quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 9

Capítulo IX - Aflição e Desdém



Amanhecia a sexta-feira, dia 6 de dezembro de 1907 (1) . Dona Meritá arrumou as coisas de Domenico e dos outros hóspedes, estranhando a ausência do moço.

Por que ele não haveria de ter voltado? Nem ao menos para buscar o guarda-chuva?

Na noite anterior, mandara que suas filhas procurassem o jovem hóspede pela cidade, busca fácil, considerando o tamanho da cidadezinha. Mas as meninas retornaram para fugir da chuva que caia desde o dia anterior, ora indo, ora vindo. Não acharam, nada viram sobre ele. Andaram por todo o Largo da Matriz, por todo o Largo da Cadeia, mas ele não estava em lugar algum.




Largo da Matriz – A Igreja Nossa Senhora da Candelária sem as torres.
Foto do acervo do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba – Fundação Pró-Memória de Indaiatuba

O carpinteiro Hugo também estivera ali na noite anterior, ela perguntou também para ele sobre o paradeiro do jovem italiano, mas aquele também nada sabia. Concentrada em seus afazeres, esqueceu durante um tempo o assunto e foi cuidar da rotina, cuidando dos cinco filhos e da pequena hospedaria. Urgia iniciar os preparativos para o almoço.

O relógio da matriz Nossa Senhora da Candelária batia três horas da tarde naquela sexta-feira, quando Antônio foi até a venda de Adão, que funcionava normalmente, como se aquelas paredes não tivessem sido testemunhas do ato covarde que transcorrera no dia anterior. Assim como eles, todos os outros moradores da cidadezinha levavam a vidinha de sempre, mal supondo o abalo que levariam, sem desconfiar da lamentável cena que ali se desenrolara. Os dois foram até o fundo do quintal. Antônio mostrou-se receoso, dizendo que a quantidade de terra jogada por eles no final da tarde anterior havia sido pouca.

Adão ficou muito agitado com o comentário, disse que Pedro Sargentelli se recusara a continuar o serviço. E como se cobrir totalmente o poço realmente fosse uma forma eficaz de encobrir o frio assassinato, logo procurou outra pessoa, desta vez o preto Delfino, figura conhecida na cidadezinha para continuar o aterramento; “ele era discreto, quase não falava, meio retardado e muito forte (2).” Seria a pessoa ideal.

Ao depor (3) , Delfino de Moraes, 40 anos, disse que, ao perguntar por que haveria de entupir um poço até então descoberto, o contratante respondeu: “tenho irmãos pequenos que podem cair ali.”

Mario Dotta, que escreveu “A Tragédia da Rua Candelária”, narrou o envolvimento do preto Delfino no episódio:
“... exigem eles esforço excessivo do negro Delfino, que trabalha quase sem descanso, num esforço extenuante.... Delfino não agüenta o ritmo do serviço e quer desistir. É estimulado de novo com novas promessas convincentes, mas tem de terminar na mesma noite o serviço. O peão bronco começa a assustar-se. Sem imaginar os motivos, a natureza rude do peão adverte que há algo de inconfessável na tarefa aloucada. A insistência é demais ...”

Por fim, Delfino entupiu o poço com tudo o que havia de terra no quintal, deixando o terreiro bem limpinho. E como ainda só havia aterrado o poço até um pouco mais da metade, Adão deu um pano para que fosse esticado na boca e preso nas bordas, recoberto e disfarçado em seguida com mais um pouco de terra.

A mãe de Adão, Rosália R., (4) de 42 anos, italiana, casada, era colona da Fazenda da Dona Escolástica mas sempre vinha até a venda do filho para visitá-lo e ajudar na arrumação e limpeza .




Casarão do Pau Preto na fazenda de dona Escolástica, onde a mãe de Adão era colona
Foto do acervo do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba – Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Com essa intenção, chegou e entrou no quintal no momento em que Delfino e Adão raspavam o terreiro, jogando tudo o que podiam dentro da cisterna. Começaram a conversar, Adão dizendo que o poço estava sendo entupido para que o seu cavalo, que seria colocado ali, não caísse no buraco, como já havia ocorrido em outra ocasião, com um conhecido dele. Naquela altura, a mãe, totalmente isenta de qualquer desconfiança, mudou de assunto e começou a aconselhá-lo a não se casar, como ele estava desejando. Entre uma frase e outra sobre o namoro que ele matinha com uma moça, que também morava na colônia da Dona Escolástica (5) , Adão mudou a versão da história distraidamente, e disse que estava enchendo o poço a conselho de Antônio N.

Dona Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro, filha do então escrivão Luiz Teixeira de Camargo, conta, em seu livro “O Tempo e a Gente”, que seu pai, tendo tomado conhecimento do desaparecimento do moço pela aflição de Dona Meritá, dirigiu-se até a venda de Adão, com a desculpa de olhar o campo de bocha que havia no quintal.


“Ao entrar na venda notou certo nervosismo no Adão R., que respondia às perguntas com evasivas... referiu-se ao campo de bocha, ao que ele repentinamente disse ter acabado com ele porque atrapalhava os negócios. Meu pai, porém, foi entrando para o quintal e ele na frente se afastando, na tentativa de impedir a chegado ao quintal, mas quando meu pai lá chegou, assustou-se com o que viu. Não existia mais uma árvore sequer e o chão estava raspado com uma enxada! Uma limpeza completa e perfeita. Não mais existia o campo de bocha. Havia desaparecido. Curioso, meu pai perguntou-lhe por que tudo aquilo? Ao que ele respondeu: “Para entupir o poço velho que nada mais valia, por estar seco e causar preocupação, estando aberto sem necessidade ”.(6)


Sábado, 7 de dezembro de 1907. Havia três dias que seu filho Domenico tinha saído de São Paulo para Piracicaba. Por que não enviara nenhuma carta? Por que não mandava notícias conforme tinham combinado? Era o início de um fim-de-semana cheio de angústia para os pais que, naturalmente, esperavam notícias do filho no máximo até o dia seis. Mas arrastaram-se as horas desses longos dias e o carteiro não trazia carta nenhuma.

Sr. Modesto e Dona Vincenza estavam preocupados. De início não demonstravam isso um para outro, cada um com a intenção de acalmar o parceiro. Mas a contenção tinha limite. Em dada hora o senhor Modesto De Luca foi até a estação da Sorocabana e passou um telegrama para o filho no Hotel Bela Vista, em Piracicaba. Mas não obteve resposta. Assim a preocupação aumentou. O casal entreolhava-se, buscando na feição do outro uma resposta inexistente, uma calma ausente.

Modesto tinha dado ordem ao filho de escrever todos os dias acerca dos negócios que andasse fazendo. Mesmo que uma primeira carta tivesse sido extraviada, a segunda, escrita no dia seguinte, deveria já ter chegado!

Domenico era um moço obediente, não teria deixado de escrever por motivo nenhum, portanto deveria ter lhe acontecido alguma coisa. Estaria ele doente em alguma cidade desconhecida? Teria sofrido algum acidente?

Com estes pensamentos, Modesto foi outra vez na estação da Sorocabana e passou em telegrama para um conhecido seu em Piracicaba, o senhor Atílio Colli, pedindo-lhe notícias do filho.

Neste mesmo sábado, em Indaiatuba, o pai de Adão, Sr. Thomaz R., (7) 48 anos, perguntou ao filho por que tinha mandando entupir o poço do fundo do quintal, e obteve a seguinte resposta: “Para não cair nenhum animal.” Quando foi interrogado , no dia 15 de dezembro, o pai limitou-se a declarar que não sabia de onde o filho conseguira o dinheiro que tinha e que sabia que era amigo de Antônio N. e de Eugênio C., com quem sempre jogava cartas. Nada mais acrescentou como testemunha, nem mesmo a favor do filho.

Mais tarde, Dona Meritá Bertolotti encontrou Adão na Rua Candelária e perguntou se havia visto Domenico, contando-lhe o estranho fato de ele não ter retornado para a pensão. Dias mais tarde, contando esse fato em depoimento, Dona Meritá disse que não notara nenhuma estranha reação em Adão quando ele respondera que não, que... “não sabia dele.”

O carpinteiro Hugo também perguntou se ele sabia do moço, uma vez que havia ouvido de Dona Meritá comentários sobre o singular sumiço, ao que ele respondeu.

“- Acho que ele foi até o Mato Dentro procurar milho para comprar e ainda não votou...”

Com rumores da procura sem sucesso de Dona Meritá, o assunto começou a ser ventilado no lugarejo, ainda que discretamente. Onde estaria o jovem comerciante italiano, que deixara suas coisas no hotel e fora visto pela última vez, com Adão?

Ao cair dessa tarde, Adão, Eugênio e Antônio reúnem-se descaradamente na venda, sem nada falar, apenas para continuar a rotina que julgavam jamais seria abalada: montaram a mesa do carteado com os colegas Ernesto Laurenciano e Ernesto Campi e ali passaram descompromissado tempo.

Estavam temerosos sim, mas o dinheiro que portavam perturbava-os em demasia, e por isso não disfarçavam a opulência. Não conseguiam dissimular a nova situação e jogavam alto demais para os outros companheiros, que começaram a ter uma suspeita indefinida, que foi tomando força na medida em que se passaram os dias.

À noite, vários patrícios foram dançar numa festa na colônia da Fazenda Bicudo. Pascoal Matteo (8), 38 anos, solteiro, italiano e sapateiro, contou em depoimento que, nessa festa, alguns colegas se reuniram em volta de uma mesa para jogar, entre eles, Adão, Antônio N. e seu cunhado Nicola, sendo que o jogo se prolongou até “...as quatro horas da manhã.” Pascoal também presenciou naquela madrugada de domingo o momento em que Nicola, Adão e Antônio N. combinaram de ir para São Paulo no dia seguinte, segunda-feira.

Em São Paulo, no crescimento efervescente do bairro do Brás, a aflição dos pais aumentava.

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(1) As informações desse capítulo foram retiradas dos Autos do Processo.
(2) DOTTA, 1985. p.22.
(3) O depoimento de Delfino de Moraes tem início na página 34 do primeiro volume dos Autos do Processo.
(4) O depoimento de Rosália R. tem início na p.124 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.
(5)  Na época do crime, Escolástica Angelina da Fonseca era dona da Fazenda Pau Preto, viúva de Joaquim Emigdio de Campos Bicudo, com quem teve 8 filhos. Quando Joaquim faleceu com apenas 48 anos Escolástica assumiu os negócios, entre eles a primeira máquina de beneficiar café, instalada na tulha do Casarão Pau Preto.
(6) SANNAZZARO, 1997, p.227
(7) O depoimento de Thomaz R. tem início na p.31 do 1º.vol.  dos autos do processo.
(8) O depoimento de Pascoal Matteo tem início na p.173 do 1º. vol. dos autos do processo.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Fundação Pró-Memória pode voltar a nomear os logradouros públicos de Indaiatuba


.........Foi aprovado em primeira votação  na noite de ontem - na Câmara Municipal de Indaiatuba - o projeto de lei de autoria  do vereador Linho  que define critérios para denominação de vias, logradouros e próprios municipais. O vereador Maurício Baroni assinou o projeto, apoiando-o.
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Através do projeto, os nomes de locais públicos passarão a requer indicação da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, que poderá considerar formalmente nomes que qualquer cidadão indique. Bastará fazer um documento (petição), encaminhar para a Fundação Pró-Memória que a deliberação deverá ser feita no prazo de 15 dias.

Com esse projeto de Linho, além de mais democrática, a nomeação dos logradouros públicos passa a ser uma ação mais abrangente. Até agora, os vereadores é quem faziam os projetos de leis para isso, recebiam sim, várias sugestões da população. Mas creio que a partir de agora, através da Fundação Pró-Memória, fica mais fácil a solicitação (ou indicação) para aquelas pessoas que, por vários motivos, não sugerem nomes significativos diretamente para  os vereadores.

Outra vantagem é a questão técnica. A Fundação Pró-Memória pode agrupar nomes com perfis parecidos, dando, por exemplo, a um determinado bairro, nomes de ruas com cidadãos afinados por interesses, profissões, ações cidadãs e assim por diante. Também é prática da Fundação manter um banco de dados (desde que possível) com a biografia do cidadão homenageado, fazendo assim, com que a homenagem tenha mais sentido para a população, para os pesquisadores, enfim, para a nossa História.

A Lei veda a denominação de vias e logradouros públicos em língua diferente da nacional, exceto quando referente a nomes próprios de brasileiros de origem estrangeira ou para homenagear personalidades, reconhecidas por terem prestado serviços meritórios ao Município, ao Brasil ou à Humanidade.

Já os próprios municipais poderão receber nomes de personalidades que tenham prestado importantes serviços à Humanidade, à Pátria, a Sociedade ou à Comunidade e, neste caso, que possua vínculos com o logradouro, com a repartição ou serviço nele instalado ou com a população circunvizinha.

A denominação dos estabelecimentos oficiais de ensino público municipal deverá homenagear preferencialmente o Educador cuja vida tenha se vinculado de maneira especial e intensa, com a comunidade na qual se situa a escola a ser denominada ou homenagear ppersonalidade que, não tendo sido educador, tenha uma biografia exemplar no sentido de estimular os educandos para o estudo.

As placas denominativas das vias e logradouros públicos conterão, além dos dizeres normais, o Logradouro, o Código de Endereçamento Postal (CEP e quando couber, a profissão ou atividade do homenageado.
O projeto vai para segunda votação na próxima Segunda-Feira e se aprovado pela Câmara Municipal - depois tem que ser sancionado e promulgado pelo prefeito Reinaldo Nogueira Lopez Cruz .

domingo, 17 de junho de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 8

Capítulo 8 - Eugênio C. e Sem Chapéu

Para Adão e Antônio (1), as parcas vezes que estiveram com Domenico para negociar, foram suficientes para atiçar a cobiça. O dinheiro dele, somado com suas fraquezas, despertou um desejo forte e contundente, como se fosse sede ou fome. A visão de um futuro próximo, com dinheiro para gastar levianamente nas mesas de baralho, seduzia e eclipsava o que haveriam de ter de bom em seus corações. A imagem das notas de réis que saiam do bolso do paletó do moço emitia um brilho sedutor, que cegou definitivamente qualquer sinal de bom-senso da mente dos dois tolos.

Já Eugênio C...

Não... Ele não tinha tido contato com o dinheiro e ao ouvir o convite de Antônio para participar do roubo, aceitou incontinente.

O que teria levado Eugênio a se deixar seduzir tão rapidamente por um plano tão fúnebre e leviano?

O testemunho dado por Lourenço Matias do Amaral, o Sem Chapéu (2), 85 anos de idade, brasileiro, viúvo, residente em Indaiatuba desde 1855, tomado no dia 25 de dezembro de 1907, pode ser, mesmo que muito subjetivo, uma das referências a ser considerada para que se compreenda a atitude de Eugênio, que entrou rapidamente no macabro consórcio.

Sem Chapéu (3) declarou que trabalhava como caseiro para dois contratantes, Dona Amália Camargo e para o Sr. Francisco José de Araújo, o Chico de Itaici, com quem morava em um casarão na esquina do largo da Matriz (onde mais tarde seria a primeira sede do Indaiatuba Clube).

Iniciou seu depoimento narrando um furto que fora vítima há cinco ou seis anos antes. Naquela ocasião, todas as manhãs, ele saia às cinco horas para trabalhar e naquele dia, ao voltar às seis da tarde como de costume, encontrou o fundo da casa arrombado. Notou a falta de dois ternos de fraque “...dados pelo Doutor Velloso, Juiz de Direito de Itu (4)  e trezentos réis economizados. O coronel Teóphilo de Camargo, irmão de Dona Amália, até tentou ajudar a encontrar o responsável, mas ele “não ficou sabendo quem foi o gatuno.”

Contou em seguida sobre outro furto, ocorrido desta vez há aproximadamente oito meses. Ele estava com amigos em uma festa na casa de Benjamin Constant de Almeida Coelho (dono da Fazenda Cachoeira) quando, logo após a meia-noite, o vinho acabara. Ele saiu dali com o propósito de ir até a venda de Ernesto Guintter, a fim de repor a bebida. Ao passar pelo largo da Matriz, sempre totalmente desabitado nesta hora, notou um vulto encostado perto de uma das palmeiras ali plantadas, que reconheceu ser Eugênio C.. Soube, no dia seguinte, que a matriz Nossa Senhora da Candelária amanheceu com a porta aberta e a sacristia arrombada. Também arrombado estava o cofre de madeira envernizada usado para coletar esmolas, “...tendo o gatuno ou gatunos deixado apenas uma moeda de vinte réis.”

Após apenas oito dias do ocorrido, quando o sino da matriz Nossa Senhora da Candelária marcava onze horas da noite, vindo da casa de Dona Maria Laura do Amaral, novamente notou um vulto encostado em outra palmeira, desta vez a mais próxima da igreja. Aproximou-se novamente para identificar a figura indistinta e novamente topou com Eugênio C., que falou:

“- Ô seo Lourenço, você todas as noites por aqui...”

Ao que ele respondeu:

“- E você também...”

No dia seguinte, a mesma coisa: porta aberta e sacristia arrombada. Só que com uma diferença: sem o cofre, “que certamente o gatuno carregou.”

O tal cofre foi encontrado após um mês, há aproximadamente um quilômetro do centro da cidade, em um local conhecido como Cabral, por trabalhadores contratados pela Câmara, para roçar o mato da margem da estrada.

Antes dos furtos na igreja, há aproximadamente três anos, Sem Chapéu conseguira formar um presépio a “custas de sacrifícios e de presentes que lhe fizeram pessoas ricas e de sua amizade”, que mantinha cuidadosamente guardado em sua propriedade, uma chácara de nome Aurora. Certo dia, ao ir para a chácara que ficava a “um dia” da casa onde morava, encontrou a porta arrombada, tendo sido furtado todo o seu presépio, “...um aparelho de louça completo que ganhara da família do Doutor Prudente de Moraes, ... a mobília cara que lhe deu Dona Francisca de Barros e outros objetos de valor.”

Desta feita, o major Alfredo aconselhou que ele prestasse queixa ao delegado, “...que ordenou diligências... mas que mesmo assim, não descobriram os gatunos.” Contou que


“...na segunda feira, primeira do corrente, três dias antes do desaparecimento nesta cidade do moço de nome Domenico [ele, Sem Chapéu, passou]... de fronte a casa de Eugênio C.... e viu ali os pés de uma imagem de Nossa Senhora Conceição... [que reconheceu]... ser uma das peças furtadas de seu presépio”.



Sem Chapéu perguntou para Elvira, filha mais velha de Eugênio, o que era aquilo, ao que a menina respondeu que “... era o pé de uma estátua que seu pai tinha quebrado em sua casa.”

O menino Benedito, de 5 anos de idade e filho do escrivão Luiz Teixeira de Camargo, que morava pegado à casa do Sr. Francisco José de Araújo, onde trabalhava e vivia Sem Chapéu, também foi outra criança que brincava com um objeto furtado de seu presépio. “Era um crucifixo galvanizado com prata, que o menino disse ter encontrado perto da casa de Eugênio” – narrou.

Expondo todos esses furtos em seu depoimento, Sem Chapéu teve a clara intenção de registrar que o responsável por tudo era Eugênio C. “...ou algum sócio dele.”

Sem Chapéu morreu 5 anos depois, com 90 anos, no dia 22 de julho de 1912, ocasião em que “a cidade inteira rendeu-lhe a última homenagem, e como reconhecimento, no Cemitério de Pedra, na 1ª. ala à esquerda, perpetuaram no mármore a sua gratidão um tributo popular”... idealizado pelo escrivão Luiz Teixeira de Camargo, de quem era amigo . Para quem, como nós, está há 100 anos de distância daquele cenário, essa figura tão singular e a querença do povo para com ela, faz-nos refletir sobre o quão verdadeiras (ou não...) e exageradas (ou não...) são suas acusações.

Mario Dotta tinha sua opinião formada e assim escreveu em seu livro sobre o crime: o depoimento de Sem Chapéu “nada trouxe de útil a não ser o desejo de participar do espetáculo, com a decidida contribuição da fantasia, num assunto tão sério em que é proibido mentir...”

Por outro lado, ao consultar as testemunhas do inquérito do assassinato do jovem Domenico, é interessante notar que outra testemunha não teve a mesma certeza sobre a índole de Eugênio, como testemunhou e fez questão de registrar Sem Chapéu.

Pelo contrário: mesmo após a confissão ser feita em sua presença, pelo próprio Eugênio, Frederico Borghi (5) se mostrou inseguro ao depor , por motivo de estar bastante comovido com um fato que presenciara entre o acusado e sua filhinha.

Frederico, com 43 anos, casado, artista, natural da Itália, era dono de uma oficina onde Eugênio trabalhou, junto com outros três oficiais. Narrou que, numa das duas vezes em que fora seu empregado, “...sumiram três facas de sapateiro... não sabendo atribuir a quem [na época] o desaparecimento das mesmas.”

Na cadeia de Indaiatuba mostraram para ele a faca que havia degolado Domênico. Ao olhar para o objeto, teve certeza, e ainda assim profundamente incomodado, que era a faca surrupiada de seu negócio. Demonstrando estranheza, ficou inseguro e não queria continuar o depoimento. Chamaram Eugênio, que fora da sela e sem nenhuma força ou algo que o obrigasse, confessou para ele, na frente do Major Alfredo, do Carlos Tancler e do escrivão.

Diante disso, Frederico afirmou que era sim, a faca que fora surrupiada dele.

Relutou tanto porque vira, no dia anterior, que a filhinha de Eugênio havia ido até a cadeia levar comida para o pai, a mando da mãe. Presenciou o forte abraço que o pai deu na pequenina, pedindo para que ela fosse dar um recado para sua mãe. Que dissesse que ele morreria inocente.

Presenciar essa cena o deixou “...com algumas dúvidas em seu espírito.” E mesmo reconhecendo a faca e ouvindo a confissão, “...não queria concorrer de modo algum para incriminar uma pessoa inocente”.

Quando o depoimento acabou, Frederico quis ouvir mais uma vez - pela segunda vez (!) a confissão antes de assinar.

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(1) As informações deste capítulo são advindas dos autos do processo.


(2) O depoimento de Lourenço Matias do Amaral Sem Chapéu tem início na p.180 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.

(3) Dona Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro, conta em seu livro “O Tempo e a Gente” que Sem Chapéu “...era baiano de nascimento, ... foi escravo do fazendeiro José Balduino do Amaral Gurgel, de Itu, razão do seu sobrenome “Amaral”. [Certo dia], muito embriagado... caiu sobre os trilhos [mas]... foi avistado a curta distância pelo maquinista do trem, que... parou a máquina bem próximo ao seu corpo. Salvo da morte, por um verdadeiro milagre... quis perpetuar o seu respeito e gratidão à Nossa Senhora, fazendo o voto de nunca mais beber e não mais usar chapéu... desse seu voto... originou o seu nome...”Sem Chapéu”, tão popular, quão estimado nesse lugar.”

(4) Mário Dotta afirma que nunca houve um juiz em Itu com esse nome.

(5) O depoimento de Frederico Borgui tem início na página 184 do volume 1 dos autos do processo.


quarta-feira, 6 de junho de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 7 - Silêncio e Rotina

Capítulo VII – Silêncio e Rotina


De fato, o silêncio foi testemunhado (1) : David da Silva Dutra, 34 anos, nascido e residente na cidadezinha, passou pela Rua Candelária e foi até o largo da Matriz por volta das três e meia da tarde. Estava construindo uma casinha na Rua Direita para o senhor Cesare Lisone. Entre ir e vir gastou cerca de quinze minutos e estranhou que a venda de Adão estava fechada. Isso nunca acontecera antes, declarou David. Ao narrar esse fato em juízo, declarou ainda que nada ouviu de estranho, nem palavras, nem gritos, nem gemidos.

Somente uma última prova restava: as manchas de sangue na parede e no chão da sala onde o moço tinha caído; Antônio arrumou às pressas umas folhas de jornal velho e um saco de palha e puseram em cima das manchas ateando-lhe fogo, “...em pouco tempo qualquer sinal teria desaparecido”.

Isso feito retornaram para perto da mesa, onde sempre jogavam. Com base no tamanho do maço de dinheiro saqueado de Domenico "... que devia ter uns três ou quatro dedos... com notas de quinhentos contos de réis, duzentos mil réis e outras de menor valor...”, Adão pediu naquele momento que o dinheiro fosse recontado pois entendera ter sido prejudicado. Os dois cúmplices se recusaram e saíram, não sem antes expiar para ver se não tinha ninguém nas sempre tão vazias ruas.

Eugênio saiu dali, caminhou até um chafariz que existia na rua Bela Vista e em seguida foi para sua casa, na Rua Direita. Ao escurecer, foi até a venda de Vicente Gaudini onde ficou até o toque de recolher. Chegou em casa, entrou e foi dormir. Nos dias seguintes, até sua prisão na sexta-feira 13, levou a vida de sempre: de casa para a sapataria, da sapataria para a casa, exceto quando parava na venda de Vicente para jogar baralho.

Antônio saiu dali, caminhou pela Rua Candelária e foi direto para sua casa, na Rua da Palha. Após um tempo apareceu o colega Luiz Guimarães (2), 27 anos, natural de Itatiba , convidando-o para jogar cartas na venda de Adão. Como era de rotina, ele aceitou e voltou [SIC!] para o local, onde jogaram um carteado. Exceto pela viagem que fizera para São Paulo, sua vida também transcorrera normalmente até a prisão na sexta-feira 13.

Minutos após a saída de Antônio e Eugênio, Hugo Rezzaghi, que estava em sua oficina concentrado nas tarefas que laboriosamente fazia para atender as encomendas para o Natal, recebeu de novo a visita de Adão. Desta vez ele fora pedir uma enxada emprestada para cobrir um poço do quintal, pois ali havia colocado um cavalo e estava com medo de o bicho cair no buraco. Hugo, atarefado e achando que esse pedido era tão ou até mais estranho que o anterior, respondeu que não tinha enxada nenhuma.

Ligeiramente Adão saiu dali para a casa de João Sargentelli, com o objetivo de contratar o filho Pedro Sargentelli para cobrir totalmente o buraco. No caminho emprestou uma enxada de José Tancler, que morava nos arredores. Em seu desespero, ou na ingenuidade de alguém de 19 anos, plantava pistas para o crime que julgavam perfeito.

Quando testemunhou no dia 15 de dezembro (3) , o jovem Pedro, de 18 anos de idade, disse que começou a jogar terra no poço por volta das quatro horas da tarde e que as cinco desistiu do serviço.

E que quando parou por estar cansando, Adão insistiu para que ele continuasse, dizendo que pagaria um “ordenado de um dia”, o que ele não aceitou.

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(1) O depoimento de David da Silva Dutra tem início na p.108 do 1º.vol. dos autos do processo.

 
(2) O depoimento de Luis Guimarães tem início na p.188 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.

(3) O depoimento de Pedro Sargentelli tem início na página 32 do 1o. volume dos autos do processo.

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