Mesmo livres, negros enfrentaram cotidiano que perpetuava
relações escravistas
No
século XIX, entre os anos 1830 e 1888, os escravos compravam o direito à
liberdade com o próprio trabalho, o que tornava precária a entrada de negros no
mundo dos homens livres, e fazia perdurar o domínio senhorial. Sem recursos
para pagar aos senhores a indenização exigida para a liberdade, os escravos
contraíam dívidas com terceiros, e os pagavam por intermédio de contratos de
locação de serviço. Estes contratos significavam, em muitos casos, um
prolongamento da exploração do trabalho, uma vez que os libertos ainda eram
submetidos a condições similares à escravidão.
A
historiadora Marília Ariza analisou contratos de locação de serviço
registrados, entre os anos de 1830 e 1888, no Primeiro Cartório de Notas de São
Paulo, e no Primeiro Tabelionato de Notas de Campinas — entre 1830 e 1888 — e
sua relação com a luta dos escravos em processo de alforria. A dissertação de
mestrado O
ofício da liberdade: contratos de locação de serviços e trabalhadores
libertandos em São Paulo e Campinas (1830 – 1888) mostra a
complexidade do período final da escravidão no Brasil, quando nem sempre ser um
homem livre significava ter acesso à liberdade.
Segundo
a historiadora, a possibilidade de compra de alforria pelos escravos existia
antes dos contratos de locação de serviços. No entanto, estes escravos
dependiam do acúmulo de pecúlio, economias conseguidas com trabalhos extras,
para juntar o valor exigido pelos senhores para a libertação. Embora o acúmulo
de pecúlio fosse uma prática recorrente, incorporada pelos escravos como um
direito, os senhores, frequentemente, não tinham interesse na redução do número
de seus escravos, e não autorizavam qualquer outro tipo de atividade que os
possibilitasse ganhar dinheiro e pagar por sua liberdade. Mesmo que pudessem
juntar economias de outras formas, o alto valor das alforrias também poderia
impedir a liberdade a curto prazo.
Como
alternativa a este cenário, muitos escravos recorriam ao pagamento de alforrias
por meio de seus próprios serviços. O sujeito contraía um empréstimo com
terceiros para comprar sua alforria. Uma vez que não tinha outros recursos para
arcar com o valor da dívida, fazia contratos de locação de serviço com seu
credor.
Os
serviços e as condições de trabalho, no entanto, mudavam muito pouco. Os
contratos os obrigavam a levar um cotidiano semelhante à antiga condição
escrava. Tanto a duração do contrato, que poderia ser de alguns anos, quanto as
atividades laborais, e até mesmo as penas para aqueles que descumprissem alguma
cláusula dos contratos, eram resultado de negociações entre libertandos e
credores. As condições dessa negociação, entretanto, poderiam ser muito
desiguais e desfavoráveis para os recém-libertos.
Trabalho barato
O principal objetivo dos contratos de locação de serviço era o agenciamento de trabalhadores livres a um baixo custo. Pessoas livres e pobres também locavam seus trabalhos. Contudo, no caso dos libertandos, o custo do trabalho contratado era ainda mais baixo. O desejo de abandonar a escravidão fazia com que estes trabalhadores acabassem concordando, ao menos formalmente, com condições de trabalho desvantajosas. Contrariados, muitas vezes eles contestavam estes contratos na justiça e se recusavam a cumpri-los, denunciando o domínio excessivo de seus credores.
O principal objetivo dos contratos de locação de serviço era o agenciamento de trabalhadores livres a um baixo custo. Pessoas livres e pobres também locavam seus trabalhos. Contudo, no caso dos libertandos, o custo do trabalho contratado era ainda mais baixo. O desejo de abandonar a escravidão fazia com que estes trabalhadores acabassem concordando, ao menos formalmente, com condições de trabalho desvantajosas. Contrariados, muitas vezes eles contestavam estes contratos na justiça e se recusavam a cumpri-los, denunciando o domínio excessivo de seus credores.
Contudo,
a intervenção do Estado sobre as relações trabalhistas era muito pequena até as
décadas finais do século 19. Os contratos de locação de trabalho acabaram
funcionando como uma espécie de acomodação de conflitos gerados pelo sistema
escravista. Pareciam uma possibilidade concreta de os escravos conseguirem a
liberdade. Mas, de fato, perpetuavam as relações de poder da sociedade
escravista.
Liberdade: um conjunto de experiências
Para Marília, tornar-se livre por intermédio um pagamento, obrigava estas pessoas a entrar no mundo da liberdade completamente pobres, e ainda sujeitas a exploração. Se na teoria, a liberdade significa ter autonomia para circular de um lugar para outro e tomar suas próprias decisões, estas pessoas ainda não eram completamente livres.
Para Marília, tornar-se livre por intermédio um pagamento, obrigava estas pessoas a entrar no mundo da liberdade completamente pobres, e ainda sujeitas a exploração. Se na teoria, a liberdade significa ter autonomia para circular de um lugar para outro e tomar suas próprias decisões, estas pessoas ainda não eram completamente livres.
Segundo
a historiadora, todo este histórico de dificuldades e condições de subcidadania
oferecidas aos libertandos tem reflexos na nossa atual realidade social. Para
ela, a recente discussão acerca de cotas raciais nas universidades, por
exemplo, é muito importante, pois está relacionada à reparação de desigualdades
em parte herdadas da escravidão e das experiências de vida destes
recém-libertos.
“A
liberdade precisa ser entendida como um conjunto de experiências vividas”,
reflete. “Mesmo para aqueles que se tornavam formalmente livres, seu universo
de expectativas e direitos era muito desigual quando comparado a outros setores
da população”, afirma a historiadora. E conclui: “As cotas podem ser um grande
instrumento para a justiça social. A luta hoje diz respeito à ampliação dos
direitos à cidadania para os negros, e a distribuição injusta destes direitos
tem raízes históricas fincadas na escravidão.”
Mais informações: email marilia.ariza@usp.com, com a historiadora Marilia Ariza
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