Naquela altura, a mãe, totalmente isenta de qualquer desconfiança, mudou de assunto e começou a aconselhá-lo a não se casar, como ele estava desejando. Entre uma frase e outra sobre o namoro que ele matinha com uma moça, que também morava na colônia da Dona Escolástica (5) , Adão mudou a versão da história distraidamente, e disse que estava enchendo o poço a conselho de Antônio N.

Dona Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro, filha do então escrivão Luiz Teixeira de Camargo, conta, em seu livro “O Tempo e a Gente”, que seu pai, tendo tomado conhecimento do desaparecimento do moço pela aflição de Dona Meritá, dirigiu-se até a venda de Adão, com a desculpa de olhar o campo de bocha que havia no quintal.


“Ao entrar na venda notou certo nervosismo no Adão R., que respondia às perguntas com evasivas... referiu-se ao campo de bocha, ao que ele repentinamente disse ter acabado com ele porque atrapalhava os negócios. Meu pai, porém, foi entrando para o quintal e ele na frente se afastando, na tentativa de impedir a chegado ao quintal, mas quando meu pai lá chegou, assustou-se com o que viu. Não existia mais uma árvore sequer e o chão estava raspado com uma enxada! Uma limpeza completa e perfeita. Não mais existia o campo de bocha. Havia desaparecido. Curioso, meu pai perguntou-lhe por que tudo aquilo? Ao que ele respondeu: “Para entupir o poço velho que nada mais valia, por estar seco e causar preocupação, estando aberto sem necessidade ”.(6)


Sábado, 7 de dezembro de 1907. Havia três dias que seu filho Domenico tinha saído de São Paulo para Piracicaba. Por que não enviara nenhuma carta? Por que não mandava notícias conforme tinham combinado? Era o início de um fim-de-semana cheio de angústia para os pais que, naturalmente, esperavam notícias do filho no máximo até o dia seis. Mas arrastaram-se as horas desses longos dias e o carteiro não trazia carta nenhuma.

Sr. Modesto e Dona Vincenza estavam preocupados. De início não demonstravam isso um para outro, cada um com a intenção de acalmar o parceiro. Mas a contenção tinha limite. Em dada hora o senhor Modesto De Luca foi até a estação da Sorocabana e passou um telegrama para o filho no Hotel Bela Vista, em Piracicaba. Mas não obteve resposta. Assim a preocupação aumentou. O casal entreolhava-se, buscando na feição do outro uma resposta inexistente, uma calma ausente.

Modesto tinha dado ordem ao filho de escrever todos os dias acerca dos negócios que andasse fazendo. Mesmo que uma primeira carta tivesse sido extraviada, a segunda, escrita no dia seguinte, deveria já ter chegado!

Domenico era um moço obediente, não teria deixado de escrever por motivo nenhum, portanto deveria ter lhe acontecido alguma coisa. Estaria ele doente em alguma cidade desconhecida? Teria sofrido algum acidente?

Com estes pensamentos, Modesto foi outra vez na estação da Sorocabana e passou em telegrama para um conhecido seu em Piracicaba, o senhor Atílio Colli, pedindo-lhe notícias do filho.

Neste mesmo sábado, em Indaiatuba, o pai de Adão, Sr. Thomaz R., (7) 48 anos, perguntou ao filho por que tinha mandando entupir o poço do fundo do quintal, e obteve a seguinte resposta: “Para não cair nenhum animal.” Quando foi interrogado , no dia 15 de dezembro, o pai limitou-se a declarar que não sabia de onde o filho conseguira o dinheiro que tinha e que sabia que era amigo de Antônio N. e de Eugênio C., com quem sempre jogava cartas. Nada mais acrescentou como testemunha, nem mesmo a favor do filho.

Mais tarde, Dona Meritá Bertolotti encontrou Adão na Rua Candelária e perguntou se havia visto Domenico, contando-lhe o estranho fato de ele não ter retornado para a pensão. Dias mais tarde, contando esse fato em depoimento, Dona Meritá disse que não notara nenhuma estranha reação em Adão quando ele respondera que não, que... “não sabia dele.”

O carpinteiro Hugo também perguntou se ele sabia do moço, uma vez que havia ouvido de Dona Meritá comentários sobre o singular sumiço, ao que ele respondeu.

“- Acho que ele foi até o Mato Dentro procurar milho para comprar e ainda não votou...”

Com rumores da procura sem sucesso de Dona Meritá, o assunto começou a ser ventilado no lugarejo, ainda que discretamente. Onde estaria o jovem comerciante italiano, que deixara suas coisas no hotel e fora visto pela última vez, com Adão?

Ao cair dessa tarde, Adão, Eugênio e Antônio reúnem-se descaradamente na venda, sem nada falar, apenas para continuar a rotina que julgavam jamais seria abalada: montaram a mesa do carteado com os colegas Ernesto Laurenciano e Ernesto Campi e ali passaram descompromissado tempo.

Estavam temerosos sim, mas o dinheiro que portavam perturbava-os em demasia, e por isso não disfarçavam a opulência. Não conseguiam dissimular a nova situação e jogavam alto demais para os outros companheiros, que começaram a ter uma suspeita indefinida, que foi tomando força na medida em que se passaram os dias.

À noite, vários patrícios foram dançar numa festa na colônia da Fazenda Bicudo. Pascoal Matteo (8), 38 anos, solteiro, italiano e sapateiro, contou em depoimento que, nessa festa, alguns colegas se reuniram em volta de uma mesa para jogar, entre eles, Adão, Antônio N. e seu cunhado Nicola, sendo que o jogo se prolongou até “...as quatro horas da manhã.” Pascoal também presenciou naquela madrugada de domingo o momento em que Nicola, Adão e Antônio N. combinaram de ir para São Paulo no dia seguinte, segunda-feira.

Em São Paulo, no crescimento efervescente do bairro do Brás, a aflição dos pais aumentava.

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(1) As informações desse capítulo foram retiradas dos Autos do Processo.
(2) DOTTA, 1985. p.22.
(3) O depoimento de Delfino de Moraes tem início na página 34 do primeiro volume dos Autos do Processo.
(4) O depoimento de Rosália R. tem início na p.124 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.
(5)  Na época do crime, Escolástica Angelina da Fonseca era dona da Fazenda Pau Preto, viúva de Joaquim Emigdio de Campos Bicudo, com quem teve 8 filhos. Quando Joaquim faleceu com apenas 48 anos Escolástica assumiu os negócios, entre eles a primeira máquina de beneficiar café, instalada na tulha do Casarão Pau Preto.
(6) SANNAZZARO, 1997, p.227
(7) O depoimento de Thomaz R. tem início na p.31 do 1º.vol.  dos autos do processo.
(8) O depoimento de Pascoal Matteo tem início na p.173 do 1º. vol. dos autos do processo.

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