Deize Clotildes Barnabé de Moraes*
Era o aniversário do nonno.
Logo pela manhã, tão logo o sol nascia, a nonna ascendia o fogo a lenha na cozinha, preparava o café, fervia o leite e colocava um grande canecão com água para ferver. As tias, tiritando de frio, enchiam de lenha o forno, que ficava do lado de fora da casa, e tocavam-lhe fogo. As crianças, já de pé, tomavam o café às pressas e corriam ao terreiro, onde, sob as ordens da nonna, aos trambolhões recheados com grandes risadas, pegavam o maior frango, especialmente criado para essa data. Sem nenhum pudor ou melindre, a avó destroncava o frango, mergulhava-o na água fervente e passava a depená-lo com perícia e rapidez, tirando suas entranhas e lavando-o escrupulosamente. Sobre o buraco mais distante do fogão já se colocara uma grande panela de ferro com água. Dentro dela, logo que começasse a ferver, jogava-se o frango inteiro, incluindo os miúdos muito bem limpos, um pedaço generoso de toucinho, uma cebola inteira, um ramo de alecrim, salsa, cebolinha e o que mais houvesse com jeito de tempero. Minutos depois o cheiro do caldo já ia impregnando a casa e os arredores.
As tias, logo que o forno estivesse no ponto exato do calor, retiravam a lenha em brasa com uma longa vassoura feita de galhos verdes, deixando algumas brasas amontoadas nos cantos. Em seguida, colocavam a leitoa, marinada desde a véspera e tapavam a porta do forno, escorando-a com o cabo da vassoura e regulando o calor através de uma abertura no alto que podia ser fechada ou aberta conforme a necessidade de mais ou menos calor. Depois dessa tarefa, passavam a preparar a sobremesa, que teria que estar fria ao ser servida. Ralavam um coco, despejavam água fervente sobre as raspas e coavam, criando o leite de coco, que era misturado ao leite de vaca, açúcar e maizena e levado ao fogo, mexendo-se sempre para não encaroçar. Depois de engrossado, despejava-se em uma forma de buraco no meio que era colocada dentro de uma grande bacia de água fresca, para esfriar. A calda, feita com água, açúcar e vinho tinto, bem rala, era servida com as fatias do manjar, em pratos de sobremesa com grandes cachos de uva pintados no fundo. As crianças pequenas tinham certeza que eram aquelas uvas que soltavam a calda daquele doce!
A esta altura a nonna já enchera uma grande bacia com quilos de trigo que formavam uma montanha branquinha, fizera um buraco no meio daquele trigo todo e dentro desse buraco ia colocando dúzias de ovos inteiros, descartando as cascas com maestria. Com a mão direita começava a misturar o trigo com os ovos enquanto com a esquerda virava a bacia para ajeitar a massa. Depois de todo o trigo estar incorporado aos ovos, tirava o bolo de massa da bacia a passava a sová-la sobre a mesa, tornando-a lisa e elástica. As crianças, interessadíssimas, ficavam ao redor da mesa assistindo à mágica. Nesse ponto, era a vez do pau de macarrão entrar em ação. Era um longo pau, feito de um antigo cabo de enxada de guatambu, liso pelo uso. Separava-se a massa em dois ou três pedaços e trabalhava-se um de cada vez. Os pedaços que não estavam sendo trabalhados voltavam para a bacia, onde eram cobertos por guardanapos alvíssimos, para não perder a umidade. Com habilidade tecida ao longo de toda uma vida, o pau de macarrão, nas mãos da avó, ia moldando a massa e transformando-a numa grande roda, muito fina que, de tão grande, caía ao lado da mesa.
Enquanto a nonna abria a massa sob os olhares encantados das crianças, as tias retiravam da panela do caldo os miúdos do frango e o toucinho já cozidos e moíam-nos, juntando aos poucos farinha de rosca, queijo parmesão ralado e por último um pouco de noz moscada. Estava pronto o recheio dos cappelleti.
Abria-se então a grande mesa da sala de refeições, as crianças e as mulheres sentavam-se ao seu redor, a nonna dividia a massa em grandes tiras que cortava em pequenos quadrados que eram então distribuídos ao longo da mesa e todos, o mais rapidamente que podiam, faziam pequenas bolinhas de recheio, colocavam no centro do quadradinho da massa, dobravam em diagonal e depois juntavam as pontas do triângulo assim formado, dando à massa a forma do chapeuzinho, cappelleti, em italiano. As crianças muito pequenas demoravam em aprender, mas eram incentivadas pelas mais velhas e pelas tias e mães a acertarem. Quando erravam muito, podiam comer aquela massa disforme. Isso era uma festa para os maiores, que erravam de propósito, para comer a massa e principalmente o recheio. A festa acabava quando uma das mães, fingindo só aí ter percebido a manobra, retirava o levado da mesa por algum tempo, como punição pela falcatrua.
De vez em quando uma tia saía da sala para vigiar a leitoa e outra ia cuidar do arroz e da farofa no fogão. Depois voltava para a confecção dos cappelleti que, aos poucos, iam enchendo grandes peneiras de taquara cobertas com panos de prato e colocadas à janela para que a massa enxugasse. Chegava uma hora em que parecia que nada ia ficar pronto a tempo: as vozes dos homens já estavam em alto tom, a leitoa parecia que ia queimar, o arroz já estava cozido e os cappelleti não estavam prontos. Calavam-se as vozes das mulheres e das crianças, acelerava-se a produção e a nonna começava a arrumar o canto da mesa, colocando a toalha, os pratos e talheres.
Enquanto esse ritual se desenvolvia entre as mulheres e as crianças na cozinha e na sala de refeições, os homens, que já tinham cuidado do gado e das tarefas matinais, junto com o aniversariante, sentavam-se na soleira da porta ou na sala e jogavam baralho ou conversa fora. O avô dirigia-se ao porão, um lugar que ele julgava secreto, mas de domínio público (as crianças sabiam exatamente o que se guardava ali...) e escolhia o fiaschim de seu chianti preferido e guardado para as melhores ocasiões. Ao rolar do vinho, as vozes iam ficando cada vez mais exaltadas, até parecerem uma briga. Só parecia. Nunca havia briga de verdade.
O frango era retirado do caldo com a escumadeira e finalmente, os cappelleti já prontos eram entornados nele! Ao mesmo tempo, a leitoa era retirada do forno, pururuca e cheirosa.
Todos à mesa. O nonno à cabeceira, a nonna à sua direita, a grande terrina com os cappelleti in brodo à sua frente, ele ia servindo a todos, adultos e crianças, aquele caldo cheiroso e aquela massa saborosa. Depois era servida a leitoa com arroz e farofa e por último a sobremesa, a mais aguardada pelas crianças: manjar de coco com calda de vinho tinto.
Não havia parabéns nem presentes. Só a presença e a comunhão de todos.
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* Este e outros textos de Deize Clotildes Barnabé de Moraes foram originalmente publicados no livro
"Um Olhar sobre Indaiatuba" (I), publicado pela Fundação Pró-Memória de Indaiatuba em 2006, com apoio institucional da Câmara Municipal de Indaiatuba, sob presidência de Maurício Baroni, na gestão do então prefeito major José Onério da Silva.
Como bom descendente de italianos, adorei o post. Nada como uma mesa farta e a presença da grande "famiglia".
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