quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O tempo abstrato, nosso patrimônio e o crescimento urbano

Eliana Belo Silva

No período pré-histórico e mesmo na Antiguidade a maioria das sociedades tinha a percepção do passar do tempo de uma maneira muito concreta: a presença ou não da luz do Sol. E assim, dessa forma muito objetiva de percepção, a vida era organizada: de dia, quando o Sol iluminava os campos e as poucas cidades - que hoje são quase todas ruínas (e olhe lá!) -, as pessoas trabalhavam; e assim que a luz ia embora, as pessoas iam descansar. Dessa forma organizavam suas atividades diárias: esforço com a presença do Sol, descanso com a presença da Lua.

Na Idade Média isso mudou.

Os grandes mosteiros, as já opulentas catedrais e as pequenas capelinhas da Igreja Católica, única religião oficial por longos e longos anos, instituíram a primeira grande forma de contar o tempo de maneira abstrata: o sino. Inicialmente o seu repicar tirava os monges das camas antes do amanhecer, para que iniciassem as ladainhas ainda na escuridão. Esse costume interrompeu a marcação do tempo da maneira concreta, pois a partir dele, o trabalho, ou melhor, as rezas, tinham início antes da presença da Luz.

Aos poucos os pontos de controle concretos do dia foram aumentando e os sinos repicavam marcando o momento de outras tarefas muito agradáveis: refeição matinal, almoço, jantar. Mas também o fim da refeição matinal, o fim do almoço e o fim do jantar, o que significava o retorno para alguma outra atividade: rezas para uns, trabalho pesado nos campos para outros.

Não demorou para que os feudos e até pequenas vilas dos arredores começassem a gerir suas tarefas também com o sino, que de início tinha o objetivo de controlar apenas as tarefas dos religiosos.

Logo todas as pessoas já tinham que fazer isso ou aquilo conforme o tempo abstrato imposto pelo sino: começar “isso” na primeira badalada do dia e terminar até “tantas” badaladas. E isso mudou toda a relação do homem com o tempo, do homem com o trabalho, do homem com seu próprio corpo, que muitas vezes não estava devidamente condicionado para levantar antes do momento concreto - presença da luz - e nem tão pouco descansar muito depois da chegada da escuridão.

Embora os antigos egípcios já tivessem compreendido a sistemática de divisão do dia em 24 horas, foi efetivamente com o advento da Revolução Industrial e das novas invenções tecnológicas do século XVIII que ele – o relógio – começou a ser aplicado da forma como conhecemos hoje: tiranicamente controlador. Todas as tarefas diárias, para desespero dos que possuem o corpo com metabolismo naturalmente concreto e êxtase para os excessivamente sistemáticos - passaram a ser cobradas, supervisionadas e todos os outros verbos de controle - com base em períodos de 60 minutos.

Em nossa Indaiatuba de antigamente tínhamos o sino da Candelária marcando o tempo dos cidadãos. Não só de hora em hora, controlando abstratamente os afazeres. Mas também alertando em casos de sinistro como incêndios. Ou alegrando em procissões, ou chorando melancolicamente ao informar enterros. Mas o “relógio” da Matriz já não toca mais assim.

Tínhamos também o apito da fábricas que fizeram o progresso de muitas famílias até por duas ou mais gerações: o apito do Vilanova e da Têxtil Judith. Eram eles que marcavam o tempo abstrato não só de seus operários, do ligar e desligar as máquinas, mas de toda uma cidade: a hora em que o marido sairia do “serviço” e o sinal de quanto tempo demoraria para o bife ter que ficar pronto. Sinalizava que a 24 de maio ficaria lotada de bicicletas com diferentes uniformes, principalmente da Yanmar, da Metalúrgia Ilma, da Puriar. Apontava o tempo que crianças iriam demorar para sair ou entrar na Escola. Enfim, todos os que moravam no Centro da nossa querida Indaiatuba e nos arredores tinham seu tempo marcado por essas sirenes para fazer alguma atividade.

Em maio de 2011, a Têxtil Judith foi embora do Centro, e mais um patrimônio de nossa História viverá apenas em nossas lembranças. Sua sirene nunca mais tocará, não daquela forma. 

Hoje vivemos todos aprisionados tiranamente por relógios digitais, que determinam o que temos que fazer com a precisão de minutos. O tempo concreto, continua lá, nas marés, no ciclo da Lua, nas estações do ano, no movimento de rotação e translação. Mas muitos de nós está prestando atenção apenas nos minutos abstratos que regem tarefas medíocres, que fazemos sem prazer, submetidos ao objetivo de ganhar dinheiro para comprar coisas que, se pensarmos bem, não necessitamos de verdadeiramente. 


E o grande tempo da vida passa despercebido.


 Que o tempo abstrato que agora é de pura correria não permita que seus filhos do ventre ou adotados esqueçam de suas Memórias. Que a gente apreenda que relógio não é sinônimo de tempo, assim como crescimento não é de desenvolvimento.

Uóóóóóóóóóóóó. Hora de parar de escrever que a lauda já está maior do que deve.

 Têxtil Judith (com sua caixa d´água no centro) perto da Caixa D´Água da Rua 24 de Maio (canto esquerdo inferior da imagem) - Década de 1940

A mesma caixa d´água da foto acima, ruida.



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Esse texto foi parcialmente publicado na Revista Kaaba de nov de 2011

Fiz esse texto com pequena parte do muito que aprendi com Edgar De Decca, meu professor na UNICAMP; bons tempos.

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