segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Epidemias e Pandemias

1974. 

Eu estudava no Randolfo, na quarta série. Tinha três professoras: a D. Suzanna Ayres, D. Cinira e D. Inês de Barros Furlan, que me desculpem as outras, mas esta última minha preferida. E foi justamente ela, que explicava tão bem (esse é o principal parâmetro que eu tinha - e permaneci com ele até hoje - para avaliar uma boa educadora) que chegou na classe e disse, sem dar chances para perguntas:

- Depois de amanhã todo mundo vai tomar vacina aqui na escola.

A gurizada entrou em pandemônio.

_ Vacina? Na escola? De injeção? Com agulha? Por que? Por quê?

Choveu "por ques" de tudo quanto foi tipo, acompanhados ou não de choros contidos e - é claro - de cinismo dos mais masoquistas (tenho certeza que na minha classe tinha criança desse tipo). Fiquei aterrorizada.

Não pela vacina. Nego isso até hoje, afinal, nunca haveria de demonstrar na frente de ninguém que eu tinha medo de injeção.

O que me apavorou foi o silêncio dela. Silêncio que eu só entenderia muitos anos depois, quando já estava cursando História, e estudávamos a "Revolta da Vacina" que ocorreu no Rio de Janeiro e nossa discussão enveredou para o surto de meningite meningocócica que tivemos no estado de São Paulo naqueles idos anos em que o povão - totalmente desinformado sobre a epidemia - esperava ansiosamente a mesma performance que a Seleção Canarinho havia tido em 1970.

Dona Inês não respondeu porque simplesmente não tinha as informações corretas para serem repassadas. E naquele momento, o pânico misturado com a algazarra neurótica da criançada só passou quando o sinal tocou e todos saíram em desabalada correria para merendar as delícias da Dona Odete e Dona Candelarinha.

Mas chegando em casa, meu pesadelo - e acho que de todos - voltou. Desta vez era o silêncio da minha mãe, que dizia que alguém tinha falado para ela que a vacina era para prevenir a meningite, que eu sempre tomava vacina quietinha quando era bebê (soube então que minha habilidade em dissimular já era antiga) e que era para eu ir na fila e tomar a vacina quietinha. E pronto, acabou.

E foi assim que aconteceu. Umas pessoas sinistras chegaram na escola, uma fila imensa foi feita no pátio e a gurizada foi sendo vacinada com um "revolvinho" abastecido sei lá como, todos com a mesma agulha (é uma agulha, aquilo?). Se trocaram em algum momento, ninguém viu. Ui!

Uma feridinha apareceu no braço e as impressões, dores, empurra-empurra na fila e outros assuntos correlatos perduraram durante uns... três dias. Depois o silêncio voltou, o fato foi esquecido e o que voltou a importar era o mesmo assunto de sempre: o que teria na merenda?

É... A desinformação é o maior fator de propagação de doenças. E na época, no auge do regime militar, a epidemia foi tratada tal qual inimigo político preso em um porão: as informações ficaram presas, torturadas... e sucumbiram. A imprensa foi proibida de divulgar o que realmente estava acontecendo, e o povão desconhecia quais eram os sintomas, os sinais, quando ir ou não para o hospital, quais eram as medidas preventivas e - claro - qual era a dimensão da epidemia. Qualquer médico, jornalista da área da saúde ou pessoa um pouco mais antenada sabe que o primeiro caminho para conter uma doença bacteriana ou viral é procurar o foco inicial para dar início à um plano de contingência. E não dá para fazer nenhuma contenção sem informação. A mídia seria um excelente remédio de prevenção!

Mas não... os fardados, aqueles nefastos, ficaram calados e fizeram calar. Afinal, não poderiam expor que havia um inimigo ameaçando o "país de Alice" que eles insistiam em propagar. E a meningite, que é uma doença com altas probabilidades de cura, ceifou muitas vidas, que foram à óbito pela desinformação, uma vez que não tiveram chance de chegar no momento adequado às mãos dos médicos. Nessa situação bizarra, até muita gente das equipes de saúde também sucumbiu.

Foram pessoas levadas para a sepultura para não macular a imagem do país. Que nojo.

Digno também de registro, principalmente para análise e reflexão para nortear políticas de saúde pública foi o episódio conhecido como a "Revolta da Vacina". O médico sanitarista Oswaldo Cruz, aplicando medida óbvias - para nós, que estamos há um século do ocorrido - entre outras ações, obrigou a população do Rio de Janeiro a tomar vacina contra varíola. A população, ameaçada pela doença, mas sofrendo mesmo de ignorância, se rebelou.

"Tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados à pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas: o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz"
(Gazeta de Notícias, 14 de novembro de 1904).


(Revista da Semana sobre a Revolta da Vacina - outubro de 1904)


Depois teve a AIDS. Alguém aí se lembra que um doido de um médico do vizinho município de Salto apareceu no Fantástico apresentando uma progressão aritmética sobre o contágio da doença? Foi na década de 1980. Gente... se ele estivesse certo esse planeta estaria salvo da destruição da camada de ozônio, pois nós, os causadores de tal arrombo, estaríamos todos mortos e nem todos enterrados. Não sobraria ninguém.

Em seguida, a Gripe Suína. Ainda bem que sou vegetariana! (Brincadeirinha de mal gosto, essa...). E a mesma mídia que pode ter uma seríssima função de prevenir, pode piorar a situação, principalmente pelo sensacionalismo, pânico e insistência em divulgar dados, que na minha opinião, são precoces demais para servirem de referência. Vejamos: quando divulgada a primeira taxa de mortalidade o universo de análise foi o seguinte: tinha 100 pessoas que haviam sido contagiadas no México. Dessas, 6 foram morar no céu. Pronto. Bastou para a imprensa imediatista espalhar no mundo inteiro que a taxa de mortandade era de de 6%.

Ah! Tenham dó! Ninguém estudou estatística básica não? O que representam 100 pessoas num universo de "X" nas áreas de risco? Isso não ouvi ninguém falar, ninguém analisou.


Com tantas experiências já vividas pela humanidade com questões relacionadas à epidemias e pandemias, é hora de olharmos para uma ciência que se chama História, que não é, como pensam muitos, apenas uma sucessão de datas a serem decoradas, e aprender com ela. Ver nossos erros e acertos e tomar ações sérias, sem sensacionalismo, sem pânico baseado em análises insustentáveis e principalmente, focar apenas em fontes de dados oficiais e na imprensa limpa, aquela que presta serviço digno de reconhecimento, aquela que aplica remédios para a prevenção.

Pois agora, em 2015, século 21, com toda a tecnologia que temos, eis que uma nova epidemia está nos ameaçando novamente. Só que agora é diferente. A informação flui com a rapidez de um clique em um teclado, cientistas do mundo todo compartilham informações confiáveis instantaneamente. E também informações erradas são compartilhadas.

 Um mesmo mosquito (o mesmo da febre amarela que Oswlado Cruz tentou erradicar) ganhou eficácia: o aedes aegypti,  é vetor de doenças como a dengue, chikungunya e a terrível zika vírus. 

Especificamente o zika parece ser a mais terrível delas, (principalmente porque até agora é parcialmente desconhecida em vários aspectos), mas o mais terrível são as notícias sem fundamento que se propagam: que a doença veio disso ou daquilo, que causa isso ou aquilo e que ela até não existe nas proporções indicadas, e está servindo para desviar a atenção do povo da corrupção [SIC!].

Até que tudo seja estudado, analisado, testado, debatido, divulgado, em vez de espalhar informações erradas, cabe a todos fazer uma importante tarefa: acabar com o vetor do aedes aegypti, eliminando todos os focos de água parada (até uma tampinha de refri). 

Você está fazendo sua parte eliminando criadouros, participando de mutirões, executando ações educativas sérias ou está nas redes sociais espalhando bobagens?

Está tomando vacinas (adultos também tomam!), vacinando os filhos? 


.....oooooOooooo.....


Não é uma novidade que o governo proíba (ou modifique) dados referentes à epidemias e pandemias, assim como não é novidade que muitos negacionistas (inclusive do próprio governo) insistam em dizer que "não é grave" e que a "imprensa causa pânico". Isso aconteceu durante as epidemias de Febre Amarela, da Gripe Espanhola, da Meningite.

Abaixo segue uma cópia de um documento de 1972, no qual o governo ordenava a censura a emissoras, proibindo dados sobre o surto de meningite:
.
Não dá para mensurar quantas pessoas foram vítimas dessa censura, a qual atrasou que autoridades tomassem medidas coletivas e que individualmente as pessoas se protegessem do contágio.

"A História se repete como farsa ou como trágédia".


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais visitadas na última semana