Ensaio de Charles Fernandes
Há muitas narrativas acerca da fundação do município de Indaiatuba, muitas delas contraditórias, ou de complexa relação devido a existência de diversas lacunas documentais que, se encontradas, poderiam clarear de maneira mais efetiva a história dos primeiros aglomerados de fogos, como eram chamadas as casas, nos primórdios da ocupação da região, onde atualmente é delimitado o município.
A PARAGEM DE INDAIATUBA
Uma das narrativas masi divulgadas atualmente é de que o aglomerado de fogos que era denominado “Paragem de Indaiatuba” no final dos anos 1700, desenvolveu-se e veio a se tornar a cidade de Indaiatuba. Esta narrativa está mais relacionada de modo a consolidar a atual Igreja da Candelária como núcleo da criação do centro urbano e leva ao Tenente Pedro Gonçalves Meira o título de "Fundador". Documentada desde a década de 90 do século XVIII, a Paragem de Indaiatuba é metade do caminho entre Itú e Campinas e pouso obrigatório na viajem que duraria dois dias. Ainda nesta década, o aglomerado de fogos é citado em recenseamentos como sendo bairro de Itu. Em 1813 é curada a primeira capela dedicada a N. Sra da Conceição, que possivelmente já havia lá há ao menos duas décadas, em 1830 vira Freguesia e só em 1839 é curada a nova igreja da Candelária, construída literalmente em torno da antiga capela.
Nilson Cardoso de Carvalho, notável pesquisador e memorialista indaiatubano, descreve através de vasto documentário, principalmente títulos de propriedade, censos e testamentos, todas as informações acima relacionadas que indicariam o nome do Tenente Pedro Gonçalves Meira como fundador. Este personagem fez fortuna no sertão, adquiriu terras às margens do Ribeirão Indaiatuba (atual Córrego Barnabé), participou efetivamente da história da criação da cidade de Campinas, naquela época chamada de São Carlos, e foi sepultado sob o solo de sua capela, atualmente piso da Igreja da Candelária, nas suas terras no bairro de Indaiatuba, de Itu, em 1813, curiosamente no mesmo ano em que sua capela fora curada. Das conclusões de Nilson, com base em tantos documentos utilizados como fontes primárias, não há do que discordar.
No entanto, trazer a fundação de Indaiatuba à luz da documentação do final do século XVIII, possibilita relevar um passado muito mais antigo e (ainda) pouco documentado, cercado de lendas, de transcrições de anotações cheias de floreios, subjetividades e nomes de localidades que não existem mais.
Com base em fontes ainda não tão robustas como a de Nilson, existem ainda outros dois nomes que não podem ser deixados à margem da oriem da cidade e que transportam nossa ocupação original a tempos muito mais antigos, seiscentistas e setecentistas. Assim, proponho considerar a origem do que é hoje Indaiatuba considerando outros dois personagens, mesmo tenho sido Pedro Gonçalves Meira o que recebeu a honraria de ser elevado à fundador oficial.
AS TERRAS DO PAI PIRÁ
Um destes nomes remonta às primeiras décadas dos anos 1700, quando se instalava na margem do Rio Jundiaí, onde hoje é Itaicí, um assentamento de 600 índios Bororós, originários da região dos rios Cuiabá e Caxipó, trazidos pelo bandeirante Antonio Pires de Campos, chamado de Pai Pirá (1).
[...] Em Itaici os rios Jundiaí, Piraí e Votura eram caminhos via canoa. Por terra havia picadas, como as que tinham origem do Peabiru de Sorocaba e o caminho de São Paulo via Santana do Parnaíba: estas seguiam para a estrada do Anhanguera em direção a Goiás. Foi por aí que começou a aparecer a futura Indaiatuba, como pouso para os viajantes e tropeiros (GODOY, 2014, p. 14 e p.17). (2)
Antonio Pires de Campos, teria saído em bandeiras pelo sertão ainda menino, acompanhado de seu pai, o sertanista Antonio Pires de Campos e do famoso bandeirante Anhanguera, Bartolomeu Bueno da Silva. Em 1673 a 1682, seu pai e o Anhanguera, teriam descoberto a mítica Mina dos Martírios, que nunca mais foi localizada novamente.
Em 1718, Antonio Pires de Campos retorna a este local em busca da Serra dos Martirios, subindo o Rio Cuiabá e na região da barra do Rio Caxipó, encontrou índios Bororós, tendo capturado-os e trazido a Itu.
Existe vasta documentação que afirma que, em cerca de 1700, seu quartel era localizado onde atualmente é o mosteiro jesuíta chamado de “Mosteiro de Itaicí”, antiga Fazenda Taipas, de onde o Pai Pirá promovia entradas no caminho dos Goyases, e no caminho do Peabiru, para Curitiba por Itu e também em monções seguindo o Tietê por Porto Feliz, sempre em busca de riquezas, principalmente minerios preciosos. Muitos recursos foram trazidos que não ficaram tão próximos de Itu, mas sim em local onde quase antes nada havia da civilização branca, nas margens esquerda do Rio Jundiaí, área que foi ocupada, e usada para manter os bororós "aldeados". (3)
Pai Pirá deixou Indaiatuba, quando foi chamado pelo governo português a se apresentar, devido a seu grande poder em homens e recursos, e com medo de retaliação da Coroa, mudou-se para Cuiabá onde acabou servindo como Capitão Mor de Mato Grosso.
Sob uma narrativa cronológica, poderíamos citar o Pai-Pírá, como Antonio Pires era chamado por “seus” índios, como mais provável "fundador" (4)- de Indaiatuba, e indicar que a cidade teria início em Itaici e não nas margens do Ribeirão Indaiatuba, junto da capela de Indaiatuba.
Esta possibilidade tem muito efeito quando levamos em conta todo o território do atual “Município de Indaiatuba”, composto originalmente de quatro bairros pertencentes a Itu, denominados Piraí, Jundiaí (ao qual pertenciam originalmente Itaíci e o Centro de Indaiatuba), Mato Dentro e Burú, mas perde força quando falamos da CIDADE de Indaiatuba que teve início com a denominação de Paragem e abrangia a região alta e plana entre o Rio Jundiaí e o Ribeirão Votura, também chamado de Ribeirão Indaiatuba ou Ribeirão dos Cocaes, atualmente Córrego Barnabé.
O POVOADO DE VOTURA
Mas há ainda terceira narrativa, mais antiga ainda, sobre a origem de Indaiatuba, que nos remete a uma lenda, de um certo José da Costa, de uma vaquinha e da imagem de nossa senhora da Candelária, que muitos ouviram na escola, descrita por Francisco Nardy Filho em sua obra “A Capella de Coccaes”, um relato que junta fantasia, romantismo, dados geográficos de um local abandonado e uma igreja que estaria em um outro local.
Não conseguindo separar fantasia de história, pauso minhas citações a Nardy e passo a citar os memorialistas Scyllas e Caio Sampaio, que, assim como Nilson, baseiam suas informações em documentos antigos e registros da Vila de Itu.
Em meados do século XVII, registros feitos na Vila de Itu podem identificar a existência de um José da Costa Homem, casado com Luzia Leme de Brito, que é citado em vários inventários e testamentos atribuídos a pessoas de famílias detentoras de terras e quantias de dinheiro. Também seria cunhado de Antonio Bicudo de Brito, que foi juiz do testamento do fundador da Vila de Itu.
Pesquisas feitas e disponibilizadas até o momento, em documentos transcritos e em estudos de genealogia paulista, não apontam nenhum outro José da Costa, desde a fundação de Itu, até o final do século XVIII, onde entra em cena a figura do Tenente Pedro Gonçalves Meira.
Portanto podemos conjunturar, até o momento, que existiu um único José da Costa, neste local e época, marcada pelo início da ocupação destas terras, que era casado com herdeira de terras em Itu, e tem como parentes, herdeiros de terras que são relacionados diretamente com o fundador da Vila de Itu. Este José da Costa Homem, teve como prole apenas filhas: Annica, Zabelinha e Mariquita, como são chamadas no testamento do tio.
José da Costa teria falecido entre os anos de 1675 e 1686. O testamento de seu cunhado, Antonio Bicudo de Brito, onde José da Costa é também citado, foi feito por Pedro Gonçalves Meira, O JUIZ, que seria ascendente do já citado TENENTE Pedro Gonçalves Meira (curador da capela original de Indaiatuba no local da atual matriz).
A história de José da Costa, como "fundador" de Indaiatuba, foi relatada pelo autor Azevedo Marques em 1879 e posteriormente por Francisco Nardy Filho no início do séc. XX. O Maestro Nabor Pires de Camargo, em suas memórias, relata que a Fazenda Votura, propriedade de sua família, era o local do primeiro assentamento que deu origem a cidade de Indaiatuba.
Segundo o memorialista Scyllas Sampaio, há relatos de que nas terras de José da Costa, havia um aglomerado de fogos, chamado de Votura. O nome VOTURA vem do Tupi - Guaraní e significa colina, morro, ou água do morro.
Segundo Scyllas, o povoado de Votura era localizado entre o Córrego do Votura (Barnabé) e o Rio Jundiaí, próximo da junção entre estes corpos hídricos, local onde se encontra, atualmente, parte do Distrito Industrial.
Em 1924, foram descobertas as RUÍNAS DE VOTURA, ruínas de um vilarejo que foram atribuídas por Scyllas como sendo Votura, relatando a existência de casas e a fundação de uma capela não acabada em taipa de pilão, descritas com detalhes por Scyllas e Caio.
Conforme a descrição, esta Votura estaria localizada em terreno próximo a áreas alagadiças, entre o atual Córrego Barnabé e o Rio Jundiaí, também era pouso de viajantes, no caminho entre Itu e Campinas. Estes viajantes acabaram trazendo uma epidemia de Bexigas (varíola) que dizimou o povoado. Os sobreviventes teriam sido levados a buscar local mais elevado, drenado e seco, localizado a uma (1) légua (cerca de 5km) de distância de Votura numa área plana e elevada, ainda região dos COCCAES, posteriormente este local seria chamado de Indaiatuba.
O que somos levados a afirmar é que a Votura descrita por Scyllas e o centro histórico de Indaiatuba seriam duas localidades diferentes, duas histórias distintas a se contar, razão pela qual, há contradições em suas descrições e datações.
No relato de Nardy, José da Costa teria edificado uma capela em homenagem a N. Sra da Candelária, como fez Domingos Fernandes, em Itú. No entanto, existem mais de 150 anos que separariam a construção da atual Igreja da Candelária, de 1839, da capela de Votura. Fosse ela atribuída a este José da Costa, dataria do Sec. XVII.
Parte dos relatos afirma uma capela de N. Sra. da Candelária se estragou, e foram então construir outra.
José da Costa não tem relação com a atual Candelária, pois a capela que antecedeu a atual Candelária era dedicada a N. Sra da Conceição, curada em 1813, e localizada exatamente no mesmo local. Esta capela somente fora demolida na ocasião da inauguração da matriz que era muito maior, esta capela não se estragou, ela foi substituída por uma maior, e sua padroeira, ainda não era Candelária.
A Votura perdida, descrita por Scyllas, seria localizada nas terras de José da Costa Homem, em cerca de fim dos anos 1600, possivelmente possuía uma capela cuja padroeira seria N. Sra da Candelária. Esta Votura teria sido dizimada por epidemia, abandonada, sua capela se estragou, sua população sobrevivente buscou outro local mais seguro e seco, tendo se estabelecido a cerca de 5km dali, em local que foi conhecido posteriormente como Paragem de Indaiatuba.
Haveria uma lógica em se relacionar esta Votura com as terras do Pai Pirá, pois além de serem locais muito próximos, ambos os povoados seiscentistas e setecentistas, pertenceriam ao ciclo bandeirista, e teriam relação com as entradas para o sertão e ao pouso de viajantes, e ambos se utilizam do Rio Jundiaí como meio de transporte. A Paragem de Indaiatuba já pertenceria ao ciclo da cana de açúcar, segunda metade do Sec. XVIII, cerca de 100 anos depois, e utilizaria o caminho pavimentado entre Itu e Campinas, traçado sobre espigões que passam pela região.
AS TRÊS NARRATIVAS
A Votura descrita por Scyllas não existe mais, talvez apenas parte de suas ruínas. Seu fundador, José da Costa (5), virou lenda, eclipsado por Pedro Gonçalves Meira, e sua capela demolida foi confundida com outra que está a uma légua distante.
As terras do Pai Pirá foram chamadas assim por muito tempo depois de sua partida, atualmente são chamadas de Itaici. O ituano Antonio Pires de Campos cuja base de suas bandeiras era as terras na margens esquerda do Rio Jundiaí, e seu pai, Manoel de Campos Bicudo, são considerados fundadores da cidade de Cuiabá e de diversas outras vilas em Mato Grosso e Minas Gerais.
A cidade de Indaiatuba é real, seu fundador, o Tenente Pedro Gonçalves Meira está enterrado aqui e sua Igreja de barro ainda resiste.
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(1) Leia mais sobre a história do Pai Pirá no site do Vale das Laranjeiras, em texto recente produzido por Eliana Belo Silva aqui: https://valedaslaranjeiras.com.br/wp-content/uploads/2024/01/Historia-do-Vale-das-Laranjeiras-V6-final.pdf
(2) GODOY Leonardo - Pai Pirá - O Bandeirante de Itaici disponível aqui: https://www.amazon.com.br/PAI-PIRA-BANDEIRANTE-ITAICI-ANTONIO-ebook/dp/B01CDFYJRY
(3) Usei aspas para restringir o termo, uma vez que a relação entre o Pai Pirá e os bororós foi reestudada e nova tese foi apresentada em 2023. Isso você pode ler aqui: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/36866/1/Negocia%C3%A7%C3%B5esAgencimentosAldeamentos.pdf
(4) e (5) Oficialmente, Pedro Gonçalves Meira é o fundador da cidade, por ter curado a capela que se tornaria a Matriz Nossa Senhora da Candelária. O que proponho aqui, usando o termo "fundador" entre aspas é dar foco a outros originários ao local que hoje chamamos de Indaiatuba.
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