sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O ESPAÇO DA MORTE: a História de Indaiatuba contada através da análise de seus cemitérios

Quando criança, me lembro de ter participado de procissões. Lembro do caminho, de sair da Matriz e voltar após ter alcançado a altura do cemitério. Lembro também que, até o Cemitério da Candelária, o calçamento era de pedra, e além dele, chão batido. O cemitério da minha memória de criança, marcava o fim da cidade, além dele estava a indústria Villanova e além dela, só mato. 

Em estudo a diversas cidades que tiveram origem no Brasil colônia, poderíamos afirmar que o traçado de suas ruas pode ser descrito por uma procissão, que saía do  largo de uma igreja, pela rua de seu frontispício, que era também a principal da cidade, dirigia-se até o cemitério e voltava, indicando o Centro, a direção de maior desenvolvimento do lugar e o limite da periferia da cidade tradicional.

Que afirmação inquietante, saber que a criação do espaço urbano no Brasil e em especial, minha INDAIATUBA, tenha sido vinculado às tradições religiosas, e que a posição do local destinado aos sepultamentos indicaria, não só um limite de onde a cidade é, mas onde não seria mais destinada ao habitar, mas também a direção na qual se conduz seu crescimento.

 

Com base nesta afirmação, proponho analisar o desenvolvimento de minha cidade, com vista para seis diferentes sítios que foram ou são locais de implantação de cemitérios junto a nossa área urbana, e que trarão panorama dos vetores de crescimento e de suas velocidades, no desenvolvimento de nossa cidade.

O traçado do crescimento urbano visto através dos cemitérios como eixos


O Tenente Pedro Gonçalves Meira, edificou uma capela em suas terras, que teria comprado após enriquecer nos Goyases. Esta capela, dedicada à Nossa Senhora da Conceição dataria do final dos anos 1700, tendo sido curada em 1813, ano da morte de Pedro Gonçalves.  Esta capela se localizava onde hoje é a nave central da Igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária.  Nesta época, os mortos eram enterrados dentro da igreja (os ricos) ou no seu Largo (os pobres), que era o espaço de convívio localizado defronte ou em anexo. Pedro Gonçalves está enterrado no meio da nave da Igreja da Candelária dentro de onde havia a antiga capela. 

Entre cerca de 1791 até 1839, os sepultamentos eram realizados junto ou dentro da Capela de N. Sra. da Conceição, ou defronte da obra da Igreja da Candelária que literalmente abraçava a primeira capela e já determinava o que viria a ser o futuro Largo da Matriz. Abaixo do atual altar da Candelária, podem estar os primeiros túmulos da 'cidade colonial', pois a porta da antiga Capela da Conceição era voltada para o leito do Córrego de Cocais, invertida da atual posição, e ali era o antigo LARGO da capela original. Em um segundo momento, os sepultamentos seriam realizados na frente da Igreja em obras, atual Praça (que ainda é um Largo) Leonor Barros de Camargo. O último indaiatubano a ser tardiamente enterrado dentro da Candelária foi o Padre Cassimiro da Costa Roriz falecido em 1884, e que ganhou tal honraria por conta da enorme gratidão de toda Indaiatuba por suas décadas de serviço religioso. Registre-se que o ato de enterrar os mortos dentro das igrejas ou dos seus pátios já era tido como uma ação a ser banida, o que aconteceria com a Lei no. 1882 de 13 de agosto de 1908, com o objetivo de promover melhores condições de saúde pública e higiene, refletindo as mudanças nas práticas e conceitos de saneamento e cuidados com os cemitérios.

Em 1839, a atual Igreja da Candelária foi abençoada, e também o Cemitério São Benedito, localizado a pouco mais de 200 metros de distância em direção Nordeste pela Rua da Candelária, aproximadamente na face do quarteirão onde atualmente está o Bradesco (onde foi o Banco Mercantil). O perímetro urbano da cidade do Cemitério São Benedito terminava na Rua Nova, atual Bernardino de Campos onde seria o limite do terreno onde o cemitério era localizado. Outros limites desta cidade eram a Rua da Estrada, atual Rua 13 de Maio, por onde chegava o caminho para São Carlos (primeiro nome de Campinas), a Rua Direita, exatamente a frente do Largo, indicaria o eixo da futura Rua Augusto de Oliveira Camargo; a Oeste a Rua de São José, atual Rua Dom José; e nos fundos da Candelária, chácaras entre as quais, uma fora morada do padre Cassimiro, posteriormente chamada de Casarão Pau Preto.




Em 1868 foi provisionada a benção do Cemitério São José, no local onde atualmente se encontram a agência de Correios e o prédio da antiga prefeitura, atualmente uma loja de calçados. O cemitério foi demolido completamente em 1963, numa empreitada de modernização da Praça Prudente de Morais e que também levou a demolição da Casa de Câmara e Cadeia construída no ano de 1889.  Entre estas ocorrências, o prédio do correio também teria o início de suas obras em 1947 e entregue em 1962, o que ajuda a compreender a complexidade do sítio deste cemitério, e que acaba por proporcionar área que vai receber importantes prédios públicos da cidade em meados do século XX. A praça Prudente de Morais em 1963, duplica sua área, recebe o correio, a fonte luminosa, o novo coreto e o novo prédio da prefeitura, tornando-se importante centro administrativo e de comércio, conhecida posteriormente como Praça dos Bancos.  Este cemitério teve uma vida útil muito reduzida, tendo sido abençoado em 1868 e substituído poucos anos depois, indicando que ocorreu um crescimento não esperado da cidade, que acabou por estabelecer uma expectativa muito mais audaciosa para um novo perímetro urbano. O fato que possivelmente desarticulou as previsões da época, foi a chegada da ferrovia na cidade, em 1873

Em 1899 foi inaugurado o Cemitério de Taipas na Rua da Candelária, que se tornou local oficial de sepultamentos da Igreja Católica, e que reservava espaço de quatro metros em área de fundos para os sepultamentos não abençoados. Este Cemitério foi chamado de Taipas, pois seus muros foram edificados com esta técnica construtiva, semelhante aos muros da Igreja da Candelária e do Casarão Pau Preto. Este novo sítio demarcava não só os limites da cidade, mas a direção de onde acabariam por se instalar nos anos seguintes, as principais indústrias ocupando a região onde hoje é a Rua 24 de Maio e a Rua Humaitá. O Cemitério de Taipas era administrado pela igreja católica, que indicava onde e como as pessoas deveriam ser enterradas. Talvez também em decorrência desta gerência religiosa do espaço, logo foi instalado um cemitério municipal cuidado pela prefeitura. 

Em 1905, foi inaugurado o Cemitério Municipal, do outro lado da Rua Candelária, defronte ao Cemitério de Taipas, chamado de Cemitério de Pedras, devido ao material de construção de seus muros, em folheta de granito.  Fato curioso que, semelhante a cidade fictícia de Sucupira na obra de Jorge Amado, o novo cemitério construído seguia sem uso, até que a prefeitura resolve doar belo túmulo em granito para o primeiro sepultamento que ali ocorresse. A tradição oral conta que a primeira cidadã a ser enterrada lá, então matriarca da Família Barnabé, desdenhara da oferta concedida, na véspera de sua morte, sem saber que seria ela a primeira sorteada.

“Quem haverá de querer um presente desses? ” Teria dito Dona Andriana Barnabé.

Andriana Corne Barnabé, primeira pessoa sepultada no Cemitério de Pedras


Ambos os cemitérios são atualmente conhecidos como Cemitério da Candelária e os fatos acima descritos explicam a razão pela qual a rua passa entre estes dois locais.  Diferente do Cemitério católico de Taipas, todos podiam ser sepultados quase que irrestritamente no Cemitério de Pedras, e isso tem enorme reflexo na arte tumular destes dois locais. Taipas apresenta, em sua maioria, alegorias tumulares que tem fontes na tradição católica, enquanto Pedras é local multicultural, apresentando menções a sepultamentos protestantes, judaicos, de outras culturas, de imigrantes de diferentes localidades e nações. Visitar Taipas e Pedras com a sensibilidade voltada a observar a profusão cultural que formou nossas raízes indaiatubanas é passeio imperdível. Na ocasião da construção destes cemitérios, a área de periferia destinada ao uso industrial da cidade, era a Rua 24 de Maio e a Rua Humaitá, e o principal eixo de desenvolvimento urbano indicava a Nordeste, onde muitos anos depois foram implantadas as Avenidas Keneddy, Tamandaré e Conceição. 

Em 1977 foi idealizado o Cemitério Municipal Parque dos Indaiás, localizado na Alameda Doutor José Cardeal, que determinou uma guinada na direção dos vetores de crescimento da cidade, pela primeira vez a periferia da cidade, marcada pelo local do cemitério, deixa de ser determinada na direção nordeste e vai para sul, acompanhando o crescimento da cidade em direção a outros eixos. Nos anos que se seguiram a construção do Cemitério Parque dos Indaiás os limites da cidade deixam de ser o bairro Santa Cruz, e a linha da ferrovia não mais é impedimento ao crescimento urbano. Tem início a criação da populosa e dinâmica Zona Sul, onde se destacam os bairros da Morada Do Sol, Jardim Califórnia e Conjunto Brigadeiro Faria Lima. O cemitério Parque dos Indaiás, e posteriormente, o Cemitério Memorial em local adjacente, padronizam a construção das sepulturas, com isso finda a existência de arte tumular nos locais de sepultamento, fechando uma era de produção cultural e artística, voltada a construção de sepulturas.

Em 2023 é inaugurado o Cemitério Jardim da Paz, em terreno originalmente pertencente ao Conjunto Habitacional do Parque dos Pássaros, que mais uma vez marca guinada nos vetores de crescimento da cidade, desta vez, em direção à Zona Noroeste, ao Campo Bonito, Sabiá e Veneza. 


Levando em consideração a análise realizada das localizações de nossos cemitérios e o desdobramento de seus sítios, podemos realizar diversas afirmações e criar múltiplas narrativas sobre como se desenvolveu Indaiatuba. 


Podemos dizer que os horizontes de crescimento estabelecidos pelas pessoas que tentaram idealizar planos para o nosso traçado urbano, foram superados em pouquíssimo espaço de tempo. 

Podemos dizer que de quando em quando, a cidade foge das rédeas e se volta para direções alternativas.


Podemos dizer que os cemitérios levaram cerca de 100 anos para sair do Largo da Candelária até o Cemitério da Candelária, e que neste período, percorreram uma distância de apenas 1 (um) quilômetro. 

Podemos dizer que nos 80 anos seguintes, a velocidade dobrou, tendo se deslocado mais 2 quilômetros para outra direção gravitado pela nova Zona Sul.

Podemos dizer que em apenas 40 anos, mais que dobrou novamente sua velocidade, em nova guinada a Norte sendo lançado a 5 quilômetros na direção do Campo Bonito.


Se não fosse o carinho e respeito que temos pelos nossos antepassados, não poderíamos contar com tão impressionante conjunto de pegadas que nos faz vislumbrar o desenvolvimento de nossa cidade. Pois a cidade é dinâmica e expansiva, ao mesmo tempo recicladora e autofágica, escondendo suas marcas, revitalizando-as e transformando-as em novos habitats urbanos, exceto é claro, os espaços reservados à morte onde culturalmente, são livres da ação da modernidade.

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