segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Fantástica Viagem nas Recordações de Gegé

. ..Aparecido Messias Paula Leite de Barros* .
Como foi doce e agradável passar uma tarde de sábado com aquela senhora (1) , que mesmo com a idade avançada, não esconde os traços de quem foi muito bela na juventude. Suas recordações são de tal forma vivazes, que fazem como nos sentir estar em um cinema em 3 dimensões.
. De apelido “Gegé”, a Sra. Maria José Tanclér Geiss, nasceu e sempre morou em Indaiatuba; atualmente (1) é moradora da Rua Augusto de Oliveira Camargo. Com seus 92 anos, cuida da casa e de seus dois irmãos: um homem e uma mulher. Anda com dificuldade, apoiando-se em um andador de metal, após ter feito uma cirurgia por ter quebrado a bacia. Sua lucidez é fantástica: recorda com minúcias os fatos ocorridos em nossa cidade.
. É neta de um migrante italiano que veio para o Brasil e depois trouxe a família, cujo nome correto é José Tancredi, comerciante e político influente na virada do século XIX, mas que pela força e hábito da população local que modificou seu sobrenome, adotou o nome de José Tanclér.
. É filha do professor Carlos Tanclér, um dos primeiros professores da cidade, patrono da escola estadual do bairro Parque Residencial Indaiá, local que fica na região mais conhecida como Mato Dentro. Carlos Tanclér estudou no Colégio São Luiz na cidade de Itu, uma instituição confeccional; ministrou aulas numa escola que funcionava em sua casa ao lado da Igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária, onde improvisava uma sala de aula. Homem muito ligado ao prefeito Major Alfredo de Camargo Fonseca, casou-se com Maria Pia que se tornou Maria Pia de Sousa Lanzi Tanclér. Desta união nasceram oito filhos, sendo que os outros dois ainda vivos – Maria Luiza e Gumercindo - são os que moram junto com Dona Gegé.
. Aos 92 anos, os olhos de Gegé viram Indaiatuba passar por várias transformações, detalhadamente registradas em sua memória, onde facilmente seu consciente mergulha e emerge, retornando com lembranças memoráveis do passado da nossa cidade. Nascida em 12 de Julho de 1908, não estudou na mesma escola que o pai deu aulas, pois não existia mais. Estudou sim, na Escola Estadual que foi fundada onde hoje funciona a Escola da Candelária, também conhecida como “Escola de Comércio”. Ali cursou e diplomou-se na 4ª. série, grande conquista para a época.
. A grande paixão de Gegé era o cinema, desenvolvido pelos irmãos franceses Lumíere no século XIX, e que chegara a Indaiatuba no inicio do século XX. O invento fascinava a menina que, aos oito anos tomou contato pela primeira vez com a Sétima Arte, levada pelas mãos do pai Carlos Tanclér. Juntos, assistiram à fita “O Correio de Washington” estrelada pela linda atriz Pearl White (Pérola Branca). As modestas instalações do cinema indaiatubano, cujas paredes eram de zinco, foram testemunhas do pavor que a pequena sentiu, juntamente com os demais presentes na exibição, que tiveram a impressão de verem a pequena sala ser inundada com o imenso mar - revolutamente projetado na tela branco-e-preto.
. Lembra-se de ter freqüentado três cinemas. Primeiro, o Cine Íris, localizado à Rua Candelária de frente para a Praça Prudente de Morais. Depois o Cine Recreio com cadeirinhas de palhinha e mezanino no lado oposto do primeiro e mais tarde o Cine Internacional, entre a Rua Pedro de Toledo e a Rua Cerqueira César. Com muita música nas portas destas salas, Indaiatuba, no inicio do século XX, foi uma cidade de bela sonoridade, talvez até abençoada pelo deus Apolo, da mitologia grega que encantava com sua beleza e lira.
. O Cine Recreio era de propriedade do Major Alfredo Camargo Fonseca, logo, um local de discussão política. Antes da seção, era o palco, local de trocas de idéias. Ali os cidadãos indaiatubanos, exerciam seu direito democrático discutindo suas idéias. Era a hora em que Indaiatuba tinha o seu momento “Atenas”. Naquele palco, tal qual na cidade grega, era local e hora para discutir assuntos públicos que refletiam na vida privada; e também como na Grécia, o homem que, presente, não se interessasse pelos assuntos públicos e sim apenas pelos privados, era tido como idiota.
. Diretamente relacionada com o cinema que tanto apreciava em sua infância, estava a banda. Indaiatuba possuía músicos e compositores excelentes e a banda anunciava se haveria filme, causando grande festa na comunidade local com essa anunciação. As famílias que não tinham um dos seus filhos na banda, com certeza tinha um instrumento e mais certeza ainda, se não o tivesse, que participava nos finais de semana, dos pequenos grupos que improvisavam saraus. Praticamente ninguém ficava de fora: nos casamentos, sanfoneiros, clarinetistas e violeiros animavam o salão para que os pés de valsa dançassem. Até os mais tímidos eram envolvidos pela sonoridade.
. Uma coisa que Gegé se encanta em dizer é que a brincadeira de criança ressaltava a criatividade do indaiatubano. Narra como era bom brincar pelas ruas de terra, no largo da matriz, de jogo de amarelinha, pular corda, queimada, ver os meninos a rodar pião.
. No período de 32, Indaiatuba se entristeceu: muitos amigos nascidos na cidade se alistavam para defender o ideal da Revolução Constitucionalista: uma nova constituição, tão esperada por todos os brasileiros, principalmente pelos paulistas. No dia da partida dos voluntários, a estação ficou lotada para a despedida daqueles que partiam para defender os ideais. Lembra essa vigorosa senhora que a comoção foi geral. Aquela imagem nunca saiu de suas lembranças: trens especiais vieram para levar nossos jovens, e nos vagões, havia outros tantos que tinham deixado seus familiares.
. Apesar do triste episódio, ela lembra do governo de Getúlio com carinho, principalmente por ter sido ele a pessoa que -“tirou das ruas aqueles homens que andavam a cavalo pedindo esmolas... Meu pai sempre dava a eles, era uma doença muito triste (2).” . Dona Gegé até evita falar o nome da doença, mas afirma que hoje, felizmente, ela tem cura, desde que se procure um Posto de Saúde bem no início dos sintomas; comentário que demonstra claramente sua lucidez e sua preocupação com a saúde, aos seus 92 anos de vida! (...) E Getúlio foi quem construiu o hospital de Pirapitingui para que fossem abrigados e que tivessem sua moléstia tratada.
. Conhecia Getúlio Dornelles Vargas através do rádio: ele fazia longos discursos e as famílias se reuniam para ouvir e depois discutir as medidas tomadas pelo gaúcho de São Borja. Ela afirma que a grande pena era a de não poder votar neste período. Sempre foi ligada a política, votou quando houve a primeira eleição em que as mulheres tiveram esse direito, gostava de exercer a cidadania, e fez isso até o acidente, que limitou suas saídas de casa.
. Os religiosos gostavam de participar das procissões, principalmente a do Senhor Morto. Era muito comovente, as mães vestiam os filhos de anjo para que participassem do cortejo, a banda tocava a marcha fúnebre, dando um tom de tristeza. Já a da Ressurreição, era mais leve. E essa felicidade contagiava a todos, que se preocupavam com o que vestir. Os homens, de ternos escuros e chapéus de feltro, já as senhoras, com roupas de pano fino e chapéu, algumas usavam pinturas, outras não. Ficavam muito bonitas de pintura, “- Meu pai dizia que mulher pintada, só no papel” mas eu gostava. Devota de Nossa Senhora Aparecida, crê que Deus é tudo.
. Hoje em dia, Gegé recorda com felicidade dos três filhos que teve. Mas com vigor condena o cigarro, que matou um de seus filhos - José Carlos - com 47 anos de idade. Com tristeza, também lembra da perda do filho caçula Paulo vitimado por complicações de doenças da primeira infância aos 9 meses. Mas felizmente pode ver seu filho mais velho Antônio, crescer e brincar pelas ruas de terra do centro da cidade.
. A cidade tinha pouquíssimas ruas e as existentes não eram muito longas, com casas cujas construções aproveitava toda a fachada do terreno, a parede da frente era feita no alinhamento com a calçada, a porta e as janelas, na divisa com a calçada de chão batido. No fundo da construção da casa onde morou, um grande quintal, com uma pequena horta, que era regada com água do poço. Toda casa, naquela época, tinha em seu quintal um poço; quase todos com uma mureta em forma circular, de aproximadamente 1 metro de altura e 2 de diâmetro, de onde saíam dois cavaletes que apoiavam as grandes roldanas, onde ficava amarrada uma corda com um balde na ponta. Quando o balde era jogado para dentro do poço, batia na água – “plaft”, e após cerca de 5 segundos já podia ver, com aquele brilho escuro no espelho d'água. O quintal da casa possuía também uma cerca de bambu que era trocada periodicamente, serviço feito pelos pais ou filhos homens. Esta cerca servia de suporte para o feijão, melão e machucho. No fundo, existia ainda, um rancho, onde se guardava o material usado para cuidar da horta.
. O pote de barro era uma peça fundamental, pois deixava a água fresca numa cidade tão quente. Muitas casas não tinham piso, a maioria era de terra batida, varrido com vassoura de bambu. As toalhas eram feitas de saco alvejado; as donas de casa eram prestimosas em arear suas panelas com areia, deixando o alumínio brilhando, pronto para dependurar. O fogão era de lenha, geralmente pintado de vermelho; só alguns tinham forno, em cima deles tinha sempre um bule de ágata esquentado pela brasa que insistentemente mantinha-se sempre acesa.
. Além da mesa da cozinha, na casa de Gegé existia outra com cadeiras na sala, onde também ficava um oratório em forma de cantoneira com o Santo de devoção, Na maior parte das casas, mesmo as das pessoas bem simples, os santinhos dos oratórios estavam sempre rodeados de moedinhas e mimos oferecidos pelos devotos.
. Nas casas de pessoas mais abastadas, não faltavam belas cristaleiras, um chapeleiro (esse sim, para poucos!) e o gramofone, uma espécie de “vitrola” movida à manivela, com um amplificador de som no formato de “corneta”. Além deste aparelho de som, existia o rádio, que era mais comum e popular: este sim, era o grande veículo de comunicação que, inclusive era instrumento de “agregação” das famílias: todos se reuniam em volta dele. Alguns cômodos não tinham portas, e sim apenas uma cortina; o madeiramento da casa era todo em eucalipto. Algumas casas tinham uma esteira com o forno.
. Bonito de ser ver eram os quadros de santos, com furinhos: as famílias colocavam velas atrás, e criavam assim, um original abajur. Na parede, uma mão de metal com mola servia para prender as contas a serem pagas no final do mês. Em cima da cantoneira, os caminhos feitos de crochê.
. As casas não possuíam muitas mobílias, só o básico. Nos quartos, as camas em madeira escura, cômoda e guarda roupa da mesma cor. Na sala também havia uma bacia com jarro de água para que as visitas pudessem lavar as mãos, acompanhada de uma toalha sempre alvejada.
. Nem todas as casas possuíam energia elétrica e o cheiro de querosene era forte. Os cômodos possuíam candeeiros apoiados nas paredes, sempre assombreadas pelas marcas de fumaça na caiação branca (renovada, sempre que possível, em dias de festas). Mas o cheiro de querosene, tão característico desse passado, não advinha apenas dos quase sempre parcos candeeiros; as mulheres misturavam querosene nas ceras, que espalhavam em movimentos circulares no chão para dar brilho nos assoalhos de madeira e nos mosaicos feitos com cimento queimado e decorados com pó colorido.
. Na frente de algumas casas havia floridos jardins, com formas e cores diversas. Não só para agraciar e espalhar perfumes servia as flores; as crianças das casas onde havia um defunto recebiam a incumbência de pedir, de casa em casa, o adorno para a urna funerária. Todos ofereciam com generosidade, não só para esse fim, mas também faziam um pequeno buquê para levar no cortejo fúnebre.
. Algumas casas, também dos mais abastados, possuíam a eira e a beira. A beira é uma saliência do telhado produzido com as próprias telhas e a eira é um espaço reservado no terreno para secar folha de fumo, café, etc. (portanto, já se vê que o proprietário deveria ter um pedaço de terra considerável). Poucas casas eram fechadas com chave, eram muito usadas as trancas e tramelas, as portas de cozinha eram cortadas pelo meio e só se abria a parte de cima, assim os animais não invadiam a casa.
. A macarronada feita aos domingos era fundamental, o vinho fazia parte do almoço depois de uma semana na lida, Este dia era como se fosse um dia de festa, todos levantavam cedo e depois de se banhar, colocavam suas melhores roupas, iam a missa que era rezada em latim, para em seguida confraternizarem em família, com muita música. Para irem a missa as senhoras engomavam a roupa e passavam com ferro de brasa, algumas pessoas usavam o papel crepom para fazer flores e colocá-las para adorno, moças pobres usavam o papel para fazer ruge molhando-o na água para em seguida passar no rosto. Após a celebração, alguns maridos paravam nos bares para beber, trocar um dedo de prosa e aproveitar para vender um saco de feijão, ou arroz.
. Nas feiras-livres o povo ia para comprar sardinha. Ali tinham muitas rodas de imigrantes ou descendentes que geralmente não pronunciavam os dois “erres” (quero dizer que em vez de pronunciarem barriga, pronunciava bariga). Era bonito ver as manadas de bois passarem pelas ruas, muitos saiam na janela para ver os animais serem conduzidos ao matadouro, como toda cidade do interior.
. Na praça, uma atração importante; a apresentação da banda. Gegé lembra que a cadeia local era mais para enfeite, pois quase não havia crime, coisa muito diferente de hoje em dia. A cidade era muito pequena com mais ou menos seis dúzias de ruas, com pacato movimento. O que tirou aquela calmaria e chamou a atenção de todos foi quando o hospital começou a ser feito longe do centro da cidade; o tamanho da construção era imponente e depois de pronto mostrou toda a sua beleza, isso foi entre 1928 a 33.
. Gegé adorava participar do corso, desfile carnavalesco onde as pessoas se fantasiavam sem exibir o corpo, e saiam pelas ruas em carros ou caminhões muito enfeitados. A presença de vários personagens era sempre marcante como, por exemplo, os arlequins e a colombina, com seu rosto suave como boneca de porcelana.
. Oficialmente, Gegé nasceu no século XX, em 1908, mas podemos entender que ela teria nascido no século XIX, uma vez que alguns historiadores classificam como “novo século” apenas o período posterior ao fim da Primeira Guerra Mundial em 1918 quando, a partir de então, terminado o terror, começou uma nova era, com mais tecnologia.
. Assim, Gegé nasceu e deu seus primeiros passos numa época marcada por grandes descobertas: Albert Einstein publicou sua Teoria da Relatividade, Santos Dumont dava a volta de avião pela Torre Eifel, o cinema que tanto apreciava espalhava-se em salas de apresentação pelo mundo todo. Foi testemunha de uma época de transição, onde o “fazer” artesanal passou rapidamente ao “fazer” tecnológico: praticamente tudo o que nós conhecemos hoje, principalmente do conforto proporcionado pelos eletro-eletrônicos, pelos recursos de comunicação, nasceram sob o seu testemunho.
. Mas sempre foi nas coisas simples que seu coração se alegrava! . . *texto originalmente publicado no livro "Um Olhar sobre Indaiatuba I", da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba.
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Notas publicadas: (1) A entrevista foi feita em 2000 e escrita em 2006. Agora, D. Gegé tem 98 anos. (2) A entrevistada refere-se ao Mal de Hansen ou Hanseníase, cujo nome popular é lepra.
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D. Gegé (in memorian) é mãe de Antonio Reginaldo Geiss.

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