"Há cerca de sessenta anos (1) anos, aqui em Indaiatuba, vivia uma criatura muito simples, mas muito simpática e estimada por todos, principalmente pelas crianças que em sua casa encontravam um pequenino mundo encantado: balaios cheios de bonecas de pano.
Ela era Rufina, a fazedeira de bonecas, escrava que pertenceu ao cativeiro da família Estanislau do Amaral.
Terminada a escravidão, continuou sendo protegida por dona Maria Rita, membro desta família e de quem Rufina fora babá. Essa rica senhora a mantinha em uma de suas propriedades, uma casa que ainda existe aqui na rua 9 de Julho, número 98, a primeira direita de quem sobe do pontilhão da Sorocabana.
Rufina era preta baixinha de porte franzino, rosto bem redondo. Quase sempre de pé no chão e, pela falta de um dedo, andava meio mancando; usava saias bem compridas e rodadas, sobre as quais caía uma bata - blusa bem soltinha, que também se chamava matinê - quase sempre branca de mangas compridas e golinha afogadinha, bem justa ao pescoço.
Limpa e asseada, Rufina sentava em sua tripeça, dava-se ao préstimo de fazer bonecas de pano, pequenas bruxas, costuradas à mão, feitas de retalhos ganhos de pessoas suas amigas que prazerosamente lhe ofertavam para tão habilidosa confecção.
Eram diversos modelos e tamanhos das bonecas que Rufina fazia, variando no cabelo curto, comprido ou de tranças - feitos de meias tendo a boca, os olhos e o nariz bordados com linhas e o corado das faces dado com um papel de seda vermelho umedecido.
Umas eram de pernas retas, outras porém de pezinhos, mas o detalhe mais importante estava nas mãos que às vezes eram inteiriças e mais caprichas, mais perfeitas, consequentemente mais caras, com os cinco dedinhos separados e bem feitinhos.
Então, quando a gente ia comprar uma boneca, a Rufina perguntava: _ você quer uma de mãozinha inteira ou de dedinhos?
Conforme a opção, tomava o balaio onde estavam as bonecas solicitadas, deixando a freguesa manuseá-las à vontade para escolher a preferida.
A gente saía feliz com aquele brinquedo tão querido, que custava 200 réis... 500 réis... um dinheirão!
Aqui, poder-se-ia dizer que com que Rufina com seus retalhos, agulha e linha, aliados à sua extraordinária habilidade, tinha em sua casa uma indústria manufatureira em miniatura.
Mas a história de Rufina não termina aí. Ela era uma das únicas pessoas da cidade que, naquele tempo, possuía bonecas de porcelana; coisa rara pois as mais finas existentes no comércio eram feitas de massa de papel e de celuloide. Dona Maria Rita, sua protetora, fez-lhe presente de duas lindas bonecas de biscuit, recordação da sua infância: um boneco branco chamado Paulo e uma graciosa pretinha chamada Benedita. Paulo e Benedita eram o encanto da meninada e o atrativo da Rufina, que os punha sentados sobre uma cômoda, onde recebia sua clientela, e mantinha mantinha-os como dois ídolos, adorados pelas freguesas que não podendo ter iguais, contentavam-se em poder admirá-los.
Pois essa criatura habilidosa e humilde é parte integrante da nossa memória, figurando neste livro pela sua valiosa participação na felicidade daquela infância que hoje saudosa recorda-a e coloca-a do lado das minhas figuras inesquecíveis."
__________________________________________________________
(1) A autora se refere ao início do século XX, uma vez que o texto foi originalmente publicado em 1974 no jornal Tribuna de Indaiá. Posteriormente o texto foi publicado no livro "O Tempo e a Gente", de Sylvia Teixeira de Camargo Sannazzaro, da Rumograf Industria Gráfica Ltda. em 1997.
__________________________________________________________
Imagem disponibilizada no Wikipédia no link https://pt.wikipedia.org/wiki/Abayomi#/media/Ficheiro:Abayomi_-_SalatielKrug.jpg
- CC BY-SA 4.0
- Ficheiro:Abayomi - SalatielKrug.jpg
- Criação: 29 de outubro de 2023
- Carregamento: 29 de outubro de 2023
Nenhum comentário:
Postar um comentário