PRÓLOGO
João de Almeida Prado Júnior - mais
conhecido como João Tibiriçá Piratininga "Pai". (*1802 - †1851)
comprou a Fazenda Taipas em 1851 do alferes Lourenço Xavier de
Almeida Prado.
A família Almeida Prado chegou ao Brasil na
segunda expedição do capitão-mor Martin Afonso de Souza, que foi o primeiro
donatário da Capitania Hereditária de São Vicente, mas
acabaram por fazer uso de dois sobrenomes tipicamente indígenas, ambos em
alusão ao Cacique Tibiriçá, considerado líder indígena
do Planalto de Piratininga
Em 1857 o
filho dele, o indaiatubano João Tibiriçá Piratininga ‘O Moço’ (*1829 -
†1888) herdou a fazenda onde, após passar seis anos na Europa estudando
disciplinas diversas relacionadas às Ciências Físicas e Naturais aplicadas à
agricultura – principalmente à açucareira, que gerava riqueza para sua família
– instalou um imponente engenho a vapor importado da França, que levou dois
anos - com o emprego de boi, alavancas e força escrava) para chegar de Santos
até Itaici. Comprou a Fazenda Tranqueiras do seu irmão José, expandindo mais
ainda o local, que passou a ser conhecido como “Engenho de Itaici”, que tinha uma
lavoura com sistema de afolhamento onde havia cana, algodão e feijão.
A casa
grande ou sede da Fazenda Taipas, também chamada de Engenho de
Itaici, após a chegada desse atualmente recebe o nome de Vila Manresa, é um local de eventos dentro do
Mosteiro de Itaici.
O texto
abaixo conta um pouco do cotidiano do período que João Tibiriçá Piratininga
"o Moço" morou na fazenda, época em que esse indaiatubano foi um notável
personagem da História do Brasil, pois presidiu a Convenção de Itu, fato que iria influenciar - e
muito - a Proclamação da República do Brasil.
A
partir daqui, este post transcreve fragmentos do livro "Jorge Tibiriçá e
sua época", publicado em 1958 pela Companhia Editora Nacional com o
objetivo de divulgar uma parte da História de Indaiatuba pouco conhecida; a da
região de Itaici e todo seu entorno.
ASPECTOS DO COTIDIANO NA FAZENDA ITAICI
ARQUITETURA DA CASA GRANDE
A casa de residência de João Tibiriçá na Fazenda Itaici
filiava-se ao tipo das velhas moradias senhoriais do nosso primeiro período
agrícola, anterior ao grande surto cafeeiro. Os olhos de um europeu
naturalmente nada poderiam descobrir em tais mansões que sugerisse o esplendor
dos palácios e dos castelos do velho mundo. Nem mesmo dos solares fidalgos de Portugal,
nos quais se refletiam adaptações dos estilos construtivos francês e italiano,
com muitos ornatos externos e valiosas e ricas decorações interiores. Das
vivendas caracteristicamente portuguesas as casas de fazenda guardavam apenas a
simplicidade das linhas, reduzidas a um arcabouço maciço, em feitio de
quadrilátero; fachadas nuas, rasgadas de amplas janelas com rótulas e
guarnecidas, por única saliência, de um beiral ultrapassando o plano dos muros
totalmente vazios de enfeites e floreios.
Nada ressaltava como índice de preocupação artística, mas
emanava do conjunto uma certa imponência, talvez decorrente dessa própria
sobriedade de formas e linhas, comparável ao volume austero de um convento.
Isenta de atrativos ornamentais, a Casa Grande de Itaici, como tantas de suas
congêneres, infundia somente a impressão estética derivada dos efeitos da luz
solar sobre a grande massa caiada de branco, destacando-se majestosa das
construções menores espalhadas em redor e que abrangiam diversas dependências
ligadas à parte produtiva, como as casas de máquinas, as senzalas, as
habitações de administradores, etc.
A fachada reconhecível pela grande porta de entrada virava-se
para o nascente. E uma escadaria lateral, aplicada contra a face norte, dava
acesso ao pavimento superior, por intermédio de uma varanda onde habitualmente
se esticavam redes e se alinhavam cadeiras. Era um posto privilegiado para a
sesta e a observação de trechos da fazenda próximos da estrada. Tais
melhoramentos haviam sido introduzidos aos poucos, de acordo com reformas
destinadas a trazer mais conforto ao vetusto prédio de taipa, primitivamente
erguido pelos escravos e ao qual se ajuntaram, com o correr dos anos,
benfeitorias sucessivas de ordem prática. O embelezamento era requisito
secundário, não que faltassem artífices habilitados entre os ituanos, mas tais
artesãos eram contratados exclusivamente para obras de caráter religioso. Nas
grandes casas das fazendas e dos engenhos, o luxo era atributo supérfluo. A
família contava, isto sim, com cômodos espaçosos, mobiliados ao gosto da época,
consoante as necessidades inerentes à vida do interior, onde o gôzo e as
ostentações da existência dispensavam refinamentos de pura essência artística.
Nas fazendas de Itaici e Tranqueiras, a primeira das quais media mais de 1. 5OO
alqueires, o pai de João Tibiriçá havia iniciado, no primeiro quartel do século
XIX a cultura da cana e respectiva moagem, atividade em franco progresso até as
alturas de 1850, bem entendido, ao lado do corolário usual de cereais, criação
de gado e porcos. De quando em quando se explorava o algodão, sob o estímulo de
uma alta de preços consequente à procura dos compradores britânicos.
(...)
O LABORATÓRIO DE NHO TIBIRIÇÁ
Mandara ele instalar num dos barracões pegados ao engenho um
laboratório completo, aparelhado com todos os petrechos e instrumentos
necessários para análises químicas e provas físicas. Alinhavam-se sobre as
prateleiras vidros de formatos diversos, garrafões bojudos, balões de ensaio,
provetas, uma série de frascos contendo pós coloridos e líquidos. Sobre uma
grande mesa enfileiravam-se outros aparelhos que os criados autorizados a
entrar na sala estranhavam muito e achavam misteriosos: termômetros,
sacarímetros, polarímetros, microscópios, ao lado de livros e cadernos cobertos
de cifras e apontamentos. Correu até em
Itu o boato de que Nhô Tibiriçá se fechava num quarto para fazer cozimentos de
ervas e fervuras de terras, coisa que se ligava naturalmente a práticas muito
suspeitas, tanto mais que era muito comentado o ateísmo de um homem que
renegara sua religião e voltara das Europas contagiado por ideias contrárias
aos padres e à igreja. Esse laboratório de João Tibiriçá, conforme sussurravam
certas comadres e devotas muito faladeiras de Itu, era algo de condenável e de
profano que certamente tinha parte com o diabo ... É somente de lamentar que um
cidadão tão inteligente e culto nos tivesse legado apenas o fruto de pesquisas
de amador, pois com mais acurada e sistematizada preparação, talvez houvesse
deixado um nome de maior projeção nos anais da ciência brasileira.
A INSTALAÇÃO DE UM ENGENHO IMPORTADO EM ITAICI
João Tibiriçá, à testa de seu feudo agroindustrial, encetou então a reforma que, durante muitos anos, lhe garantiria altos proventos e a possibilidade de manter um padrão de vida em consonância com as despesas a que se habituara graças à herança paterna. Até há pouco percebera fartos rendimentos no correr de viagens e estadas de luxo na Europa.
(...)
Necessário era largar de vez os aparelhamentos obsoletos dos
antigos engenhos e instalar uma usina
planejada para atender, quantitativa e qualitativamente, às exigências de
um novo ciclo de produção e assim, João Tibiriçá passava da economia colonial para a capitalista e se abalançava, mediante
importante inversão de fundos, a montar uma empresa comparável às mais adiantadas
do norte da França e da Bélgica.
Estudadas devidamente as plantas e projetos que comportavam
novas edificações para abrigar os maquinismos adquiridos na França, deu-se
início à execução da reforma, sob a supervisão do engenheiro especialmente contratado
para esse fim. Foram dois ou três meses de intensa atividade construtiva,
tarefas que se achavam entregues a mestres-de-obras, pedreiros e carpinteiros
vindos de Itu, nativos ou mineiros, cuja fama era de serem operários diligentes
e destros.
Como de norma, os trabalhos foram bem coadjuvados pela
mão-de-obra servil da própria fazenda e pelos escravos e artífices alugados de
agricultores vizinhos, pessoal de certa prática e habituado a lidar nas olarias
e serrarias existentes em algumas grandes propriedades. Portanto, tijolos de
fabricação local e madeiras das matas próximas, nomeadamente toros de imbuia, cabreúva
e peroba, forneceram material relativamente barato, dadas as possibilidades de
manuseio e transporte.
Os barracões e abrigos
destinados às máquinas foram pavimentados de grandes lajes destinadas a
suportar o peso dos apetrechos de férreo fundido ou cobre, principalmente a
máquina a vapor, que se apresentava como peça volumosíssima.
Dias a fio, um largo trecho situado nas cercanias da Casa Grande
foi ocupado por dezenas de obreiros em febricitante labor, martelando peças,
abrindo valetas, escavando o solo para firmar fundações, assentando tijolos e
preparando as grandes massas de reboco. Zuniam as serras ao cortar os troncos e
tábuas, e os ruídos das pancadas se ajuntavam ao ranger dos carros de bois em
constante descarga.
Itaici e Tranqueiras foram sede, nesses dias, de um movimento
e bulício de oficina, até que se concluiu a estrutura dos edifícios e se deu
por acabada a montagem, definitivamente aprovada pelo técnico francês, muito
satisfeito com a presteza e o andamento dos trabalhos. Finda a montagem,
realizaram-se as primeiras experiências, que vieram perfeitamente corroborar as
esperanças depositadas na eficiência e rendimento das máquinas modernas.
A postos todos os serventes, debaixo da supervisão do
engenheiro francês, foram introduzidos nas moendas agora movidas a vapor
copiosas braçadas de cana. Reboavam pela vasta sala os ruídos provenientes dos
cilindros e das transmissões e o resfolegar do grande motor, que era a alma de todas
essas rotações e combinações mecânicas, obedientes a um comando único. Os
trabalhadores acostumados ao rodar lento do velho engenho e ao ranger das
grossas peças de madeira olhavam com surpresa e quase espanto a velocidade com
que se efetivavam operações, outrora dependentes do braço humano.
Agora, enquanto o pistão do motor ritmava os seus golpes à
guisa de flexões de um braço de ferro, as canas esmagadas e tragadas pelas
fauces dos cilindros convertiam-se instantaneamente em garapa que logo escorria
para um grande reservatório metálico.
Dali era levada em canos para uma série de caldeiras, em que
se formava o caldo, purificado com leite de cal para ser depois escumado e
passar pelas caldeiras, chamadas de evaporação.
Estas se compunham de uma bateria de bacias hemisféricas, em que o xarope se elaborava por cozimento até alcançar o ponto necessário de limpidez e coloração. Como termo dessas operações, o líquido se assentava em amplos cochos para esfriar e cristalizar, formando espessas chapas de açúcar.
ENGENHO É INAUGURADO COM FESTA
Bem sucedido o funcionamento inaugural, a que assistiam muitas pessoas gradas
de Itu e municípios vizinhos, festejou-se o acontecimento com champanha
francês, não faltando ao ato os brindes e discursos para salientar o amor ao
progresso e a São Paulo demonstrado pelo benemérito cidadão.
Muitos agricultores e autoridades ituanas consagravam desta
forma um tributo de admiração ao conterrâneo, de vontade firme e esclarecida,
que acabava de elevar o nome da província e incentivar a indústria açucareira
ameaçada de decadência, e para cujo reerguimento tanto concorria com a empresa
que ora iniciava a produção. E, certamente, em vista dos engenhos então
existentes na província, não restava dúvida que o de João Tibiriçá representava
um empreendimento de vulto. No amplo recinto em que tinha sido instalado o
equipamento, dividido em seções bem delimitadas, sobressaíam as principais
unidades do maquinismo.
As pujantes moendas, o alinhamento das caldeiras sobre as armações,
o aspecto geral do edifício, davam ideia de um vasto estabelecimento fabril e
bem justificavam os cálculos relativos aos rendimentos esperados.
A Fazenda Itaici, emoldurada de árvores magníficas e
flanqueada por espessa capoeira, ocupava de fato situação privilegiada, pois
assenta sobre uma esplanada sobranceira ao rio Jundiaí e a uma vasta zona,
relativamente pouco acidentada e que se estende entre Indaiatuba e Itu. O
local, extremamente pitoresco, desenrola ante o observador uma paisagem
soberba, que incute a mais aprazível das sensações.
Por esse tempo alternavam-se na região as culturas de cana;
café, fumo, arroz, cereais diversos, que marcavam aquele trecho de São Paulo
como um dos mais ricos e promissores. Na fazenda decorriam os dias entre os
labores agroindustriais e os recreios que a existência do interior podia
comportar numa época de comunicações dificílimas, tanto para as viagens e
transportes como para a correspondência.
COATI - O MULATO QUE VALIA "COMO UM ENGENHEIRO"
Concluída a montagem das usinas açucareiras de Itaici e
Tranqueiras voltara para a França o técnico incumbido de ajustar os novos
processos de fabricação. Mas curiosamente se encontrou competente substituto
para fazer as vezes de engenheiro e superintender os serviços. Tratava-se de um
mulato, filho de escrava alforriada e que João Tibiriçá distinguia particularmente
entre os demais empregados.
Esse personagem, em virtude de ser dotado de um nariz algo
cirartesco, embora não descomedido ou defeituoso, fora cognominado o Coati,
como alusão ao roedor de focinho cumprido. Ativo e lépido, sempre pronto para todas
as tarefas e chamado para deslindar muitos casos, quer na esfera do pessoal,
quer na parte mecânica do engenho, gozava de toda a confiança do senhor e em
muitas questões emitia parecer judicioso e digno de acatamento.
O pequeno Jorge, filho de João Tibiriçá, via Coati em
frequentes conversas com o pai, na atitude de quem discutia matérias de seu
perfeito conhecimento. Examinava as canas que chegavam na usina, intervinha
constantemente junto dos serventes das máquinas e das caldeiras. Na hora de um
reparo urgente Coati saltava com agilidade sobre a plataforma montada junto aos
rolos das moendas e, debruçado sobre as engrenagens, apertava um parafuso,
lubrificava uma peça ou providenciava para uma regulagem urgente.
Com a mesma presteza assinalava qualquer embaraço
inopinadamente surgido no preparo do xarope ou no ponto de cristalização do
açúcar. Obreiro para todas as ocasiões e de extraordinária perícia e intuição
mecânica, enfronhara-se com tal habilidade nos múltiplos e complexos detalhes
do aparelhamento do engenho que ganhara merecidamente um cargo de verdadeiro
diretor técnico, de acordo, aliás, com a indicação do especialista francês que
dizia do inteligente mulato: "este homem vale por um engenheiro".
BIBLIOTECA
Fora das horas consagradas às plantações e à usina, João
Tibiriçá se interessava sobremaneira pelos adiantamentos da ciência, pelos
grandes eventos internacionais e a marcha da vida política brasileira. Uma vez
por semana chegava o correio da Capital, trazendo as cartas e jornais da
província, da Corte e da Europa.
Forneciam assunto para discutir à noite, na sala que lhe
servia de biblioteca e de escritório, local de repouso e meditações, onde sê
entregava, ora à leitura, ora aos apontamentos sobre os trabalhos que pretendia
escrever acerca das condições climatéricas de São Paulo e de várias questões
relativas às culturas agrícolas. Nas estantes coalhadas de livros um curioso
poderia encontrar obras de ciência, notadamente matemática, física e química e
os mais conhecidos tratados de matérias concernentes à agricultura e à indústria
do açúcar. Ao lado desses volumes, muitas obras de astronomia, geologia,
história natural, geografia, bem como os livros que até os meados do século XIX
eram considerados mais expressivos do pensamento científico ou social. Naquela
bibliografia se projetavam as tendências de um espírito voltado para o
materialismo e crente na primazia da técnica sobre o futuro e progresso da
civilização. Cuvier, Saint-Hilaire, Gay-Lussac e Augusto Comte eram autores
familiares a um homem que acompanhava a evolução intelectual do século e
acreditava nos próximos efeitos da grande revolução industrial sobre as condições
socioeconômicas do Brasil.
Filho de uma terra de conhecida religiosidade, João Tibiriçá,
que recebera ensinamentos católicos, proclamava-se francamente ateu e materialista.
Via o mundo regido totalmente pelas leis que governam a substância e se
traduzem em fenômenos físicos palpáveis e mensuráveis.
Rejeitava, porém, de forma terminante, todas as crenças
baseadas na aceitação de um princípio divino e todas as doutrinas místicas ou
relacionadas com poderes sobrenaturais.
Esse materialismo, firmado numa intransigente convicção
filosófica, projetava-se nos seus raciocínios de caráter científico ou
especulativo, mas não revestia as feições de uma hostilidade declarada e
agressiva à religião e aos seus adeptos, tão numerosos no meio brasileiro. O
seu materialismo dispensava violências desnecessárias e quaisquer tendências de
fanatismo antirreligioso. Estava contrabalançado pelo respeito às crenças
alheias, desde que não tentassem forçar esse baluarte de ideias, segundo as
quais ele acreditava no aperfeiçoamento da civilização pelo progresso da
ciência, totalmente estranho às influências da religião e à interferência das
igrejas e do clero.
Dos estudos e comentários de João Tibiriçá acerca do clima de
São Paulo e dos seus efeitos sobre as nossas condições agrícolas daremos
algumas amostras. Embora escritos ou dados a lume muito mais tarde, foram
naturalmente o produto de observações prolongadas e de muitos anos de atentas
reflexões.
O FILHO JORGE TIBIRIÇÁ
Em companhia dos pais ou de serviçais de confiança, o menino Jorge percorria quase que diariamente as principais dependências do engenho. Apreciava os canaviais intérminos, amplos tapetes de tonalidade verde-claro que, de longe, se afiguravam trigais a ondular suavemente ao sopro da brisa. Seu pai acariciava com os olhos a vasta plantação e não se cansava de levar-lhe a beleza. Comparava os extensos campos bem lavrados a uma joia de fina lapidação. Os matizes da cana conforme as estações, o odor que se evolava das planícies, serviam de pretexto para exclamações de verdadeira volúpia estética.
OS PASSEIOS EM SALTO DE ITU
(...) A família costumava fazer demorados passeios que davam ensejo a conhecer muitos recantos pitorescos. A pé ou a cavalo seguiam as trilhas e picadas abertas nas matas e capoeiras. Era a ocasião para Jorge se entregar à colheita de frutas silvestres e folgar prazerosamente junto das pequenas cascatas ou à beira dos córregos que recortavam a fazenda. Um dos passeios mais férteis em surpresas e seriações era a visita periódica ao Salto de Itu. A maravilhosa cachoeira, quando no auge da força, constituía espetáculo fascinante, ante o qual todos se detinham, subjugados pelos efeitos da imponente massa de água precipitada entre os paredões de granito.
Através de grossos blocos de rocha, sobrepostos em feitio de
muralhas, a corrente do Tietê irrompia com impetuosidade, arremessava-se contra
os patamares formados pelos penhascos e rolava em turbilhões cujos rugidos se
ouviam a enorme distância.
Era sempre novidade
fitar longamente aqueles férvidos cachões. O abismo das águas em fúria atraía
irresistivelmente pela beleza empolgante da eterna luta entre as ondas e a
pedra, batalha que o sol sublimava pela irisação dos vapores e o jogo de luzes
refrangidas pelo cristal da torrente e a neve das espumas. A esses painéis da
natureza física se associavam, no lastro das recordações a infância, os da
experiência humana.
AS FESTAS RELIGIOSAS
Pela mãe praticante do catolicismo Jorge era iniciado nas doutrinas cristãs e, de tempos em tempos, ia assistir às festividades religiosas em Itu, cidade onde se cultuavam com pompa as grandes datas da Igreja. Na terra de sacerdotes de grande virtude e ilustração, como Miguel Correia Pacheco e de apóstolos caritativos e humanitários, como Antônio Pacheco e Silva, a Semana Santa, principalmente, era celebrada com vistosas consagrações. Saía então a cidade da sonolência habitual à vida do interior e se animava extraordinariamente devido ao afluxo de famílias que acudiam de todos os pontos do município e até de rincões vizinhos ou mais longínquos. As noites de Santo Antônio e, sobretudo, São João, com seus foguetórios e regozijos, herdados de Portugal, festejavam-se na fazenda com todo o rito e colorido e davam margem a uma das demonstrações mais democráticas do nosso ambiente agrário. Divertiam-se até altas horas senhores, camaradas e escravos, com fogueiras, danças e batuques africanos. Tela pitoresca e vivaz que muitos brasileiros daquela geração catalogavam entre as mais agradáveis lembranças e que inspirou a Martins Fontes no seu trabalho sobre a "Dança" uma página de extraordinário enlêvo e poder evocativo.
Quando partir para a Europa, Jorge Tibiriçá levará as impressões típicas e profundamente brasileiras desse ambiente. Rememorará no estrangeiro a doce visão de Itaici, casa de família tantas vezes contemplada, ora alvejante sob as reverberações solares, ora esfumada pelas brumas nos dias invernosos. Casa em cujos salões mobiliados de velhos e pesados moveis portugueses, brincara ao lado da mãe. Não esquecerá nunca a figura da bondosa progenitora, perpassando entre aqueles aposentos, arrumando as estantes, florindo os vasos ou sentada ao piano para tocar valsas e gavotas ou cantar algumas doces canções da França.
Da sala de jantar, diariamente
frequentada por hóspedes da família ou pessoas de passagem que vinham a
negócios, recordará a grande mesa central cercada de cadeiras de espaldar
esculpido. Mesa que ficava isolada como uma ilha no meio de um lago. Da
cozinha, nos fundos, as servas traziam as bandejas repletas de pratos que se
depositavam fumegantes sobre a toalha, exalando os aromas dos temperos e dos
quitutes caprichados. A noite os amplos dormitórios, de altos forros, em que se
destacava o madeirame pesado dos soalhos e das portas, o volume das vigas, as
paredes de uma espessura de fortaleza, onde se haviam socado muitas toneladas
de terra. Sequência de quadros em que se urdiram as sensações primárias da vida
e se associaram as percepções que vão constituir o substrato psicológico do
adulto.
Não é possível deixar de lado as recordações ligadas ao
paladar, o sabor tão peculiar de certos pratos e guloseimas bem brasileiros, a
doçura de frutas silvestres em cujo sumo se transubstanciam as carícias
solares. Essas sensações gustativas poetizam a existência na infância.
Contribuem para dar uma noção sensível da pátria, e longe de serem vulgares,
interferem com imagens e emoções de alto sentido espiritual.
O CIRCO, O PALHAÇO E NADA MAIS DO QUE UM ESCRAVOCRATA
Um episódio que teve por essa época bastante repercussão, até fora dos limites do município, nasceu de simples brincadeira e depois tomou um rumo de violência e por pouco não findou em tragédia.
Muito tempo o caso foi comentado, censurado ou aplaudido, conforme as rodas em que vinha à baila.
Um primo de João Tibiriçá, que chamavam Nhô Bento, rapaz alegre e dado de quando em quando a libações inofensivas, aproveitou-se da passagem de um circo ambulante em Itu para entrar no recinto, por baixo do pano.
Moço rico, conhecido na cidade, bem sabiam todos que tal gesto, de pura galhofa, não implicava no intento de se furtar ao pagamento da entrada. Mas no picadeiro, um palhaço serviu-se do sucesso para inspiração de pilhérias e maior gáudio dos espectadores. Foi um número extra no programa, já que o truão, pegando na viola, pôs-se a improvisar versos chistoso? que despertaram as gargalhadas do público.
Nhô Bento, ridicularizado e apupado pelas chufas dos espectadores, saiu do circo meio aturdido e um tanto humilhado.
No dia seguinte corria mundo que ele fora desfeiteado e objeto de motejos insultuosos que recaíam sobre uma família de poderosas ramificações locais e onde não era de uso aturar desaforos de qualquer espécie sem revide.
Quando a ocorrência chegou aos ouvidos de João Tibiriçá, acordaram de chôfre e impetuosamente todas as fibras do orgulho familiar. Enrubescido de cólera, sentiu ferver no sangue os impulsos da velha gente paulista, para quem o menor agravo a um membro da família atingia a coletividade inteira e reclamava pronto desforço da parte dos ofendidos, à guisa das antigas vendetas bandeirantes.
Furioso, João Tibiriçá decidiu corrigir o atrevido palhaço e fazer-lhe engolir as chacotas que soltara inconsideradamente sobre o primo. Para a represália preparou-se verdadeira expedição punitiva. Dois dias depois, seguido de numerosos serviçais da fazenda e de um bando de escravos munidos de foices, chibatas, azorragues e até armas de fogo, o senhor paulista mandava cercar o circo e agarrar o autor das trovas humorísticas.
Apanhado o infeliz palhaço, diante do pessoal do circo assustado e atônito pelo imprevisto da agressão, foi ele violentamente açoitado e quase linchado.
Após a façanha, o circo em bloco, com todo o seu elenco de atores, acrobatas e funâmbulos, viu-se coagido a levantar acampamento e fugir às pressas da zona, agora debaixo das vaias e assobios do mesmo povoléu que na véspera rira das graças do palhaço.
Bem entendido, a autoridade não interveio e até fez vistas grossas, pois o gesto de desafronta merecera a aprovação de muitos ituanos.
Esse procedimento mostrou uma outra faceta do temperamento de
João Tibiriçá, aquela que revelava, no seio da família como de outros troncos
paulistas, traços de violência e impulsividade e, consoante eles próprios
apregoavam, uma certa "falta de respeito humano". Não podemos omitir
o fundo melancólico desse panorama, já que diz respeito ao instituto da
escravidão. Os fundamentos desse odioso legado serão demoradamente discutidos
em 1871, por ocasião da proposta ·de libertação dos nascituros apresentada pelo
ministério Rio Branco. Mas até essa data, a propaganda abolicionista era mais
considerada manifestação de demagogia do que expressão de idealismo
humanitário, e os que a ela se entregavam eram olhados como uma espécie de
comunistas, visto que atentavam contra o direito de propriedade sancionado pela
igreja e aventavam uma reforma positivamente arruinadora para a agricultura
nacional.
João Tibiriçá, não obstante a sua compreensão do aspecto
social do caso, pendia, entretanto, para a manutenção da escravatura até que fosse
possível extingui-la gradualmente, sem abalos profundos na estrutura agrária e
na economia do país. Por isso, à falta de outros braços, utilizava duas ou três centenas de escravos nas suas fazendas.
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Nossa Indaiatuba, antes parte da cidade de Itu, e local onde João Tibiriçá nascera, perpetua sua memória com a criação da comenda “Medalha João Tibiriçá Piratininga” com a qual privilegia os seus filhos ilustres.
Itu, por seu lado, perpetua sua memória mantendo no Museu Republicano de Itu um rico acervo sobre Tibiriçá
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