O pai, que trazia o mesmo nome, e o avô, Manoel Campos Bicudo, eram naturais da Vila de Itu, na então Capitania de São Paulo. A família possuía extensas propriedades rurais na região, entre elas a Fazenda Taipas, inserindo-se no grupo de grandes proprietários que participaram ativamente do processo de expansão territorial paulista. Esses homens estiveram profundamente ligados à vida nos sertões, movidos pela busca do ouro e pela captura de populações indígenas, práticas recorrentes no universo do bandeirantismo.
Foi nesse ambiente que cresceu Antônio Pires de Campos, absorvendo desde cedo as experiências, valores e métodos de seus antepassados. A convivência com essas incursões e com a lógica de dominação sobre os povos indígenas moldou sua formação e definiu sua trajetória como sertanista, refletindo uma herança familiar marcada pela violência colonial e pela exploração dos territórios interiores.
Conhecido pelo epípeto Pai-Pirá — expressão de origem indígena que pode ser traduzida como “pai de todos” —, Antônio Pires de Campos figura na historiografia como personagem de destaque. O historiador Afonso d’E. Taunay, em Relatos Sertanistas (1954, p. 181), refere-se a ele como um dos informantes mais “capacitados” de sua época sobre os Cayapós, povo indígena do Brasil Central, tendo deixado inclusive registros escritos sobre esses grupos. Essa aparente autoridade etnográfica, no entanto, coexistiu com uma atuação marcada pela extrema violência.
Contratado pelo governo colonial, Pai-Pirá recebeu a incumbência de combater e eliminar os chamados “índios hostis”, missão que cumpriu por meio de um exército formado exclusivamente por indígenas Bororó, muitos deles herdados da administração exercida por seu pai e por seu avô. Esse contingente, composto por centenas de homens e sem a participação de combatentes brancos, foi utilizado como instrumento de guerra contra outros povos originários.
A finalidade dessa ação era assegurar a circulação pela Estrada do Anhanguera, também conhecida como Caminho de Goiás, rota estratégica para o escoamento do ouro das minas de Minas Gerais em direção a São Paulo. Na região então denominada Sertão da Farinha Podre, correspondente ao atual Triângulo Mineiro, viviam os Cayapós, que resistiam às invasões e aos saques de seus territórios.
Segundo o próprio Taunay, a repressão conduzida por Pai-Pirá foi marcada por “barbaridades espantosas e grande mortandade”. Para legitimar a violência e assegurar a recompensa prometida — uma arroba de ouro pela expulsão ou destruição desses povos —, os Cayapós foram acusados de canibalismo, argumento recorrente na retórica colonial para justificar ações de extermínio e apagar a condição humana dos grupos atacados.
Em 1774, já exauridos pela guerra, pela dispersão e pelas perdas sucessivas, os poucos sobreviventes foram conduzidos à aldeia de São José. Os registros indicam que o local rapidamente entrou em decadência, “caindo em ruínas por motivo da mortandade e da deserção”, encerrando de forma silenciosa e trágica a presença Cayapó naquele território.
O temperamento tirânico e escravizador de Pai-Pirá no trato com os povos indígenas é mencionado por diversas fontes contemporâneas. Entre elas, destaca-se uma carta datada de 1775, de autoria de José Pinto da Fonseca, na qual são relatados episódios de extrema agressividade e violência praticados contra os Carajás da Ilha do Bananal. Segundo esse registro, Pai-Pirá teria açoitado, aprisionado e executado indígenas, promovendo ainda a separação deliberada de famílias, chegando a trocar alguns dos cativos por gado, prática que evidencia o caráter mercantil atribuído à vida humana no contexto colonial.
É importante recordar que a imagem do bandeirante como herói paulista, corajoso e responsável pela expansão territorial do Brasil, constitui uma construção historiográfica que perdurou por décadas. Essa narrativa só começou a ser efetivamente questionada ao longo do século XX, quando a ampliação do acesso a fontes documentais confiáveis revelou o quanto essas expedições foram marcadas por impiedade, violência sistemática e interesses econômicos predatórios, sobretudo em relação às populações indígenas.
Outro aspecto da trajetória de Pai-Pirá que tem sido objeto de estudos mais recentes diz respeito à sua inteligência estratégica e habilidade de negociação, perceptíveis nos textos que deixou registrados. Essa característica se manifesta, em especial, na relação estabelecida com os Bororó. Pesquisas contemporâneas indicam que esse grupo indígena não permaneceu submetido de forma inteiramente passiva por longos períodos, mas foi aldeado a partir de interesses específicos, em processos que envolveram acordos, mediações e negociações complexas entre as partes.
O VALE E OS FÉRRER DO AMARAL
Em 1798, a então Fazenda Taipas encontrava-se sob a propriedade do grande latifundiário Vicente Férrer do Amaral. Apenas nessa unidade rural, registrava-se a presença de 22 trabalhadores negros escravizados, evidência da inserção da propriedade no sistema econômico baseado na escravidão que sustentava a ocupação e a produção agrícola da região naquele período.
Vicente Férrer do Amaral era casado com Brígida Soares de Camargo, com quem teve doze filhos. O casal é reconhecido pela historiografia local como um dos núcleos familiares pioneiros na povoação de Indaiatuba, contribuindo para a consolidação do território e para a formação das primeiras redes sociais e econômicas do então povoado.
Com a morte de Vicente, em 1817, Brígida Soares de Camargo assumiu a administração e a propriedade de um conjunto significativo de terras, entre as quais se destacavam as Fazendas de Feital, Cocais, Pau-Preto e Itaici. Sua atuação como proprietária rural revela a continuidade das grandes estruturas fundiárias na região e o papel ativo exercido por viúvas na gestão patrimonial no contexto do século XIX.
Em 1835, Brígida promoveu a alienação de diversos bens, incluindo a Fazenda Itaici, que foi vendida ao alferes Lourenço Xavier de Almeida Prado. Essa transação marca mais um capítulo na longa trajetória de sucessivas posses que moldaram a ocupação das terras situadas na margem esquerda do Rio Jundiaí, território onde, décadas mais tarde, se inscreveriam novas camadas da história de Indaiatuba.
O VALE E OS TIBIRIÇÁ PIRATININGA
Em 1851, o alferes Lourenço Xavier de Almeida Prado alienou a propriedade para João de Almeida Prado Júnior (*1802 – †1851), mais conhecido como João Tibiriçá Piratininga, o “Pai”. Essa transação marca a entrada de uma família cuja trajetória se confunde com as origens mais antigas da ocupação paulista.
A família Almeida Prado chegou ao Brasil durante a segunda expedição de Martim Afonso de Souza, primeiro donatário da Capitania Hereditária de São Vicente. Com o passar do tempo, passou a adotar dois sobrenomes de origem tipicamente indígena — Tibiriçá e Piratininga — ambos em referência ao cacique Tibiriçá, reconhecido como o principal líder indígena do Planalto de Piratininga e figura central nas alianças que marcaram o início da colonização da região.
Em 1857, a propriedade foi herdada por seu filho, o indaiatubano João Tibiriçá Piratininga, o “Moço” (1829 – †1888). Após permanecer cerca de seis anos na Europa, onde se dedicou ao estudo de disciplinas relacionadas às Ciências Físicas e Naturais aplicadas à agricultura, com especial atenção à produção açucareira — base da riqueza familiar —, João Tibiriçá promoveu profundas transformações na fazenda.
Entre essas iniciativas, destacou-se a instalação de um engenho a vapor, equipamento de grande porte importado da França, cuja chegada a Itaici demandou cerca de dois anos de transporte, realizado por meio de carros de boi, alavancas e força de trabalho escravizada, desde o porto de Santos até o interior paulista. Posteriormente, adquiriu de seu irmão José a Fazenda Tranqueiras, ampliando ainda mais a extensão das terras, que passaram a ser conhecidas como o “Engenho de Itaici”.
A propriedade contava com uma lavoura organizada segundo o sistema de afolhamento, cultivando cana-de-açúcar, algodão e feijão, configurando-se como uma típica fazenda do período conhecido como Ciclo da Cana. O cotidiano estruturava-se, como em tantas outras propriedades do período, entre a casa-grande e a senzala, refletindo as profundas desigualdades sociais que sustentavam a produção agrícola.
Esse complexo rural legou à região um patrimônio edificado ainda pouco explorado pela historiografia e pela memória local. A antiga casa-grande, sede da fazenda, corresponde hoje à chamada Vila Manresa, situada na Vila Kostka, área que pode ser visitada por aqueles que se dirigem ao Mosteiro de Itaici. Trata-se de um testemunho material silencioso, mas fundamental, das camadas históricas que moldaram o território e a paisagem cultural de Indaiatuba.
Em 1891 o filho de Tibiriçá Piratininga ‘O Moço’,
Jorge Tibiriçá, vendeu a
fazenda que herdou com a morte do pai para construir um palacete na
Rua Tamandaré, em São Paulo, capital.
AO VALE E A ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE ITAICI
Durante muitos anos, o nome Itaici foi utilizado como referência ampla ao território onde se localizava a antiga Fazenda Taipas. Entretanto, foi com a implantação da Estação Ferroviária de Itaici que a denominação se consolidou e ganhou maior projeção regional, passando a identificar não apenas um ponto geográfico, mas um lugar de circulação, encontro e permanência.
A festa oficial de inauguração da estação ocorreu em 11 de dezembro de 1879. Ainda assim, os registros indicam que suas atividades possivelmente já se encontravam em funcionamento desde 1873, quando, ao lado das estações de Itu, Salto e Pimenta, integrou a linha-tronco da Estrada de Ferro Ituana, no trecho que ligava Itu a Jundiaí. A partir de 1914, a estação passou a atender o ramal de Campinas, ampliando sua importância no sistema ferroviário paulista.
A Estação Ferroviária de Itaici ultrapassou em muito a função de simples ponto de embarque e desembarque. Tratava-se de um entroncamento ferroviário estratégico, por onde transitavam quatro composições, cruzando-se três vezes ao dia. Essa intensa circulação transformou o local em um polo logístico de relevância estadual, especialmente no final do século XIX e início do século XX.
Além de sua função ferroviária, a estação abrigou serviços essenciais à vida cotidiana da região. Funcionou como sede de correio, escola ferroviária e espaço de sociabilidade, concentrando atividades administrativas, educacionais e comerciais. O bar-restaurante instalado no local adquiriu tamanha importância que seu proprietário tornou-se figura de destaque na comunidade, recebendo, de forma emblemática, o título informal de “Barão de Itaici”.
Assim, a estação não apenas marcou a paisagem física do Vale das Laranjeiras e todo seu entorno na margem esquerda e direita do Rio Jundiaí, como redefiniu sua inserção no território, conectando-o às dinâmicas econômicas, sociais e culturais que moldaram a história de Indaiatuba e de toda a região.
A Estação Ferroviária de Itaici teve suas atividades encerradas em 1986, em decorrência da construção da variante Boa Vista–Guaianã, que redefiniu os fluxos ferroviários da região. A partir de então, o edifício passou a experimentar sucessivos ciclos de uso, abandono e ressignificação, refletindo as transformações do território ao longo das décadas.
Em 2004, a estação encontrava-se ocupada pela comunidade da Paróquia Santa Terezinha, sob a coordenação do padre Artur Sampaio, funcionando como centro comunitário voltado a crianças e adolescentes de 7 a 14 anos. Alguns anos depois, em 2010, o imóvel já se encontrava invadido, evidenciando o período de degradação e vulnerabilidade do patrimônio ferroviário.
Em setembro de 2014, o edifício passou por um processo de restauração, conduzido pela FCBA Construtora, empresa vencedora da licitação promovida pela Prefeitura, marcando uma nova tentativa de preservação e reaproveitamento do espaço histórico.
Por fim, em 12 de agosto de 2022, após nova intervenção de restauro e adequação, o antigo edifício ferroviário foi oficialmente inaugurado como Centro Cultural Itaici, encerrando um longo ciclo de incertezas e inaugurando uma nova etapa de uso público e valorização cultural de um dos mais importantes marcos da memória local.
O VALE E O MOSTEIRO DE ITAICI
Em 1896, o então proprietário Cândido de Moraes Bueno, que havia adquirido a fazenda de Jorge Tibiriçá em 1891, alienou parte dessas terras à Companhia de Jesus. Um total de 250 alqueires passou a integrar o patrimônio do Internato São Luiz de Itu, marcando o início de uma nova e decisiva etapa na história do território da margem esquerda do Rio Jundiaí.
O valor da transação foi registrado como “simbólico”, e as negociações teriam sido conduzidas diretamente entre o padre Luís Tabar, representante do Internato, e o capitão Cândido de Moraes Bueno. A intenção era dupla: instalar no local um sanatório para doentes e, simultaneamente, criar um espaço destinado ao retiro e à formação de jovens seminaristas, em ambiente de recolhimento e contato com a natureza.
Os relatos dos jesuítas mais antigos que ali residiram descrevem um período de tranquilidade e abundância natural. O Rio Jundiaí, então límpido e piscoso, era utilizado para banhos, enquanto a mata ao redor ainda abrigava jaguatiricas e onças, compondo uma paisagem marcada pela presença quase intacta da fauna e da flora.
A partir de 1917, sob a liderança do irmão Larrañaga, cerca de cem pessoas — entre irmãos, padres e jovens noviços — passaram a atuar na construção do conjunto arquitetônico que viria a formar o atual Mosteiro de Itaici. Como mestre de obras, Larrañaga coordenou um processo construtivo essencialmente artesanal, com materiais beneficiados no próprio local.
Os religiosos da casa exerciam múltiplos ofícios, distribuindo-se entre atividades na olaria, na oficina de ferragens e na carpintaria, até que fosse concluída a escola de seminaristas, que funcionou até 1972. Nesse ano, o Mosteiro foi oficialmente transformado em Casa de Retiros, redefinindo sua vocação institucional.
O complexo também desempenhou papel relevante como sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), acolhendo encontros que reuniam, entre bispos, padres, assessores e leigos, contingentes que chegavam a trezentos hóspedes. Já na década de 1970, parte do patrimônio fundiário foi alienada, e, atualmente, a manutenção do Mosteiro ocorre principalmente por meio das atividades e eventos promovidos para os retiros espirituais.
Assim, o Mosteiro de Itaici consolidou-se como um espaço onde espiritualidade, trabalho, memória e paisagem se entrelaçam, inscrevendo-se de forma profunda na história da margem esquerda do Rio Jundiaí em Indaiatuba.
CONCLUSÃO – CAMADAS DE TEMPO E MEMÓRIA
A história do Vale das Laranjeiras e de todo o território indaiatubano da margem esquerda do Rio Jundiaí, observada em perspectiva de longa duração, revela um espaço moldado por sucessivas camadas de ocupação, apropriação e ressignificação. Antes de se tornar loteamento, fazenda, entorno ferroviário ou espaço de retiro, esse território foi chão indígena e palco de conflitos coloniais, marcados por violência, resistência e apagamentos. Cada período deixou vestígios — alguns visíveis na paisagem, muitos silenciados na memória coletiva — em grande parte eclipsados por uma narrativa oficial que centraliza a História de Indaiatuba a partir da Igreja Nossa Senhora da Candelária.
O avanço bandeirante, a formação dos latifúndios, o uso sistemático da mão de obra escravizada, os ciclos produtivos da cana-de-açúcar e, posteriormente, a chegada da ferrovia, reorganizaram o território segundo lógicas econômicas e políticas específicas de cada época. Esses processos foram sustentados por relações desiguais de poder, deslocamentos forçados e pela supressão de modos de vida preexistentes, primeiro indígenas, depois de populações subalternizadas ao longo do período colonial e imperial.
No século XIX, famílias como os Férrer do Amaral e os Tibiriçá Piratininga consolidaram uma paisagem rural marcada pela grande propriedade, estruturada entre a casa-grande e a senzala. A ferrovia redefiniu fluxos e conexões, inserindo Itaici em circuitos mais amplos de circulação, trabalho e sociabilidade. Já no final do século XIX e ao longo do século XX, o Mosteiro de Itaici inaugurou uma nova camada de uso do território, associada ao recolhimento, à espiritualidade e ao trabalho comunitário, sobrepondo-se — sem apagar — as marcas anteriores.
Mais recentemente, empreendimentos como o Vale das Laranjeiras expressam a transformação de áreas rurais em espaços de lazer e descanso, convivendo com pequenas propriedades familiares que buscam novas estratégias de permanência, como o turismo rural. Essa etapa contemporânea reafirma o caráter dinâmico do território, continuamente reinterpretado conforme valores, necessidades e projetos de cada tempo.
Conhecer essa trajetória não é apenas reunir fatos, datas e nomes, mas exercitar uma escuta atenta das memórias inscritas no espaço. Ao revisitar essas camadas históricas, amplia-se o sentido de pertencimento e aprofunda-se o vínculo com o lugar. O Vale e todo o território da margem direita do Rio Jundiaí deixa de ser apenas um espaço ocupado para se afirmar como território vivido, atravessado por tempos diversos e narrativas entrelaçadas. É nesse reconhecimento do passado que se constrói uma relação mais consciente, responsável e sensível com o presente — e com o futuro — desse lugar.
O FUTURO
“A viagem não acaba nunca.
Só os viajantes
acabam.
E mesmo estes podem prolongar-se em
memória,
em lembrança,
em narrativa.
Quando o
visitante sentou na areia da praia e disse:
“Não há
mais o que ver”,
saiba que não era assim.
O fim de
uma viagem é apenas o começo de outra.
É preciso
ver o que não foi visto,
ver outra vez o que se viu já,
ver na primavera o que se vira no verão,
ver de dia
o que se viu de noite,
com o sol onde primeiramente
a chuva caía,
ver a seara verde,
o fruto maduro,
a
pedra que mudou de lugar,
a sombra que aqui não
estava.
É preciso voltar aos passos que foram
dados,
para repetir
e para traçar caminhos novos ao
lado deles.
É preciso recomeçar a viagem.
Sempre”.
José Saramago
_________________________________________________________________
Agradecimentos
Kléber Patrício, pela amizade, confiança e indicação.
Associação Vale das Laranjeiras, que patrocinou essa pesquisa.
Cartório de Registro de Imóveis de Indaiatuba, pelo apoio na pesquisa das propriedades e sucessão do território estudado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário