quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 6 - Armadilha e Crime

No dia 04 de dezembro, quarta-feira (1), Domenico dirigiu-se outra vez para o Hotel Belo Vista em Piracicaba, onde encontrou, aguardando sua chegada, um bilhete que dizia:


Amigo Domenico
Venha até Indaiatuba
Tenho milho e feijão para vender,
Adão R.


No dia seguinte, 05 de dezembro de 1907, quinta-feira, logo cedo, Domenico avisou a dona do hotel que deveria viajar até Indaiatuba e que talvez conseguisse voltar no mesmo dia. Pegou o trem junto com Antônio Lelário, com quem conversou despreocupadamente até Rio das Pedras (2) , onde o acompanhante de sua última viagem desceu, deixando-o só, provavelmente pensando nos negócios que faria para se mostrar digno da confiança do pai.

Chegando a Indaiatuba no trem do meio-dia, encontrou Adão R. esperando-o na estação e juntos dirigiram-se a casa dele. No caminho ao destino combinado, bem próximo da igreja matriz, situava-se a pensão da viúva Bertolotti, onde Domenico resolveu parar.

Entrou e aproveitou para reservar um quarto, acomodando suas coisas. Aproveitou também para se trocar e pedir para a senhora Meritá Bertolotti, 30 anos de idade, viúva com 5 filhos e também natural da Itália, comadre de Antônio N., que preparasse um bom jantar.

Não quis perder tempo. Saiu logo em seguida para visitar a pacata cidadezinha. A senhora Meritá acompanhou os passos do rapaz, que fora até a venda de Adão R., bem próxima de sua pensão. Esse curto caminho foi registrado nos autos do processo como sendo a última vez que o menino foi visto por alguém conhecido, exceto seus algozes.

Conversou novamente com Adão, mas não entraram em acordo sobre o preço. Combinaram retomar a negociação mais tarde, quando também poderiam, quem sabe... jogar um pouco de baralho.

Passou pela casa de Antônio N. para perguntar se já tinha despachado os quinze sacos de milho comprados e, tendo recebido resposta afirmativa, seguiu satisfeito para andar na pequena cidade, talvez em busca de outros pontos de venda.

Foi nessa altura dos acontecimentos que Antônio foi até a venda de Adão perguntar sobre o que tinha ele negociado com Domenico.

Foi acompanhado de Eugênio C.(3) , 48 anos, italiano natural de Carrara, casado, sapateiro, filho de Pedro C., que morava na rua Direita, atual Rua Augusto de Oliveira Camargo. Com este, Antonio N. já havia falado sobre a quantia de dinheiro que o moço portava e que não fazia questão de esconder.

Adão contou que fora até o sítio do preto Adolpho Galvão e lá comprara dez sacos de feijão. Também comprara vinte e cinco sacos de milho do preto Júlio, mas os dois estavam vendo como seria feito o transporte, então não tinha a mercadoria para mostrar. Contou que pedira o dinheiro referente a essa mercadoria de forma antecipada, mas Domenico achara o valor alto e dissera que gostaria de ver os gêneros antes de pagar. Ele insistiu e o moço, educado que era, disse que voltaria mais tarde, para reiniciar a negociação.

Mas naquela altura, pouco importava os negócios para eles. Outro assunto os ocupava: a sinistra oportunidade com a qual estavam deparados. Retomaram então, naquele momento, a macabra conversa, norteada pela ambição: haveriam de arranjar algum meio de tomar o dinheiro de Domenico, que não era pouco.

Excitados e nervosos, tinham um objetivo, mas não sabiam por onde começar...

Sabiam que não tardaria para Domenico retornar na venda, então decidiram atrair o moço para o fundo da casa e, uma vez ali, arrancar-lhe-iam o dinheiro custasse o que custasse.

Até então, os amigos que tinham em comum a paixão pelo jogo e as dificuldades financeiras, haviam anunciado a terrível intenção apenas em vagas alusões, em sugestões não muito claras e até medrosas. Mas ali a intenção virou plano; “... rompera nesse instante a barreira moral vacilante e tênue, transformando-se na proposta crua e decidida da perpetração do crime (4)”.

Antônio propôs “...embriagá-lo ou esbordoá-lo.”

Ao que Eugênio respondeu: “...que se Domenico de fato tinha dinheiro, o melhor seria matá-lo de uma vez, cortando-lhe o pescoço...”. Disse ainda que deis de tomarem o dinheiro dele, “...atirariam o corpo em qualquer lugar. (5)
“Selara-se ali um compromisso medonho, o concerto do plano homicida com intuito de roubo (6).”


 A combinação criminosa, movida pela ambição, tivera seu desfecho iniciado: Antônio e Eugênio foram se esconder no quarto dos fundos da uma casa desabitada, vizinha de Adão, na Rua Candelária número 21, com acesso pelo mesmo quintal, e esse último ficou espreitando a rua para ver quando o moço chegaria.

Por volta das duas horas da tarde, não controlando a ansiedade da espera, Adão foi até a casa do vizinho Hugo Rezzaghi, 56 anos, casado e vizinho próximo, do número 29. Perguntou-lhe se não havia visto o jovem Domenico De Luca. Justificou que estava aguardando-o, junto com Antônio N., para uma partida de bocha. Hugo estranhou a pergunta (7) uma vez que pela manhã, o próprio Adão trouxera uma carta de Domenico para que ele lesse. Era um texto de conteúdo comercial, a confirmação da vinda de Domenico para fechar o negócio do milho ofertado.

Adão voltou para a venda e continuou esperando, dando prosseguimento à cilada.

De fato, não tardou muito a aparecer Domenico que, inconsciente do mal que o esperava, descia a Rua Candelária em direção ao hotel para descansar e mais tarde jantar. Chegando próximo a casa fatídica, encontrou-se com Adão que, fazendo de conta estar saindo na rua por acaso, o convidou a entrar para tomar alguma coisa e examinar em seguida a mercadoria. O sino da matriz Nossa Senhora da Candelária marcava três horas da tarde.

O moço sem nada suspeitar, recusando inicialmente a bebida, aceitou o convite e entrou, ignorando por completo a armadilha. Por fim, vista a insistência do homem, concordou em tomar uma gasosa, que tinha sido misturada com fernet. Adão aproveitou o momento para ir fechar a porta da rua, alegando que, como o milho se encontrava nos fundos, queria evitar a entrada de algum estranho.

Antônio e Eugênio encontravam-se escondidos, tensos, mas com a certeza de que o dinheiro era bastante e que, fosse como fosse, passaria para os bolsos deles.

Ouviram então vozes provenientes do quintal vizinho: era Domenico e Adão que estavam se aproximando, com conversas triviais. Antonio armou-se com um pau de fumo que estava encostado em uma parede.

Adão empunhava um pouco de milho retirado da venda, e disse mentirosamente que, daquela amostra, possuía grande quantidade na casa vizinha, a da Rua Candelária número 21.

Saíram para o quintal, que era comum à casa vizinha, por onde entraram pela porta dos fundos, que se achava aberta. Caminharam por um corredor que ia até a sala da frente, que abria para a rua. Vendo a casa desabitada, o moço perguntava:

“- Cadê o milho e o feijão?”

Foi então que Domenico abriu a porta desta sala e, como última coisa da sua curta vida, ouviu apenas parcialmente uma voz que dizia:

“-Aqui está o milho.”

Era Antônio que cinicamente respondia, enquanto no mesmo instante, desferia uma violentíssima paulada na cabeça do jovem. O pobre Domenico caiu no chão banhado no seu próprio sangue, prostrado pesadamente, sem um grito, sem uma palavra, sem um gemido sequer. Antônio vibrou-lhe outra paulada e em seguida Adão atirou com força uma pedra em seu peito. Eugênio, talvez excitado pelo ocorrido, talvez de medo que o rapaz pudesse ainda clamar por socorro, puxou a sua faca, prendeu o corpo com o seu pé sobre o peito da vítima e, esticando seu pescoço empurrando o queixo, desferiu-lhe duas facadas na garganta.


[...]

E agora?


Os três criminosos, afobados, procuraram ansiosos o fruto do assassínio. Mas foi Eugênio C. quem definitivamente saqueou o cadáver, achando no bolso do seu paletó 6:400$000 que imediatamente repartiram, não se sabe por que, não em partes iguais: Adão ficou com 1:600$000, Antônio com 1:800$000 e os restantes 3:000$000 com Eugênio.

Depois, desconfiados que Domenico tivesse algum outro dinheiro escondido, tiraram-lhe as botinas.

Colocaram o cadáver em dois sacos de juta que ali estavam cobrindo um caixão de cebolas: um pelos pés, outro pela cabeça.

Mas o que urgia agora era se desfazer do cadáver. Retiraram algumas tábuas que cobriam o poço abandonado, até obter um espaço suficiente por onde deixaram cair o cadáver. O barulho da queda foi bem pequeno, talvez pela grande profundidade do poço, que deveria ter setenta palmos, o equivalente a pouco mais de 15 metros.

Precisavam agora, desesperadamente, aterrar o poço para eliminar qualquer prova. E os três se puseram logo ao trabalho para acabar o mais depressa possível com o macabro serviço.

Com uma enxada desencabada e velha que estava jogada no quintal da casa número vinte e um, rasparam toda a terra ensangüentada, que era muita, pois o sangue também era muito. Jogaram a terra ensopada de sangue dentro do poço. Pegaram a enxada, as botinas e o chapéu de Domenico e colocaram num outro saco que também jogaram no poço. Atiraram para dentro do buraco o pau de fumo com o qual Antônio N. havia espancado Domenico, assim como tudo o mais que encontraram ao redor.

O sino da matriz Nossa Senhora da Candelária anunciava quatro horas da tarde quando o delito deu-se por encerrado. Pela cabeça de cada um, naquele momento, apenas havia a certeza de que tudo tinha ocorrido bem. Estavam aliviados. Afinal, estavam no fundo do quintal de uma casa abandonada, nenhum estranho havia aparecido e nenhum barulho suspeito tinha saído dali. Da parte deles, tinham executado as funestas ações sem ruídos dignos de nota, pelo contrário: num silêncio fúnebre e sem suspeitos.

Poderiam ficar sossegados, tudo tinha acabado bem...

Se alguém poderia ter emitido qualquer som, esse já estava mudo, apedrejado, decapitado e soterrado sem ter tido a mínima chance de - se quer - gemer por socorro.

Tinham certeza que ali terminaria tudo.

“Ao fundo do quintal deserto, o poço antigo e abandonado servirá de túmulo aos despojos, não haverá cruz nem flores sobre ele, apenas o silêncio a cobri-lo com seu manto de cumplicidade sinistra .”(8)

De acordo com o livro “Domenico De Luca Barbaramente Assassinado em Indaiatuba”, traduzido pelo Sr. Rafaello Fantelli e publicado na Tribuna de Indaiá do dia 11 de dezembro de 1960, “mal julgavam que a justiça divina, longe de ser falha como a humana, providenciaria em breve o merecido castigo”.

E passados cem anos no assassinato, pode-se acrescentar também que mal desconfiavam que naquele poço não ficaria jazido o menino.

Que seu corpo sairia da escuridão esquecida do poço para um túmulo sempre iluminado por velas...

Que não teria como última morada aquele local sombrio e frio, mas seria sepultado em um túmulo recoberto de flores oferecidas por almas generosas, que por muito e muito tempo se compadeceriam da tragédia.





Túmulo de Domenico De Luca visitado por populares no Dia de Finados
Foto cedida por Antonio da Cunha Penna – 02/11/2006




Foto de Anselmo Silva (1)



Foto de Anselmo Silva (2)


.....oooooOooooo.....

(1) As informações deste capítulo são advindas da Tribuna de Indaiá de 11 de dezembro de 1960 e dos autos do processo.
(2) O depoimento de Antônio Lelário tem início na p.16 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.
(3) O depoimento de Eugênio C. tem início na p. 32 do 1o. volume dos Autos do Processo.
(4)  DOTTA. 1985. p.15
(5) Autos do processo transcrito pela FPM. p.58
(6) DOTTA. 1985. p.15
(7) O depoimento de Hugo Rezaghi tem início na p.99 do 1º. vol. dos autos do processo transcrito pela FPM.
(8) DOTTA, 1985, P.21.



quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 5 - Domenico volta da Itália



Capítulo V – Cobiça e Premeditação


Quando o trem parou na estação de Indaiatuba (1) , Domenico, sentado em um dos vagões, avistou do lado de fora um jovem,

“provavelmente de sua idade, postado no galpão externo e, embora não o conhecendo e com a naturalidade que lhe era peculiar, dirigiu-se ao moço em língua italiana, perguntando-lhe se havia milho ou feijão para vender na cidade (2)”.


Antiga estação de trem de Indaiatuba (foto de 1980), que depois funcionou como armazém da estação “nova” (de 1911).
Foto cedida por Kelso Médice para www.estaçoesferroviarias.com.br


O rapaz interpelado respondeu “- Eu tenho”. Domenico, então, pegou sua pequena mala, seu chapéu acinzentado e seu guarda chuva e desceu do comboio, sem suspeitar que ali houvesse sido o início uma terrível sucessão de fatos que o levaria à morte.

O jovem era Adão R. de 19 anos, negociante, natural de Trento, na Itália,

“...que até a alguns meses atrás, era um dos muitos que se dedicavam à lavoura juntamente com a família, pais e irmãos que trabalhavam como colonos na fazenda de dona Escolástica. Não o fascinava, no entanto, o duro amanho da terra; almejava melhorar de vida, enricar .(3)

Por quais razões o destino os teria colocado frente a frente?

Com a ajuda dos pais, Adão R. abriu uma pequena venda de secos & molhados, localizada na Rua Candelária número 23, logo após a esquina com a atual Rua 7 de Setembro. Era uma venda com “toscas prateleiras, nelas estavam dispostas mercadorias como garrafas de bebidas e vasilhames, jacás de queijo e caixotes de cereais destinados a varejo.(4)




Cruzamento da rua Candelária com a rua 7 de Setembro (ao fundo, a igreja Candelária).
Do lado direito, subindo, a venda de Adão R., com inscrições comerciais e a casa de número 21, desabitada - onde estava o poço - seguida por um terreno baldio na esquina.
Foto do acervo de Antonio da Cunha Penna.

Domenico foi com Adão até a sua casa, que funcionava como venda na parte da frente, onde inspecionou os três sacos de milho e cinco de feijão que estavam disponíveis para negócio.

Como era pouca a mercadoria disponibilizada por Adão, Domenico resolveu procurar outros fornecedores na cidade.

Então Adão acompanhou Domenico até o hotel da viúva Meritá Bertolotti, que ficava na rua Candelária, bem perto do prédio onde funcionava a Escolas Reunidas (atual Colégio Candelária) (5) , e bem próximo de sua venda. O sino da matriz Nossa Senhora da Candelária marcava dez horas da manhã.

Após cerca de uma hora, depois de se acomodar na hospedaria, Domenico voltou na venda de Adão para pagar pelos produtos negociados. Dias mais tarde, ao depor, Adão narrou que percebeu que o rapaz - tão comprometido em fazer bons negócios para não decepcionar o pai - tinha dinheiro em quantia muito maior do que o pagamento feito... “[ele] tirou o dinheiro... uns trezentos ou quatrocentos mil reis que tinha no bolso da calça, mostrando ter mais dinheiro... no bolso do paletó (6) .”

Dona Meritá Bertolotti também fez referência em seu depoimento, dias depois (7) , sobre o ato ingênuo do rapaz. Domenico deu um presente para sua filhinha e logo em seguida não se conteve em mostrar que tinha dinheiro. Ela disse que “...chegou a aconselhá-lo que não fizesse aquilo, porque era ruim, ao que Domenico respondeu que não tinha medo, porque dava dez mil réis a qualquer pessoa que lhe pedisse.”

A imaturidade, desprendimento, generosidade e ou até soberba do rapaz, junto com a cobiça, ambição e frieza dos assassinos, traçaram o destino de sua curta vida.

Da venda de Adão, Domenico saiu e voltou algumas vezes naquele dia; fizera do modesto comércio um ponto de referência, provavelmente concluindo inocentemente que, pela companhia oferecida e pelo negócio feito, haveria de ter conquistado um amigo. Numa destas idas e vindas fora até a casa de Antônio N., um cidadão comum, na comum rotina da cidadezinha: 28 anos, casado, italiano natural de Caserta, Trento, Nigga de Pautano na Itália, que como poucos, sabia ler e escrever. Antônio N. trabalhava como barbeiro em um salão na frente de sua residência, que funcionava também como “casa de negócios”, na esquina das atuais ruas Pedro de Toledo e Cerqueira César. Negociara com este, quinze sacos de milho. Tentara também negociar com Ambrósio Lisone.

Adão ficou entusiasmado com a negociação e no outro dia pela manhã foi até o sítio Mato Dentro procurar mais milho e feijão para intermediar mais vendas. Domenico dissera que seu pai e ele tinham um próspero negócio na Rua Santa Rosa, na capital da província e que, se oportuno fosse, pagaria adiantado alguns lotes. Quando voltou sem nada para negociar naquele momento, encontrou Domenico que fora se despedir. O jovem entregou um cartão para Adão, apontando seu endereço completo em São Paulo, completando ainda que, se ele encontrasse gêneros para negociar, que podia contatá-lo também como opção, no Hotel Bela Vista em Piracicaba.

Adão R. e Antônio N. encontravam-se todos os dias para jogar baralho, junto com Eugênio C. e outros parceiros, que se reuniam na dita venda da rua Candelária, onde permaneciam até altas horas.

Após a partida de Domenico, ao reunirem-se para a jogatina, Adão R. e Antônio N. confabularam sobre o quanto de dinheiro ele carregaria. “Tinham em comum a ambição desenfreada. Pelo jogo e pela fortuna. Esse traço de caráter os unia num secreto desejo, ainda não concretizado (8) .”

Ele comprara tudo à vista...

Viajava sozinho...

Não seria difícil se apoderar do que ele tivesse... Quando depôs (9)  sobre essas conversas, Adão disse que Antônio havia lhe dado maus conselhos, dizendo que “...quem não furtava, nunca havia de ser rico... (10)

Os dois então, planejaram roubá-lo.

Mas como?

A primeira medida a ser tomada era de fazê-lo voltar a Indaiatuba com uma boa desculpa. Adão então, que tinha prometido ao jovem de arrumar-lhe um grande lote de milho e feijão, pensou que o melhor jeito era escrever-lhe uma carta ao endereço que ele tinha deixado, pedindo-lhe que viesse a Indaiatuba para negócio.

E depois? Os dois não sabiam como ainda como proceder. Antônio disse para Adão que arrumaria outra pessoa para ajudar e acabou a conversa dizendo:

“-O importante é que ele venha até aqui com bastante dinheiro e na hora daremos um jeito.”

E foi assim que no dia 2 de dezembro, seguiu para o Hotel Bela Vista de Piracicaba o fatídico bilhete, considerado pelo promotor do processo o primeiro elemento da engrenagem do crime. Foi um meio de atrair a vítima incauta.

Nesse interim Domenico tinha voltado para Piracicaba e de lá, como houvesse acabado o dinheiro e havia alguns negócios para concluir, voltou para São Paulo buscar mais dinheiro e prestar contas ao pai do que tinha realizado. Modesto ficou muito satisfeito com a atuação do filho e entregou-lhe 6:400$000 (seis contos e quatrocentos mil réis), para retornar e efetuar os pagamentos remanescentes.

Era um valor muito alto. O milho custava 5$000 o saco e o feijão 18$000. (11)

.....oooooOooooo.....

(1) A estação de trem na época do assassinato de Domenico De Luca não era o prédio onde hoje é o Museu Ferroviário, que foi inaugurado em 1911 e construído pela Sorocabana. O prédio que funcionava como estação era pequeno, está ali até hoje e foi construído pela câmara municipal, sendo inaugurado em 1880.

(2) DOTTA. 1985. p.12

(3) Idem. p.13


(4) Idem.

(5) Tempos depois, dona Meritá mudou sua pensão para a esquina das atuais ruas 7 de Setembro e Candelária.

(6) Autos do processo transcrito pela FPM. p.52.
(7) O depoimento de Meritá Bertolotti tem início na p.94 do 1º.vol. dos autos do processo transcrito por Joseph Almeida - via FPM.

(8) Idem. p.13


(9) O depoimento de Adão R. tem início na página 17 do Primeiro volume dos Autos do Processo transcrito por Joseph Almeida - via FPM. (ver também a partir da página 50).

(10) Autos do processo transcrito por Joseph Almeida via FPM. p.54.

(11) Dotta, 1985, p.17.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 4 - Domenico volta da Itália


No dia 04 de setembro de 1906, com 16 anos, Domenico embarcou para a Itália a fim de aprender o ofício de seleiro. (1)

Domenico de Luca, com 12 anos de idade
Imagem cedida pela sobrinha-neta Márcia De Luca - em 2007 para o livro "O Crime do Poço"


Vivera até então no Brás, em São Paulo, desde a chegada da família em 1894, quando tinha 4 anos. Nestes 12 anos de meninice vividos no Brasil, foi testemunha do crescimento do bairro que abrigou alguns italianos, que levados de trem do Porto de Santos até São Paulo, permaneciam na cidade, atraídos pela possibilidade de trabalho no comércio e na indústria, ao contrário da maioria, que se espalhou por São Paulo em roças de municípios às margens da estrada de ferro.


Bairro do Brás – Início do século XX
   Fonte: Divisão Iconográfica/PMSP


O bairro era humilde e na época das chuvas, suas ruas estreitas que cresceram desordenadamente, ficavam alagadas pela tomada das águas do rio Tamanduateí. Como tantos outros, o menino deve ter enlameado os pés em muitas brincadeiras feitas nos arredores, que se expandiu com fortes traços da cultura italiana, principalmente no largo da igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, inaugurada em 1903. Cresceu nesse bairro, onde os donos do capital e seu parque fabril começaram a avançar no mesmo período em que sua família chegou da Itália, dividindo os sombrios galpões com as pequenas casas geminadas, cujas janelas e portas abriam para o passeio público.


Ficou na terra natal, Polignano a Mare por cerca de um ano, embora com muitas saudades de sua casa e de sua família. E a saudade era recíproca, pois o pai já estava resolvido ir para a Itália visitar o filho quando recebeu uma carta de Domenico, na qual o moço dizia do grande desejo de voltar que o possuía e acrescentava:

Polignano a Mare - 1920
Crédito da imagem: Carta Máxima


“- Se o senhor não quiser me pagar a passagem, eu mesmo o farei com minhas economias e espero estar em casa em outubro.”

O pai, comovido pelo afeto do filho, providenciou incontinenti a remessa do necessário, e assim Domenico pôde embarcar no vapor “Lazio” e chegar a São Paulo em 15 de Novembro de 1907. A família abraçou o filho querido com muita alegria ao recebê-lo entre os seus. No dia seguinte, passada a comoção dos primeiros momentos, Modesto, querendo conhecer os planos do filho Domenico, perguntou-lhe sobre o que desejava fazer. Domenico respondeu que, uma vez que bem pouco poderia esperar do ofício de seleiro, julgava mais proveitoso se dedicar ao comércio, idéia que o pai aceitou com grande satisfação propondo-se logo à fazê-lo seu sócio com direito a metade dos lucros; acrescentou mais que, como tinha idéia de deixar São Paulo em 1911 - o deixaria naquela data em seu lugar. Domenico não cabia em si de contente e não parava de agradecer a bondade do pai. Mal podia imaginar o que, dentro de poucos dias, o esperava.
Havia passado apenas dois dias da chegada de Domenico e o pai resolveu empreender uma viagem de negócios. Assim foi que, no dia 18 de novembro de 1907, ambos seguiram para Itapetininga.




Estação de trem de Itapetininga, no início do século XX, na ocasião da visita do Bispo
Foto cedida por Elias Vieira para www.estaçoesferroviarias.com.br


Ali chegando, cuidaram em primeiro lugar de resolver uma pendência com um tal Quatrarnera, após o que Modesto visitou os negociantes conhecidos da cidade a fim de apresenta-lhes o novo sócio na pessoa de seu filho Domenico.

Dirigiram-se em seguida para Tietê e de lá partiram para Itu, onde compraram cem sacos de feijão de Miguel Gonçalves Soriano. Em todos os lugares, Modesto cuidava sempre de apresentar o filho a fim de que, no futuro, o mesmo pudesse negociar sozinho. Concluídos os seus negócios, seguiram para Piracicaba onde se hospedaram no Hotel Bela Vista. Também nesse lugar Modesto apresentou o filho à dona do Hotel, pedindo-lhe que cuidasse bem dele, ao que ela respondeu “que podia ficar tranqüilo, pois trataria Domenico como um filho.”




Estação de trem de Itu - 1909
Foto de Antonio Martins Coelho. Reproduzida do livro Itu - Patrimônio Cultural Paulista


O pai ficou contente com a viagem, pois tinha dado o resultado esperado: os negociantes da região ficaram conhecendo Domenico e dele tiveram uma boa impressão, assim como ficara com a certeza que, nos hotéis onde o filho deveria se hospedar em suas viagens, seria tratado com os cuidados necessários para um moço novo e inexperiente. Por outro lado, Domenico estava entusiasmado com a nova vida que iniciava.

Foi com esses pensamentos que ambos fizeram a viagem de volta para São Paulo.

No dia 22 de novembro Domenico saiu outra vez em viagem para o interior, mas desta feita sozinho e levando consigo 7:700$000 (sete contos e setecentos mil réis). Estava animado e queria demonstrar ao pai que seria merecedor da confiança nele depositada. Visitou diversas cidades como Itu, Rio das Pedras, Capivari e Indaiatuba, fazendo compra de cereais.


.....oooooOooooo.....

LEIA O CAPÍTULO 5



(1) As informações deste capítulo são advindas da Tribuna de Indaiá de 04 e 11 de dezembro de 1960.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

BARÃO E VISCONDE DE INDAIATUBA

texto de João Marcos Fantinatti[1]




Inspirado no livro de Paulo Brilhante, intitulado Campinas, assim como outros dados de alfarrábios, faço aqui uma justa homenagem a este senhor, Joaquim Bonifácio do Amaral, que também é condignamente homenageado pela cidade de Indaiatuba, com nome de uma de suas mais importantes avenidas.

Joaquim Bonifácio do Amaral, filho do tenente José Rodrigues Ferraz do Amaral e Matilde de Almeida Pacheco, nasceu em Campinas a 03 de setembro de 1815 e foi batizado na igreja “Matriz Velha”, hoje Matriz - Basílica Nossa Senhora do Carmo.

Seu pai era um latifundiário e proprietário de grande fazenda de café, a Sete Quedas e por certo foi ali que nasceu.

Casou-se com a sua sobrinha Guilhermina Pompêo do Amaral em 24 de junho de 1839.



Com 27 anos participou de uma ação junto às forças liberais, comandada por Boaventura do Amaral Camargo. Ambos eram capitães e pertenciam a Cavalaria da Guarda Nacional. A ação revolucionária trazia em seu bojo um movimento liberal; pois as leis da reforma judiciária, criadora do Conselho de Estado, atentavam contra a Constituição do País, violando o Ato Adicional. O golpe de estado de maio de 1842, que dissolveu a Câmara dos Deputados, em sua maioria contra o governo, amputara à oposição o recurso legal. Os conservadores estavam no poder desde março de 1841, sendo presidente da Província de São Paulo, o Barão de Monte Alegre. Os liberais estavam exasperados, e em São Paulo projetaram depor o presidente da província e aclamar o Brigadeiro Tobias de Aguiar para o cargo. Este movimento ficou conhecido como Batalha da Venda Grande. A localização atual desta batalha ocorreu, na Rodovia Dom Pedro I, quase confluência com a Rodovia Anhanguera, isto no bairro Santa Mônica em Campinas, onde existe um monumento ao fato.

Joaquim Bonifácio do Amaral foi um chefe à frente do Partido Liberal, com boa atuação no município de Campinas por três décadas e ainda quando exerceu o cargo de Vereador pelo triênio 1849/51. Foi distinguido com a comenda de Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, conforme decreto imperial de 07 de abril de 1846. Foi também nomeado para ocupar a Vice-Presidência da Província de São Paulo, o que não aceitou.

Com alto poder aquisitivo, foi um benemérito de sentida relevância em sua terra natal, e teve participação na criação do secular colégio Culto à Ciência de Campinas e tanto que na primeira assembléia da “Sociedade Culto á Sciencia”, realizada em 19 de maio de 1869, foi eleito para a primeira diretoria.

Como muitos de sua extirpe e de sua época, foi também maçon.



Recebeu o título de Barão de Indaiatuba em 16 de fevereiro de 1876 e de Visconde de Indaiatuba em 19 de julho de 1879.

Contribuiu com elevadas somas financeiras para a construção da interligação da Estrada de Ferro de Jundiaí a Campinas. Também se deve a ele a fundação do Clube da Lavoura em Campinas; isto ainda por ser um grande produtor agrícola na região. Ainda no campo da benemerência teve grande participação financeira na construção (isto muito antes de fazer parte da diretoria pró-obra do templo) da “Matriz Nova”, atual Catedral Metropolitana de Campinas. Tendo a honra de vê-la inaugurada em 08 de dezembro de 1883.

Por volta de 1852, mostrou-se um verdadeiro pioneiro ao implantar o “braço livre”, na região de Campinas, e assim em sua fazenda, organizou a primeira colônia de lavradores estrangeiros, com contratação de imigrantes alemães (nove famílias - 65 pessoas - provenientes de Holstein, norte da Alemanha). Tendo-se em mente que mais cedo ou mais tarde haveria tornar-se desnecessário a mão de obra escrava, mais o animou no contratar outras gentes de fora do país. Assim contratou por volta de 200 trabalhadores que vieram para formarem novas roças, sem para isso ter que ir a Alemanha, em Holstein, como aconteceu em 1870, e ainda antes do término de terceiro quartel (1873) continuou a contratá-los.

Por essa época o Visconde já tinha adquirido mais algumas terras, as do Salto Grande, no município de Amparo, onde tinha extensos cafezais totalmente abandonados, devido à escassez de mão de obra escrava. Com as culturas totalmente perdidas, foi quando também se utilizou contratar de novos empregados, isto já pelo ano 1876, quando enviou seu auxiliar à Blumenau, Estado de Santa Catarina, e este de lá voltou trazendo 10 famílias. Nesse mesmo ano precisava de mais colonos, foi quando através de Joaquim Caetano Pinto Baia, vieram mais 350 tiroleses e já em 1877 contratou mais 70 lombardos. Desta maneira através do esforço do Visconde, Campinas passou a receber muitos elementos imigrados, que os transferiu para Amparo, e até para as terras de Saltinho.

O Bairro Friburgo, do alemão Friedburg (que significa castelo da paz), na divisa entre as cidades de Indaiatuba e Campinas, teve origem nos imigrantes que vieram para trabalhar na fazenda Sete Quedas do Visconde.

A vida desse brasileiro não foi só isso, pois que por outros campos também teve o reconhecimento de todos, até pelas figuras imperiais, como a de Dom Pedro II, assim como da imperatriz Teresa Cristina, quando de suas visitas, a Campinas, onde por sinal se hospedaram na famosa mansão, situada nas confluências das atuais ruas General Osório e Barão de Jaguara, que em 1994 sofreu um grave incêndio e que depois de restaurada permanece imponente. Salienta-se, que defronte a este velho casario, tem-se a Praça Visconde da Indaiatuba; ficando ambos – atualmente - na zona central de Campinas.

Com a vida de uma grandeza impoluta, conviveu para gáudio de sua terra natal, quando Joaquim Bonifácio do Amaral (Visconde de Indaiatuba) veio a falecer aos 69 anos de idade, a 08 de novembro de 1884.

A fazenda Sete Quedas hoje faz parte da Fundação Bradesco.

[1] É memorialista, nascido em Campinas e mantenedor do espaço na Internet cujo endereço eletrônico é: http://pro-memoria-de-campinas-sp.blogspot.com/
 


Complementos:

Av. Visconde de Indaiatuba - Década de 1980


Jornal GAZETA DA TARDE de 8 de fevereiro de 1884


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Estações Ferroviárias no Casarão do Pau Preto - VISITE!

O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC) promove a 10ª Semana Nacional de Museus.

O evento que neste ano ocorrerá entre os dias 14 e 20 de maio, acontece anualmente para comemorar o Dia Internacional de Museus (18 de maio). A 10ª edição da iniciativa terá como tema Museus em um Mundo em Transformação – novos desafios, novas inspirações, e a programação contará com a participação de instituições museológicas de todo o país.”

Imagem cedida por José Aristides Barnabé.


No Museu Casarão Pau Preto a Exposição chamará “O Desafio da Preservação

A exposição está composta por fotos antigas e atuais fotos das estações de trem do município: Pimenta, Helvetia, Bela Vista, Itaici e Indaiatuba. As imagens são reproduções do acervo da Fundação Pró-Memória (Coleções de Antonio da Cunha Penna e Antonio Mingorance Filho) e outros colaboradores (Sérgio Ueda, José Aristides Barnabé, Cássio Sampaio e Eliana Belo Silva).

Os objetos do acervo da Fundação Pró-Memória sobre o tema são: antigo farol de sinalização utilizados nas estações e uma placa da antiga Estação de Pimenta e antigos documentos resgatados da Estação Itaici.

A exposição conta também com um brinquedo: miniatura de trem e trilhos adquiridas em uma loja popular de Indaiatuba.

A exposição será ambientada por músicas que tem como tema o trem, além de vídeos com o mesmo tema.

.....oooooOooooo....


Colaborou: Priscila Tolêdo e Claudia Kreidloro

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Fatos e Coisas de Indaiatuba Antiga - Seus tipos populares

 texto de EJOTAELE



Largo da Matriz com seu lampião



Recordar é viver.

Seja esse o nosso "intróito", para usarmos de um lugar comum.

Aliás, dizem os poetas, dizem-nos os sentimentais, dizem-nos os materialistas, em suma, dizem todos.

Lembrar os velhos tempos, os costumes, as tradições populares, os fatos e as coisas do nosso berço natal, é da essência da arte e da poesia; é dar os respingos da história, o que vale dizer, dar relevo, que às vezes tem faltado em muita cidade, eis que não houve quem os louvasse.

Tem-se conhecimento de muitos povos que tiveram seus personagens populares, anônimos a princípio, confundido-se logo após, nos anais da própria história. Assim é que nos vemos gostosamente empenhados, em rápido bosquejo, a falar sobre história, numa celebração sincera e agradável.

De gratidão e ternura, à terra que nos viu nascer, talvez de mais valia que certas homenagens convencionais e inexpressivas. Não se trata, é certo, de história com H maiúsculo, porque a tanto não queremos chegar e porque seria veleidade que não temos. Trata-se sim, de narrativa pobre da vida dos tipos populares que existiram em nossa terra, ou melhor, diríamos, da biografia desses elementos humanos, cuja existência por vezes amesquinhada, contudo, compartilharam em parte, da formação do nosso patrimônio histórico...

E não seria para menos. O nosso desejo destina-se, isto o reafirmamos, a imprimir nossas afetuosas manifestações de amor ao nosso berço natal. E porque vêem quase todas acompanhadas de expressões de saudade e de louvável jacobismo, acreditamos ter correspondido aos sentimentos de nossos amáveis e queridos conterrâneos.

Foi com esse intuito que aqui viemos, sem preocupações literárias, sem pretensões, copiando ao natural, sem traços e cores convencionais.

Indaiatuba, pobre embora na sua formação histórica, teve o seu quinhão respeitável no que tange aos elementos populares que medraram meio século atrás*, até os nossos dias. Remontêmo-nos, de início, aos velhos tempos dos lampeões à queresone, que o "Nenê do Lampião" ou Nenê Pedroso, placidamente, escada ao ombro, acendia ao cair da noite e apagava aos primeiros clarões do dia seguinte.

Saudosos lampiões que moldavam as noites da nossa velha e silenciosa Indaiatuba!


Era comum ouvir-se falar dessas noites tipicamente indaiatubanas, como se quisessem glorificar os vetuscos lampeões com seus jatos de luz mortiça. Em realidade, eram noites de reçumante poesia, de românticas serenatas com o Raul Bicudo à frente, Hilário, Miloca e outros velhos e entusiastas corifeus da música. Esquecê-los, quem há de?

Dizem os saudosistas que a boemia, por esse tempo, pontificava na velha Indaiá. Segundo relatos da época, aí pelos idos de 1900, havia aqueles que compraziam em "pregar peças" e algumas delas se revestiam de cunho malévolo ou acintoso.

Conta-se, que de uma feita, um grupo de moços em "travesti", depois de haver penetrado em certa casa, pela calada da noite, surrupiou de lá uma escrivaninha, levando-a em seguida, atrás da igreja matriz, tendo ali deixado, não só o imóvel, como também numa das gavetas, um bilhete assim concebido: "foram seus amigos do inferno".


.....oooooOooooo.....



* o autor se refere a primeira metade do século XX.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

O Crime do Poço - Capítulo 3 - A Indaiatuba de 1907

Capítulo III – A Indaiatuba de 1907

No ano em que acontece o crime, a configuração geográfica de Indaiatuba era muito próxima da atual, por sua vez praticamente a mesma desde quando se tornou freguesia, em 09 de dezembro de 1830: uma região situada entre as bacias hidrográficas dos rios Capivari - Mirim, Jundiaí, Piraí e ribeirões Santa Rita e Buru.

O presidente do Brasil republicano era o mineiro Affonso Penna, o governador do Estado de São Paulo era Jorge Tibiriçá Piratininga, o prefeito (na época, chamado de agente executivo) de Indaiatuba era Alfredo de Camargo Fonseca – o Major Alfredo (1), o delegado era João Fermiano de Souza, o Juiz de Paz era José Tancler, que também era “camarista” (vereador) junto com mais seis pessoas: Antônio Estanislau do Amaral Campos, Antônio Ambiel, Francisco Celestino Guimarães, Benjamin Constant de Almeida Coelho, Luiz Gonzaga Bicudo e Alfredo de Camargo Fonseca (ele mesmo, que também era prefeito). O procurador (funcionário público que era responsável pela arrecadação de impostos) era Jordão Teixeira de Camargo e o fabriqueiro (2) era Luiz Teixeira de Camargo, que também era escrivão do cartório e escrivão da polícia.


Major Alfredo de Camargo Fonseca
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Com a análise dos dados citados por Nilson Cardoso de Carvalho (2004, p.51 e 80) pode-se presumir que pouco mais de 1.200 pessoas moravam na pacata área urbana do município na data do crime, a grande maioria em casas de barrote de pequena altura. Em 1854 a população total da então freguesia de Indaiatuba era de 3.024 habitantes que tiravam seu sustento principalmente da produção de açúcar e café. Em 1872 era 3.749, sendo que 1.689 eram escravos. Em 1900 era de 7.137 e em 1920 havia 9.944. Por volta de 1911 supõe-se que tivessem 1.486 pessoas morando na área urbana e 7.044 pessoas morando nos sítios e fazendas.

A cidadezinha teve início em torno de uma capela que passou a ser capela curada em 1813. A capela curada(3), inicialmente denominada Nossa Senhora da Conceição foi reformada, cresceu e hoje é a matriz Nossa Senhora da Candelária. No entorno da matriz foram sendo construídos alguns casarões, que serviam de residência urbana para os donos das fazendas dos arredores. Na época do crime, nos casarões do largo da Matriz (4) “residiam os principais do lugar: oficiais da Guarda Nacional, fazendeiros senhores de engenho fazendeiros cafelistas, comerciantes principais e autoridades locais (5)”.





Casarões da época – Largo da Matriz, esquina com Rua 15 de Novembro
Foto original da  Fundação Pró-Memória de Indaiatuba

Já a maior parte da população da zona urbana, ou seja, os pequenos comerciantes, artesãos e trabalhadores livres moravam em casas simples, de barrote de pequena altura. Essas casas geralmente possuíam pequenos jardins ou terreiros com pequenas hortas, árvores frutíferas e galinheiros, ou ainda, como escreveu o notável indaiatubano Nabor Pires Camargo, não só galinheiros, mas pequenos zoológicos, com “frangos, cabritos, leitões, perus, carneiros, e algumas vezes até caças de pelo, como capivaras e pacas (6)”. Eram delimitadas, quando muito, por cercas de arame ou taquara.




Casinhas do antigo centro urbano – Esquina da Pedro de Toledo com a Siqueira Campos
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


O largo da matriz não era somente o centro geográfico, pois tudo girava praticamente em torno da igreja, inclusive as eleições. Ali as crianças brincavam descalças, testemunhadas por viajantes que desembarcavam de trem na estação, que ficava nas proximidades, vindos para negociar os cereais produzidos nas fazendas da redondeza. Os casamentos e batizados, juntamente com outras festas de cunho religioso, principalmente as festas em louvor a padroeira Nossa Senhora da Candelária que eram realizadas desde a criação da freguesia, eram praticamente os únicos eventos do local, onde a vida transcorria bucolicamente. Nessas ocasiões os moradores vestiam suas melhores roupas, geralmente costuradas com tecidos simples, vendidos nas poucas lojas de armarinhos ou por mascates que ocasionalmente batiam de porta em porta para negociar, quebrando o silêncio das ruazinhas de chão batido onde era “proibido correr de cavalo a galope, salvo urgentíssima necessidade sob pena de multa (7).”

A igreja Nossa Senhora da Candelária era o único templo religioso da cidade (8) construído em taipa de pilão, belo exemplo da arquitetura religiosa colonial paulista. Em seu largo, atual Praça Leonor de Barros Camargo, existia um caminho rodeado de palmeiras imperiais. A fachada da frente da igreja era lisa, e agora onde tem as torres, havia apenas quatro efeitos de cimento em forma de pião.




Igreja Nossa Senhora da Candelária – 1910
Do lado esquerdo é Sylvio Ferreira do Amaral, indaiatubano nascido em 23/08/1898
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba



Na medida em que se afastava da igreja, as habitações ficavam escassas rapidamente, dando lugar a pequenas chácaras, terrenos desabitados e aos campos de vegetação nativa, onde se via araçás, guarirobas, araticuns, cajuzinhos do campo, guapevas, pitangas e as palmeiras de indaiá, cujo fruto, o coquinho de indaiá, era muito apreciado pelos moradores, principalmente as crianças.

O crime provocou muito alvoroço na pacata cidadezinha, “na qual a crônica policial de então se entretinha em significantes querelas (9)”. Não tinha jornal, nem cinema, nem teatro e a distração mais comum era visitar os compadres e comadres para conversar e tomar um cafezinho perto do fogão de lenha, após caminhar nas ruas de chão batido. Aliás, teatro já havia existido ali. Na antiga rua do Comércio (atual 15 de Novembro) existira um teatro, todo construído de madeira. Era usado como um centro de, digamos, eventos: festas, bailes e outras reuniões e comemorações importantes, “como o término da Guerra do Paraguai (10)”, eram feitos ali. Mas como fora demolido após o fim do regime monárquico, a população ficou sem essa preciosidade.

Havia alguns saraus nas residências dos poucos “mais abastados” da cidade e fora as festas do calendário religioso, a população participava periodicamente das corridas de cavalos. Tal modalidade de diversão movimentava a população alguns dias antes. Barracas cobertas e emparedadas com folhas de indaiá (11)   eram erguidas para serem pontos de venda de doces caseiros e bebidas. Violeiros tocavam suas modinhas em volta de fogueiras nos dias que antecediam a grande competição. Entre as provas, havia uma muito peculiar,


“...nenhum concorrente montava no seu próprio animal...o burro que chegasse em último lugar seria o vencedor, de maneira que cada jóquei fazia sua montaria correr ao máximo, a fim de que o animal de sua propriedade...chegasse em último lugar e vencesse a corrida (12)”.


Jogos, principalmente de cartas, também era um lazer comum, principalmente para os que freqüentavam vendas e botecos (13). Mas as poucas atividades de lazer, religiosas ou não, públicas ou privadas, eram mesmo raras, o que mantinha a população aderida ao trabalho cotidiano.




Festa em Indaiatuba no Largo da Matriz em 11/10/1908
Embaixo da segunda janela (direita para esquerda), está Francisco J. de Araújo, o Chico de Itaici
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba



Nesse ano de 1907 (em que foi inaugurado, no Rio de Janeiro, o serviço de fornecimento de energia elétrica que só existia, até então, em alguns locais da cidade de São Paulo) e até 1913 as ruazinhas de Indaiatuba - como em quase todo o Brasil - eram iluminadas por lampiões a querosene, em um sistema inaugurado em 25 de novembro de 1887. Afora isso, só a lua e as estrelas. Na parte central da cidade, os postes guardavam entre si uma distância de 100 metros, localizados na maioria das vezes nas esquinas, eram de madeira e com uma altura de aproximadamente 2,5 metros.


“Todos os dias após o meio-dia o responsável (que em 1911 era o Sr. Nenê Pedroso) ia de poste em poste a fim de efetuar a limpeza dos vidros e colocar querosene nos lampiões. Ao cair da noite refazia o trajeto, parte por parte, para acender a modesta luz (14) ”.

Mesmo com esse sistema, a luz era mortiça e piorava em noites com neblinas. Os vereadores da Câmara de Indaiatuba tentaram coibir os atos de alguns vândalos que depredavam os postinhos do já frágil sistema. Existia uma lei criada desde 1888 que “impunha multa às pessoas que fizesses qualquer dano aos lampiões, bem como obrigava a pôr os mesmos no estado em que estavam antes (15).”

Havia duas “Escolas Isoladas” até o fim do ano de 1907: uma na zona urbana, e outra no bairro de Itaici. Não havia um “Grupo Escolar”, muito embora em 1895, por iniciativa de políticos locais, as crianças de Indaiatuba tivessem sido unidas em um prédio que denominaram “Grupo Escolar Alfredo Fonseca”, que foi dissolvido após breve funcionamento (2 anos). O motivo mais provável foi o desagrado provocado na oposição política do patrono do estabelecimento, que não gostou do nome escolhido. Esse grupo contava com 122 alunos matriculados em 4 classes. Apenas 4 anos após o crime (1911) é que foi instalado o Grupo Escolar , desta feita com estrutura oficial da província.

Conta Henrique Ifanger, ao escrever suas memórias no livro “Fragmentos de Memórias” que, antes de Nabor Pires de Camargo ir embora de Indaiatuba para estudar música em São Paulo, os dois sentavam ali, naquela escola, juntos, na mesma carteira escolar.

No que se refere à educação pública, no ano do crime (1907), em toda a província de São Paulo, 59.751 alunos estiveram matriculados numa rede composta de 80 Grupos Escolares, 1122 Escolas Isoladas e 12 Escolas Reunidas (16).



Grupo Escolar que funcionou depois de 1911 no Largo da Matriz - atual Escola Candelária
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Não havia água encanada. Na ocasião do crime, as pessoas da zona urbana utilizavam água retirada de poços dos fundos dos quintais ou ia buscá-la na bica do Córrego Belchior, localizado no “Buraco da Estação” na frente da Estação Sorocabana, entre esta e o então pasto do Pinheiro (onde mais tarde seria construído o Hospital Augusto de Oliveira Camargo). Era ali também que as mulheres lavavam suas roupas: baldeavam-nas em tinas e bacias e usavam como varal os arames farpados das cercas próximas; para depois de secas serem passadas com pesados ferros aquecidos com brasa.

Só após 8 anos do crime (1915) é que foram instaladas 08 torneiras públicas por onde vertia água filtrada (com cascalho, areia e carvão) retirada do mesmo local, só que advinda de uma caixa d água construída na esquina das ruas 15 de Novembro e Cerqueira César (17). Crianças que iam e vinham das fontes e torneiras públicas, baldeando o precioso líquido em latas de querosene nos pequenos carrinhos de mão, quebravam o silêncio do sossegado povoado (18).



Torneira pública situada na esquina da Pedro de Toledo com Siqueira Campos
Populares – principalmente crianças – iam buscar água com carrinho de mão e latas.
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Na época do crime, havia uma estrada que ia desde o largo da Cadeia (atual Praça Prudente de Moraes), em linha reta até Itaici, muito transitada por esses meios de transportes. Essa estrada passava por outro largo, o das Caneleiras (atual Praça Rui Barbosa). Esse largo abria-se defronte a uma pequena capelinha de nome Santa Cruz, atual Igreja de São Benedito. Alguns moradores freqüentavam ocasionalmente a capelinha, que ficava distante do centro, no meio de um capão de mato, rodeado pela vegetação silvestre... “sozinha naquele arrabalde, [mas] sempre lembrada pela voz de seu sino... (19). Mas outros motivos levavam os moradores para lá, primeiro, para raspar os troncos de três árvores de canela ali plantadas, (daí o nome “Largo das Caneleiras”) com o intuito de utilizar suas propriedades terapêuticas e culinárias. Mas também para jogar futebol; ali jogavam o Belo Horizonte Futebol Clube   (o time mais antigo) contra o Primavera Futebol Clube (20) (o segundo mais antigo, que surgiu um ano antes do crime, em 1906).

Foi também nesse largo que, naquela ocasião, o empreendedor de nome Francisco José de Araújo, também conhecido como Chico de Itaici ou Chico Bulão, construiu várias casas de tijolos geminadas (21), próximas a três árvores de canela. Segundo o cronista Rubens de Campos Penteado, que muito já se dedicou para registrar “nossa terra e nossa gente”, ele era uma espécie de “chefe político (22)” na região de Itaici, onde montou um botequim e mais tarde, um restaurante para almoço dos viajantes em trânsito (23),  .





Casas geminadas construídas por Chico de Itaici no Largo das Caneleiras
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba

Os largos da época, longe das características das atuais praças, nada mais eram do que um descampado de chão batido, com poucas árvores. Eram pontos de encontro entre os poucos transeuntes e também o local onde as crianças brincavam, no chão duro, de jogos de bolinha de vidro ou pião. Além da diversão nos largos, as crianças gostavam de armar arapucas para caçar passarinhos nos campos dos arredores, onde aproveitavam para beber os coquinhos das touceiras de indaiás.

O largo das Caneleiras foi também um ponto de passagem e parada para tropeiros, que por ali passavam, vindo ou indo de Campinas (antiga São Carlos), Itu ou mesmo Jundiaí. Não existia o Hospital Augusto de Oliveira Camargo e no local onde ele está construído, havia o pasto do Pinheiro, bem próximo às nascentes abundantes do Córrego Belchior, onde os animais bebiam água. Além das ferrovias e dos trens, os animais eram utilizados como meios de transportes para montaria ou tração. Muares, cavalos e até bois eram utilizados para transportar cargas. Na zona urbana de Indaiatuba via-se vários cavaleiros, carroças, carros de boi e troles, principalmente trazendo produtos das roças vizinhas para serem vendidos na cidade.Os fazendeiros ricos da região possuíam suas próprias tropas de muares, mas os pequenos e médios contratavam o serviço dos tropeiros, que levavam o café e outros produtos para os centros consumidores e portos, de onde traziam, na volta, alguns produtos importados como tecidos, ferramentas e sal. Esse transporte de produtos em lombos de burro foi diminuindo, na proporção do aumento das linhas de trem.



Transportes: boi e carroça que vendia milho.
À esquerda prédio do grupo Escolar e à direita lateral da igreja matriz Nossa Senhora Candelária
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba


Na época em que aconteceu o crime, brincava no largo da cadeia o nobre indaiatubano: Nabor Pires Camargo, o maestro Nabor. O então menino de apenas 5 anos, morava próximo ao largo, na esquina das atuais ruas 15 de Novembro e Bernardino de Campos (em frente onde foi a Casa Nicolau), onde residiu até completar 17 anos. Ali

“... fazia seus ensaios musicais em cima de uma mangueira que havia no fundo do quintal... [de onde, provavelmente]... avistou o cometa Halley, em 1910... que vinha dos lados de Itu, em direção a Monte Mor, uma das mais gratas recordações de sua infância, um espetáculo maravilhoso, mas que causava medo, desespero e até suicídios (23).”





Rua 15 de novembro (com a Rua 7 de Setembro) - início do século XX
Do lado esquerdo, na primeira casa (perto do lampião) funcionou a casa de comércio
Sempre Avanti Savoya! da família Tancler
Foto original da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba



No largo da Cadeia havia o prédio da câmara municipal, que também funcionava como cadeia pública. A entrada principal era a da cadeia onde havia o gabinete do delegado, o alojamento dos praças e as celas com grades de ferro. Nela eram encarcerados os “bêbados, alcoólatras violentos ou dementes”, conforme narra D. Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro (1997, p.93). Como havia uma janela na sala dos encarcerados que dava para o largo, comumente, segundo a autora, “presenciava-se um espetáculo desagradável, deprimente mesmo. Os detidos externavam seus desabafos por ela, com gritos de revolta e rosários de palavrões.”

Na porta da cadeia ficava um sino, que funcionava como... digamos, um relógio de controle social. Todos os dias às 9 horas da noite, nas “noites curtas” ou 8 horas da noite, nas “noites longas”, o carcereiro tocava o sino. O som das batidas – as “recolhidas” – indicava que era o momento de fechar o comércio e foi ouvido desde 1882, quando o sino foi adquirido pela câmara municipal, até aproximadamente 1930. Mas não era só a finalização das atividades comerciais que as badaladas controlavam, as famílias também se acostumaram a se recolher com o sinal, e as ruas iam ficando desertas após o ecoar das badaladas. Terminadas as “recolhidas”, a patrulha era feita por um dos soldados da cadeia, “...pondo em polvorosa os noctívagos e eventuais malfeitores que estivessem na cidade ...(25)

Na lateral, ficava outra porta: a da Câmara. Após a entrada, havia um salão para os funcionários e o gabinete do prefeito. Segundo Antônio Zoppi (1998, p.64), que deixou suas preciosas memórias no livro “Reminiscências de Indaiatuba” onde registrou os primeiros anos do século passado, a "...câmara só abria sua porta no mês para pagar [receber] o imposto predial. A chave andava no bolso do fiscal, que resolvia tudo sozinho, pois o prefeito morava numa fazenda e só aos domingos vinha para a cidade.”

Onde ficava o prédio da cadeia e câmara atualmente há uma fonte luminosa e é o marco zero de Indaiatuba. As coordenadas geográficas do município foram traçadas exatamente da porta do prédio, conforme mostra a figura seguinte, cópia do croqui feito em 1947  (26).


Ainda segundo o mesmo autor, o centro comercial da época girava em pequeno entorno da esquina da rua do Comércio (atual rua 7 de Setembro) com a rua 15 de Novembro. Existiam poucos armazéns de secos & molhados e algumas parcas lojas de armarinhos. Um único açougue funcionava na época, em um prédio na esquina das ruas Siqueira Campos e Pedro de Toledo. O dono do açougue matava um boi a cada sábado, quantidade suficiente para abastecer os cidadãos no período. O matadouro onde planavam os urubus, ficava no final da rua 15 de Novembro e após o abate, a prefeitura era a responsável por transportar o boi esquartejado em uma carroça de lixo, não sem antes o cadáver ser lavado no tanque do Barroso, atual fazenda Bela Vista (27).


Vinte e um anos antes (em 1886) a vida bucólica da cidadezinha só fora agitada pela passagem do Imperador D. Pedro II por Indaiatuba (28), a caminho de Piracicaba. O alvoroço provocado pela passagem, seguida e repetidamente narrada de pai para filho, demonstra a escassez de novidades na época, explicando assim (também) a forte repercussão do bárbaro crime. O povo, juntamente com o vigário da paróquia na data, Padre Luiz Del Giudice, que também era italiano, foi cumprimentar a comitiva real, saudosamente festejada com queima de fogos subvencionada pela Câmara (que na época era a denominação de “prefeitura”) e pela banda local, regida pelo maestro José Mico, que contava com 16 instrumentos de propriedade da igreja (29). Em uma época em que raras informações chegavam ao lugarejo, provavelmente só se comentou esse assunto durante muito tempo.

Mas na ocasião do crime, nesse cenário iluminado por lampiões a querosene e formado por casas de barrote em volta da matriz, poucos casarões ali vizinhos, largos e pequenas vendas, o único assunto que dividiu mesmo a atenção dos moradores com o crime foi a eleição, que ocorreu no mesmo mês e ano: dezembro de 1907. Dos sete vereadores já citados, quatro elegeram-se novamente: o Major Alfredo, Benjamin Constant de Almeida Coelho, Antonio Ambiel e Antonio Estanislau do Amaral e três novos nomes assumiram a função de camarista (vereador): Cesare Lisone, José Balduino de Campos e Reynaldo Steffen (30). Essa eleição, entre outras ocorridas na província de São Paulo, transcorreu calmamente, segundo registrou o Presidente do Estado de São Paulo, Dr. M. J. Albuquerque Lins:

“Realizaram-se em dezembro do ano findo as eleições gerais para vereadores, prefeitos e juízes de paz. Extraordinariamente concorrido e disputado, ocorreu o pleito na mais perfeita calma, o que bem demonstra, a par do espírito eminente e ordeiro do povo paulista, o grande interesse que nele desperta sua representação municipal ... [e por essa ordem e calma foram] ...sentindo-se garantidas todas as facções e frações partidárias, devido, em grande parte, à imparcialidade com que, compreendendo seus deveres, se manteve a polícia (31).

De modo geral, as condições de higiene e saúde da época eram precárias. Não havia exigências sanitárias para os armazéns, que vendiam de tudo: azeite, querosene, vinagre de vinho, pinga, toucinhos, lingüiças e pernis (estes últimos sempre dependurados em varões suspensos, próximos ao teto “sempre recobertos de teias de aranha para dar sorte”) (32) e até remédios caseiros. Até o prédio da Cadeia, erguido pelo construtor Constantino Cassabuona especialmente contratado para isso, não possuía banheiros: “as funções fisiológicas dos detentos eram recolhidas em latas de querosene, que um pracinha responsável despejava no mato , isso quando os próprios prisioneiros não jogavam os excrementos pela janela, emporcalhando o largo (33). O banheiro de muitas casas da cidadezinha ficava do lado de fora da casa, os excrementos ficavam em fossas que, periodicamente eram esvaziadas. A sujeira toda ia para uma espécie de barril que, transportado por uma carroça, higienizava a zona urbana.

Os boticários das duas farmácias existentes no início do século passado faziam visitas aos doentes, davam o diagnóstico e eles próprios manipulavam e vendiam as porções. Cuidavam de picadas de inseto e cobras e faziam curativos. Tinha também “Nhá” Joaquina Roque, “indaiatubana muito antiga, que conhecia todos os remédios de nosso campo  (34).” Hospital não havia, mas o Internato São Luiz em Itaici (atual Mosteiro de Itaici), além de funcionar desde 1860 como local de retiro para jovens seminaristas, também funcionava como sanatório para alguns doentes.

Oficialmente, o ano da morte de Domenico De Luca entrou para a História como o ano em que a febre amarela foi erradicada do Rio de Janeiro. Essa doença havia provocado um surto significativo em Indaiatuba em 1899. Em três meses (maio até julho) morreram 64 pessoas, na sua maioria de 30 anos para cima (35) . “Uma comissão de médicos notáveis tais como Emílio Ribas, Paulo Bourroul, Evaristo Bacelar, Luiz de França e Vital Brasil foi enviada pelo Governo Estadual para debelar a epidemia, não enviando, contudo, medicamentos (36)" [SIC!]. Quem trabalhou mesmo socorrendo a população pestilenta foi o farmacêutico Francisco Xavier da Costa, o Chico Boticário que “com coragem e estoicismo enfrentou praticamente sozinho aquele verdadeiro cataclismo”, elaborando mais de mil receitas no período e que “em nenhum minuto sequer abandonou as trincheiras do seu laboratório(37)”, situado na rua Siqueira Campos esquina com a rua Pedro de Toledo. Para não padecer pela febre, muitas pessoas fugiram do município.

Havia uma fábrica em Indaiatuba na época do crime, e que por sinal existia desde 1895: uma cervejaria, inicialmente de propriedade de Carlos Montebello e a partir de 1907 de Luiz Petri. “400 réis a garrafa.” Eram garrafas fechadas (como quase todas da época) com rolhas amarradas com barbantes (38), que estouravam quando abriam, daí o apelido “cerveja marca barbante ”. “Esta cervejaria teve outros donos e feitos: Alfredo de Camargo Fonseca batizou a cerveja com o nome de “Condor”; Alfieri Martini transformou-a em “fábrica de bebidas” diversificando a produção e Alexandre Prandini criou dois sabores, que ficaram famosos: Natural e Abacaxi (39).”

Como outras cidadezinhas do interior paulista cafeeiro, a Indaiatuba daquela época tinha, resumidamente, um perfil determinado pelo vínculo entre “estrada de ferro”, “café” e “imigração”; vínculo que descreve com muita propriedade a história do Brasil do fim do século XIX e início do século XX, mais ainda no estado de São Paulo onde, na ocasião do crime, exatamente em dezembro de 1907, havia “... 4082 quilômetros de trilhos... [por onde passavam] 489 locomotivas, 666 carros e 8.770 vagões (40) .” O Brasil tornou-se, em 1840, o maior produtor mundial de café e a partir daí a representação deste produto no percentual de exportação só subiu, de aproximadamente 50 % na década de 1870, chegando a 70% na década de 1920.

Esta expansão do café levou a ampliação das vias férreas, principal caminho para escoar a produção das fazendas do interior para o porto de Santos e atraiu a mão-de-obra de imigrantes europeus. Como exemplo da grandeza do período cafeeiro em Indaiatuba, Adriana Carvalho Koyama (41) destaca o inventário (1910) do dono da Fazenda Pimenta, Coronel Antonio de Almeida Sampaio, através de registros da Coleção Nilson Cardoso de Carvalho de História Regional: " as fazendas Pimenta, da Gama e Santa Rita possuíam, juntas, 645.000 pés de café, numa área de 900 alqueires, com 111 casas de colonos, grande contingente de imigrantes e sua própria estação de trem: a Estação Pimenta".
 
.....oooooOooooo.....
 
(1) Alfredo de Camargo Fonseca foi prefeito de Indaiatuba de 07/01/1905 até 24/10/1930 ininterruptamente. Também foi prefeito nos seguintes períodos: (1) 26/10/1930 a 19/12/1930; (2) 5/5/1931 a 4/9/1934 e (3) 15/5/1938 a 12/7/1939. Também foi eleito vereador 10 (dez) vezes, sendo seu primeiro mandato a partir de 30/09/1892 e o último até 31/12/1931.

(2) Membro de uma paróquia, encarregado de recolher os rendimentos de uma igreja, administrar-lhe o patrimônio (que pode incluir o cemitério) e zelar pela conservação de alfaias e parâmetros.

(3) Segundo a definição de áreas do Instituto Geográfico e Cartográfico, capela é uma pequena igreja de um só altar, sem pastor próprio. Já capela curada é a designação dada a uma capela ministrada, em caráter permanente um pároco ou cura, são igualadas às paróquias. Indaiatuba, também chamada de Cocais nessa época, passou a ter sua “capela curada” quando recebeu imóveis doados por Pedro Gonçalves Meira (CARVALHO, 2004. páginas 34 até 38).

(4) Vale registrar que o casarão mais antigo é a antiga sede da Fazenda Engenho D’Água (Jardim Morada do Sol). A construção foi apontada por Celso Lago Paiva, do Grupo de Estudos de História da Técnica da UNICAMP como a mais antiga edificação remanescente de Indaiatuba, sendo sua construção datada de aproximadamente 1755, com características arquitetônicas de tradição bandeirista.

(5) CARVALHO, Nilson Cardoso de. Os Casarões Antigos do Largo da Matriz de Indaiatuba . Capturado em agosto de 2007 em: http://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/textos/casaraoantigo.pdf

(6) CAMARGO, Nabor Pires. Recordações de um Clarinetista. Indaiatuba (SP): Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 2000, (Crônicas Indaiatubanas - Volume 2)

(7) SAMPAIO, 1998, p 172.

(8) Somente em 20 de agosto de 1911 teria início as atividades dos presbiterianos em Indaiatuba, com um culto realizado na data, segundo Martha de Andrade Barboza Marinho in “Presbiterianos em Indaiatuba”, texto publicado no livro Um Olhar Sobre Indaiatuba. Indaiatuba: Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 2006, p. 211.

(9) DOTTA. 1985. p.11

(10) SAMPAIO. 1998. p.130

(11) SAMPAIO. 1998. p.346


(12) CAMARGO. 2000. p.43

(13) A preocupação em conter os jogos de azar já se manifestara em Indaiatuba muito antes do “Crime do Poço.” A Câmara Municipal decretou em suas Posturas, no ano de 1863, que “ficam proibidos os jogos de azar com dados ou rodas da fortuna, ou outro qualquer jogo de parada pelo qual se obtenha fortuna alheia, quer se pratique em casas públicas, quer em particulares, sobe pena de multa.”

(14) ZOPPI, Antônio. Reminiscências de Indaiatuba. Indaiatuba (SP): Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 1998. (Crônicas Indaiatubanas) p.30

(15) SAMPAIO. 1998. p.130

(16) Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo pelo Presidente do Estado de São Paulo, Dr. M. J. Albuquerque Lins, em 14 de julho de 1908, p. 7. São Paulo. TYP do Diário Oficial, 1916 (reedição).
 
(17) SAAE (Indaiatuba – SP, Brasil). “História do SAAE”. Texto capturado em agosto de 2007: http://www.saae.sp.gov.br/saae_historia1.html

(19) SANNAZZARO, 1997. p.51.

(18) ZOPPI, 1998. p. 25

(20) ZOPPI, 1998. p. 22 (o autor refere-se a um time chamado Primavera, pois o clube de futebol de Indaiatuba, o Esporte Clube Primavera, só seria formado - como instituição - muitos anos depois, em 27 de janeiro de 1927).

(21) Entre as décadas de 30 e 40 essas casinhas funcionaram como local de temporada para doentes com tuberculose, que ali ficavam para aproveitar os benefícios do clima local. Informação de Antonio Reginaldo Geiss, dada em 2007 (informação verbal).

(22) PENTEADO, 1999. p.99

(23) SAMPAIO.1998. p.342

(24) Id. 1999. p.12

(25) PENTEADO, 1999, p. 184

(26) Gravura capturada em setembro de 2007 em http://www.igc.sp.gov.br/HistArqHist/croquis/croq_indaiatuba.htm


(27) ZOPPI, 1998, p.30

(28) Segundo Caio da Costa Sampaio, D. Pedro II passou por Indaiatuba três vezes: em 1864, 1846 e 1886.

(29) CARVALHO, Nilson Cardoso de. A Paróquia de Nossa Senhora da Candelária de Indaiatuba 1832-2000. Indaiatuba (SP): Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 2004, p.275

(30) SAMPAIO, 1998. p. 146

Mensagens apresentadas ao Congresso Legislativo de São Paulo pelos presidentes e vice-presidentes em exercício, deste a Proclamação da República até o ano de 1916. São Paulo. TYP. do Diário Oficial, 1916 (página 5 da mensagem do dia 14 de julho de 1908)

(31) Idem, p. 14

(32) ZOPPI. 1998, p.72

(33) SANNAZZARO, 1997, p.94

(34) ZOPPI, 1998, p. 44

(35) CARVALHO, 2004, p.72

(36) SAMPAIO, 1998, p.112

(37) Id., 1998, p. 112

(38) COUTINHO, Carlos A. Tavares. “Cerveja Marca Barbante ou a História da Cerveja no Brasil”. Capturado em agosto de 2007, da Geocities: http://br.geocities.com/cervisiafilia/cervbras2.htm

(39) LIZONI, Eutemiro José. Fatos e Coisas de Indaiatuba – Cópia Original datilografada, s.d. Acervo: Fundação Pró- Memória de Indaiatuba.

(40) Mensagens apresentadas ao Congresso Legislativo de São Paulo pelos presidentes e vice-presidentes em exercício, deste a Proclamação da República até o ano de 1916. São Paulo. TYP do Diário Oficial, 1916 (página 27 da mensagem do dia 14 de julho de 1908).

(41) KOYAMA, Adriana Carvalho et alii. Um Olhar Sobre Indaiatuba. Indaiatuba: Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 2006, p. 20, 21 e 22.


Postagens mais visitadas na última semana