Eliana Belo Silva
[...] mesmo numa cidade perdida nos
confins da história ou da geografia há
pelo menos uma calçada ou praça que
é de todos e não é de ninguém. (Raquel
Rolnik, 2004, p.20)
SOBRE A FUNCIONALIDADE DAS CALÇADAS
Neuza Zattar, em seu texto “Calçadas: espaços públicos ou privados?” propõe um estudo sobre a natureza das calçadas, demonstrando, em um discurso jurídico, após o estudo das leis na cidade de Cáceres, no Mato Grosso, que as calçadas são apropriadas pelos cidadãos que, amparados pelas leis, fazem seu uso privado, em fenômeno que ela define como invasionismo. A definição advém de inúmeros casos nos quais vê-se que as calçadas deixaram de ser um passeio público e passaram a servir aos interesses privados a tal ponto de interditar o acesso aos pedestres.
O invasionismo citado pela autora foi, durante muitos anos, denunciado pelo Padre Xico no jornal indaiatubano Tribuna de Indaiá, quando ele era articulista semanal e insistentemente reivindicava providências sobre a ocupação dos passeios públicos por mesas e cadeiras de bares e restaurantes. A autora citada define o conceito como a presença de equipamentos "permitidos ou legais (postes de iluminação e de trânsito; telefone público [orelhão], hidrômetros), entre outros; e equipamentos não
permitidos ou ilegais (os mobiliários comerciais, jardins, entulhos, plantação, publicidade, comércio ambulante), e outras funções imputadas às
calçadas, que estabelecem limites ou interdição à passagem do pedestre".
Há, pois, uma tensão entre os que disputam
os espaços para passeio e fins particulares e/ou comerciais e considerando a multiplicidade dessas funções, a autora ainda afirma que "a referência do invasionismo não é fixa, não
é estável, e muda conforme a relação que o pedestre estabelece com a
interdição material e simbólica que se interpõe em seu caminho".
Considerando esta "instabilidade", o Arquiteto e Urbanista Charles Fernandes, reconhecido por ser um estudioso do espaço indaiatubano e sua ocupação, pontua que "os passeios públicos, são o limite em degradê do público e do privado na cidade. Fazem parte, e são propriedade do sistema viário público, mas sua manutenção e construção são responsabilidade do proprietário do lote. Acomoda mobiliário urbano público, mas também é usado como acesso dos lotes, recebe lixeiras, rampas para garagens, pode ser utilizada em estabelecimentos como área de atendimento."
Zattar também ainda cita Aldaísa Sposati, que defende que
"a calçada é o espaço que interliga vizinhos,
amigos e conflitantes, em usos e ocupações. Daí dizer que a calçada não
é compreendida somente como espaço físico, geográfico ou ambiental,
mas como espaço simbólico que significa pela sua história, pela conviviabilidade e conflitos entre vizinhos, passantes e ocupantes e pela
demarcação de um território que é público pela localização na espacialidade da cidade, e privado pela re-funcionalidade que lhe é atribuída."
SOBRE UM POUCO DE HISTÓRIA
A história das calçadas em Indaiatuba foi objeto de registro, pela primeira vez, em texto escrito pelo memorialista Antônio Zoppi, que era construtor e privilegiou os métodos construtivos em sua análise, conforme texto escrito e publicado 1960:
“Há mais de cinquenta anos [portanto,
início do século XX], as calçadas de Indaiatuba eram feitas com lajes
vindas de Itu [varvito]. Tais pedras variavam no tamanho e, após a
cintadas as juntas entre elas, eram enchidas com cimento. Havia pessoas que
entregavam essas lajes na soleira de suas residências. Acontece que este tipo
de pedra é de fácil desgaste; então, não foram mais aproveitadas para a soleiras,
nem para a calçadas. Estas começaram a ser feitas de tijolos cimentados,
roletados e riscados, imitando lajes.
Devido ao calor abrasador do sol
de verão, as calçadas cimentadas dilataram-se e naturalmente abriram-se fendas,
ficando fácil para as águas pluviais penetrarem.
No ano de 1924, quando meu pai [o
construtor Césare Zoppi] construiu o prédio para a Empresa de Força e Luz
de Jundiaí, o engenheiro quis que a calçada defronte ao prédio fosse feita com
ladrilhos de cimento de doze quadros e assentados com argamassa mista. O mesmo
ocorreu no ano de 1945, quando eu construí o Cine Teatro Rex. Como eu tinha
visto em Rio Claro ladrilhos de cimento de nove quadros, coloquei defronte do
cinema o mesmo tipo de ladrilho. Mas é necessário compreender que estes
ladrilhos foram adquiridos em Campinas. Mais tarde, ao asfaltarem as ruas da
cidade, foram colocadas guias de granito com nível diferente do já existente. Quer
dizer: as calçadas ficaram estragadas.
A Câmara Municipal aprovou uma
lei que regulamentava a construção de calçadas para serem feitas com ladrilhos
de cimento de nove quadros e cujo serviço era feito pelos construtores e
fabricantes de ladrilhos da cidade. Mas a ignorância e a falta de competência
dos fabricantes de ladrilhos implicaram na confecção dos ladrilhos, os quais
eram feitos não se observando um processo especial, e sim tais ladrilhos eram
feitos comumente. Ora, o efeito se fez surgir quando, com o calor solar, os
ladrilhos soltavam-se da argamassa. Talvez os fabricantes não soubessem que
existe a dilatação dos corpos com o calor; podemos admitir isto, então, a culpa
cabe somente a eles porque os ladrilhos feitos em Campinas também sofriam a
dilatação, é lógico, mas não se destacavam da argamassa. O exemplo marcante
dessa afirmativa são as calçadas feitas defronte à Empresa de Luz e Força e do Cine
Rex que, para serem demolidas, foram necessárias picaretas o que não alcança
não acontecia com as calçadas feitas de ladrilhos de Indaiatuba: estes com
simples tropeção, já saíam.
O mais bonito é que a Prefeitura,
em vez de mandar um técnico no assunto examinar a causa de tudo, isso obrigar
os fabricantes a manufaturarem os ladrilhos com a mesma técnica de Campinas, e
continuar as calçadas com o mesmo tipo de ladrilho, achou que aqueles ladrilhos
não serviam para a calçada e ideou fazer com pedrinhas de basalto o que se
chama de mosaico português. Eu creio que “portugueses” no outro sentido da
palavra, foram esses que acharam de modificar o tipo da calçada. Será que não
tinham um pouco de massa cinzenta, para ver que se faria uma mistura de tipos e
tirar-se-ia a estética? Bem já que veio “de cima” tinha que ser feito; mas quem
de Indaiatuba poderia fazer essa calçada?
Não havia ninguém aqui que
soubesse executar aquele mosaico e o remédio foi trazer gente de outras
localidades. Com tanto serviço para fazer, começou a concorrência entre muitos
daqueles que vieram para Indaiatuba unicamente para assentar essas pedrinhas.
Mas nem todos que vieram eram honestos e a concorrência de preços incidiu sobre
o trabalho. Usou-se a má fé, e os serviços executados deixavam muito a desejar...
Isto não é nada se considerarmos
que quando requeremos uma ligação de água domiciliar, a caixinha de ferro onde
será colocado o registro e que deve ser assentada na calçada, nós pagamos, mas
a falta de fiscalização e coisas mais, faz com que muitas calçadas fossem
feitas e, a caixinha de ferro, nem por sonho...
Uma boa iniciativa do atual
prefeito [Alberto Brizola] foi facilitar, a todos os proprietários, para que eles
fizessem calçadas; para isso ordenou que se fizesse um orçamento por metro
quadrado de um tipo de calçada de concreto, como se faz em São Paulo; este tipo
é muito mais barato que as pedrinhas portuguesas. Bom até aqui; porém não ficou
nessa: eis que apareceram os “empreiteiros” entre aspas, porque de empreitada
não entendem nada - e se puseram a fazer calçada de tijolos cimentados; mas não
de tijolos cimentados, roletados e riscados como antigamente; mas sim de
tijolos cimentado imitando os ladrilhos de nove quadros. Não podemos negar que
fica bonito. mas esperemos o correr do tempo...
Enfim, Indaiatuba merece o que
tem. Em tipos de calçada, é campeã. Se tudo isso for erro, errar é humano; mas
não tanto assim...”


Calçadas de Indaiatuba (1): As duas fotos acima (2025) respondem à pergunta proposta por Antônio Zoppi em 1960
SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS
A organização de um espaço híbrido entre o público e o privado deve ser escopo de ordenação para manter os cidadãos nos limites de seus deveres públicos. Embora pareça ambíguo, pois em nossa cidade ela seja conceitualmente um passeio público, a responsabilidade pela execução é do proprietário do lote, fazendo, com que muitas vezes, ela seja tratada como "propriedade privada", urge que requisitos legais e regulatórios disciplinem o uso, reduzindo as instabilidades.
Mesmo com leis que exigem a acessibilidade nas calçadas sendo editadas desde a década de 1980 nas esferas federal e estadual, Indaiatuba ainda não possui uma Lei Municipal consolidada específica para tal fim. Charles Fernandes pontua que há sim, alguns regramentos que devem ser considerados: a norma ABNT NBR 9050, por exemplo, que estabelece critérios e parâmetros técnicos a serem observados quanto ao projeto,
construção, instalação e adaptação do meio urbano e rural, e de edificações quanto às condições de
acessibilidade, que embora não resolva uma as demandas aplicáveis aos passeios públicos, pode ser complementada, em certa parte, com o Plano Diretor de Mobilidade Urbana de Indaiatuba, que sugere (mas não normatiza) diversas soluções para tornar os passeios universalmente acessíveis, enxergando o pedestre em posição equalitária aos outros modais de transporte. Fernandes ainda complementa que é necessário
"criar um dispositivo legal que entenda os passeios públicos de forma mais ampla, enxergando toda a sua relação com a cidade, as pessoas, a mobilidade, o meio ambiente e o desenvolvimento econômico e social."
Os vereadores da Câmara Municipal não possuem alçada para apresentar Projeto de Lei com esse escopo, sendo essa responsabilidade de cunho exclusivo do Prefeito. Mesmo assim, os vereadores locais já pautaram o assunto inúmeras vezes, apresentando a necessidade através de Indicações protocoladas e apresentadas no Plenário. De acordo com o que pode ser consultado no site da Câmara Municipal, todo o conjunto de trabalho dos vereadores neste sentido, está parado na Secretaria de Relações Institucionais e Comunicação, ou ainda: não é possível consultar se tramitou ou não a partir dali e quais foram as atitudes tomadas.
Confira abaixo as matérias dos vereadores apresentadas no ano passado (2024) sobre o tema:
Implantar um programa para a padronização das calçadas do município com base no princípio de acessibilidade universal.
Autoria: ALEXANDRE CARLOS PERES
Realizar fiscalização quanto aos padrões adotados nas calçadas do município.
Autoria: ANA MARIA DOS SANTOS
Realizar estudos técnicos e tomar providências quanto à acessibilidade das calçadas em nossa cidade, visando garantir o trânsito seguro e acessível para todos os pedestres, especialmente pessoas com deficiência (PCD) e mobilidade reduzida.
Autoria: ANA MARIA DOS SANTOS
Realizar estudo de viabilidade e aplicar as ações decorrentes para incluir a calçada no Projeto Arquitetônico de novas obras.
Intensificar a fiscalização para construção de rampas de acessibilidade nas calçadas de diversos bairros.
Autoria: SÉRGIO JOSÉ TEIXEIRA
Calçada de Indaiatuba (2): É para atravessar na faixa ou não?
Esta é uma cena comum quando o sistema viário tradicional das cidades se depara com novas necessidades, como por exemplo, cruzamentos em vias antigas que possuem curvaturas que proporcionam pouca visibilidade. A faixa de pedestres RECUOU, para que o veículo possa ter maior visibilidade sem invadir seu domínio. A faixa é elevada para proporcionar área acessível ao pedestre, sem degraus. No entanto, outra lei, obriga a esquina a ter rampas acessíveis, neste caso, levando o pedestre direto para via, fora da faixa. Em cidades que possuem projetos ARROJADOS para acessibilidade, é usado o piso dos passeio na faixa de pedestre, para que se perceba que a prioridade de uso daquela área é do pedestre. (Imagem e parecer de Charles Fernandes).