quinta-feira, 6 de novembro de 2025

ENCANTO E POESIA

Texto de Sérgio Mateus Squilanti

 

Encontrei-me com Acrísio de Camargo num sonho; desde adolescente, na década de 1960, ao cantar o hino indaiatubano nas aulas de Música e nas comemorações cívicas do então Colégio Estadual Dom José de Camargo Barros, eu o procurava.

“Alma Sombria”. Por que o poeta assim definia a alma da cidade, na letra do hino composto em parceria com Nabor Pires de Camargo, responsável pela melodia? Eu não tinha alma sombria, nem meus colegas. Muito menos a cidade; verdadeiro ou falso, conhecida pela alta incidência de raios ultravioleta e irradiação solar elevada. Iluminação aqui não faltava. “Nosso sol tem calor de amizade”, definiria um slogan da prefeitura municipal, na década de 1980.

Quando me deparei mais diretamente com a letra do hino indaiatubano, aos 16 anos de idade, a época era de Alegria-Alegria, festivais de música popular brasileira, passeatas, contestações ao regime militar. Efervescência social que varria o país de ponta a ponta, aqui também replicada. O município iniciava um ciclo acelerado de desenvolvimento econômico, com a instalação de multinacionais que nos tornaram conhecidos mundialmente.

Mas, ao cantarmos o hino indaiatubano, éramos lembrados do tipo de alma que tínhamos: sombria, lúgubre, triste, melancólica, carrancuda, obscura, nublada, sinistra, tenebrosa, macabra e todos os demais sinônimos pejorativos disponíveis no Google.

Eu não me conformava com essa definição, e, quando algo me incomoda, mexe comigo, e me dou conta de que não posso fazer nada para alterar o que me contraria, eu sonho. Meus sonhos são sempre longos e demorados; tenho pilhas de cadernos onde eu os anoto há décadas. A maior parte deles é indecifrável. Mas, como adiante veremos, este não foi o caso.

O sonho está anotado em um dos meus cadernos mais antigos. Relata o dia em que me encontrei com Acrísio de Camargo: 9 de dezembro de 1930, aniversário da cidade, dia da inauguração do monolito comemorativo ao centenário de elevação de Indaiatuba a Distrito de Paz da Jurisdição de Itu, quando o hino indaiatubano seria executado em público pela primeira vez.

Um dia de festa, promovido pelo legendário prefeito Major Alfredo Fonseca, que governava a cidade há 25 anos, e que deixaria o cargo no ano seguinte, retornando à prefeitura quatro anos depois.

Encontrei-me com Acrísio às quatro e meia da manhã no Largo da Matriz e, ainda sonolentos, juntos, ouvimos emocionados a Corporação Musical Sete de Setembro entoar a Alvorada, seguida de uma salva de vinte e um tiros, que além de espantar o sono, afugentou todas as pombas e passarinhos das torres da igreja e das imediações.

Perambulamos pelas ruas contíguas à igreja matriz Nossa Senhora da Candelária, conversando com muitas pessoas que, apesar do horário, marcavam presença, curiosas com os festejos, e, alegres, cumprimentavam Acrísio; algumas solicitando receitas de remédios, por exercer ele, na cidade, a profissão de farmacêutico.

Às seis horas da manhã, dirigimo-nos até o Paço Municipal, no centro da praça central da cidade, para reverenciar o hasteamento do pavilhão nacional. Às dez horas, a manhã foi encerrada com uma solene missa campal que, contritos, acompanhamos e, ao final, até comungamos.

Vocês sabem que nos sonhos tudo é permitido, e, no meu, Acrísio era católico, assim como eu. Atualmente sou bem mais eclético.

Apesar de toda essa intimidade, talvez por ainda não conhecer a letra do hino indaiatubano, que só seria entoado ao meio-dia, no mesmo Largo da Matriz, por um coro de senhoritas, não abordei o poeta sobre a razão da alma sombria do município, mesmo porque nada indicava que esse estigma pairasse sobre as cabeças dos indaiatubanos, principalmente naquela data, uma vez que o próprio poeta era bastante alegre e divertido, o que se confirmou à noite, no salão do Cine Internacional, ao som da animadíssima Jazz Band, quando o agora meu amigo comprovou que além de poeta e farmacêutico era um ótimo bailarino, disputado pelas moçoilas presentes.

Acrísio estava sempre bem vestido, elegante e jovial em seu terno listrado, cabelos engomados, como era moda; apenas 31 anos de idade. Embora não fosse indaiatubano, pois nascera em Jundiaí, mas por ser poeta conhecido e admirado, morasse e trabalhasse em Indaiatuba, fora convidado a escrever a letra da mais importante peça cívica-musical do município, que a partir do auspicioso 9 de dezembro de 1930, e pelos 95 anos seguintes, seria cantada e recantada por dezenas de milhares de vozes, de todas as idades e gerações, nas escolas, em comemorações oficiais e em praça pública, apesar de nossa alma sombria.

Depois do baile e de algumas doses a mais de bebida, de madrugada, quando cada um retornava à própria casa, criei coragem e questionei o poeta sobre porque qualificar a alma da cidade de forma tão negativa e se ele concordaria em reescrever a letra do hino indaiatubano ou admitir que alguém, um vereador ou prefeito, propusesse a substituição do termo por um outro mais adequado à realidade.

Ele estranhou, surpreendeu-se, pois, para ele, “sombria” não tinha a mesma conotação que para mim. Encarava como um termo romântico, típico do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, quando pululavam canções, poemas e romances, com características lúgubres semelhantes, a exemplo de A Dama das Camélias” ou da modinha Perdão Emília, e da épica Coração Materno, canção em que o filho mata a própria mãe para, a pedido da amante, arrancar do peito da genitora o pulsante coração que,  mesmo assim, o perdoa, imortalizada na voz de Vicente Celestino, entre tantos outros romances, poemas e composições no mesmo estilo “melancólico”, “sombrio”, para dizer o mínimo.

- Sombrio, mas com “encanto e poesia”, contestou Acrísio. - E você se esqueceu da sequência: “E parece sorrir o seu claro infinito, a pensar: Indaiatuba sem par”, acrescentou o poeta com um sorriso compreensivo, recitando versos do hino indaiatubano.

Foi nesse momento que ele e eu nos demos conta de que éramos de épocas distintas. Passado e futuro se confrontando, separados por dezenas de décadas, postados em arcabouços históricos radicalmente diferenciados ou mesmo antagônicos.

- Você veio do futuro para reclamar da minha poesia? Propor que a letra do hino que compus seja reescrita?

Ainda que me sentindo um espião, com a identidade revelada, fiquei tentado a dizer: sim! “Campo florente, tão vasto e bonito”, onde? Já nem tem mais campo na cidade, é só condomínio, e avenidas asfaltadas, eu ia argumentar, mas me dei conta que, em 1930, com pouco mais que 5 mil habitantes, Indaiatuba, de fato, poderia ser considerada um “ninho”, e para o poeta, “de amor caro e gentil”.

Os indaiás, que cobriam extensas áreas da cidade, aos quais ela deve o nome, só seriam totalmente exterminados muitas décadas à frente. À época da composição da letra do hino indaiatubano, quando Acrísio tinha apenas 31 anos de idade, podiam, de fato, compor, juntamente com outras espécies nativas, um campo florente, vasto e bonito, numa cidade com pouquíssimas edificações.

Atualmente, não restou quase nenhuma palmeira indaiá, o que não seria motivo para mudar o nome da cidade, ou seria? Tuba (muito, em tupi-guarani). Indaiá, a referida palmeira de porte baixo, produtora de cachos de coquinhos. Em resumo: muito indaiá (que já não há mais por aqui).

“Com seu ar e seu clima, és uma rosa no mais lindo recanto do Brasil”. Outro verso do referido hino que me passou pela cabeça contestar. O ar em Indaiatuba ainda é bastante respirável, comparei e admiti, mas o clima, como em todo planeta, está em colapso, e no verão, aqui ou alhures, é de sofrer. Porém, olhando a Indaiatuba da época, pelos olhos inspirados do então jovem poeta, não tinha como contestar seus versos: “ó terra querida e venturosa”, ainda que autonomear-se “o recanto mais lindo do Brasil” seja um certo exagero, se comparado com outros recantos do país; mas o elogio passa como licença poética para quem coube a responsabilidade definir a cidade, há quase um século atrás, na letra do hino a ela dedicado.  

“Berço feito de sonhos e de amor... os teus filhos te saúdam com ardor”.

Não há como não amar Acrísio de Camargo, embora o conheçamos tão pouco, ou, basicamente pela letra do hino indaiatubano.

E, depois de estar com ele e de tanta discordância e questionamentos, acordei resignado e convicto de que, afinal, alma sombria é melhor do que não ter alma alguma, e que dá até para engatar, ainda que forçando um pouco a barra, um cunho sonhador nos sombrios, cheios de encanto e poesia, como eu, ou como você.

Hino de Indaiatuba - SP

Salve, ó terra querida e venturosa,
Santo ninho de amor caro e gentil,
Com teu ar e teu clima és uma rosa
No mais lindo recanto do Brasil.

Salve, ó Berço querido onde nasci,
Berço feito de sonhos e de amor...
Hoje em festa, a cantar, pensando em ti,
Os teus filhos te saúdam com ardor.

O teu campo florente é tão vasto e bonito!
E tua alma sombria
Tem encanto e poesia!
E parece sorrir o teu claro infinito,

A pensar
Indaiatuba sem par.

 


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