quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O “quadrilátero do açúcar”

Entre 1780 e 1850 a região de Porto Feliz e Itu foi um das maiores produtoras de açúcar em São Paulo. Nessa época,  os canaviais cobriram vastas extensões de terras e o número de engenhos quase chegou à cifra de duas centenas. Do período restou um conjunto de testemunhos arquitetônicos, além de um acervo de objetos, documentos textuais e iconográficos

O naturalista alemão Gustavo Beyer, que visitou a região no verão de 1813, ficou impressionado com a presença marcante da cana de açúcar na paisagem e no cotidiano da população. Essas impressões ficaram registradas em seu diário de viagem: “Antes de chegar à cidade de Itu, o terreno é todo cultivado e todos os campos são ornados com plantações de cana e ao pé de cada rio encontram-se engenhos e alambiques, que são movidos por água”. 

E não foi somente a extensão dos canaviais e o número de engenhos que despertou a atenção de Beyer, mas também o costume muito comum dos habitantes de comer melado e mascar gomos de cana-de-açúcar: Viajando pelos arredores de Itu, é impossível não notar que toda gente de classe baixa tinha os dentes incisivos perdidos pelo uso constante da cana de açúcar, que sem cessar chupam e conservam na boca em pedaços de algumas polegadas. Quer em casa quer fora dela, não a largam e é possível que esta também seja a causa de haver aqui mais gente gorda do que em outros lugares.  A classe superior gosta igualmente de doce, pelo que recebeu o alcunha de mel do tanque, isto é, o melhor melado produzido na fabricação do açúcar. Os próprios bois e os burros também participam da mesma inclinação e encontram-se eles, tal qual seus condutores, mastigando cana”.

A indústria do açúcar no Brasil, que estava um tanto estagnada,  se beneficiou nesse período de uma situação conjuntural. A ocorrência da  desarticulação da produção açucareira nas Antilhas provocou  alta de preços e  ampliação nos mercados mundiais do produto, dando assim oportunidade ao açúcar  da colônia portuguesa. Ao conseqüente renascimento dos engenhos correspondeu também o soerguimento da economia paulista.

Na área central da Capitania de São Paulo, no chamado “quadrilátero do açúcar”, uma área formada por Mogi Guaçú, Jundiaí,  Porto Feliz e Piracicaba, concentrou-se então a maior parte da cultura e da indústria açucareira. Entusiasmados com a expansão da demanda e com a alta de preços os fazendeiros da região investiram capitais na ampliação das lavouras e fábricas de açúcar, e muitos chegaram mesmo a se afundar em dívidas para levantar novos engenhos. E os preços continuaram ajudando, pois  se elevaram progressivamente até 1799.

Entretanto, na virada do século 18 para o 19 os preços do açúcar começaram a declinar. A flutuação dos preços e a retração do mercado assustaram os fazendeiros da região.  

A  “falta de comércio” e a conseqüente baixa de preços  forçaram os vereadores da Câmara da vila de Porto Feliz, que julgavam-se “obrigados a salvar a Pátria da ruína que a ameaça”, a apelar ao Príncipe Regente D. João.  Através de ofício datado de 27 de junho de 1801 suplicaram “humildemente se digne [o Príncipe Regente] conceder aos fabricantes de açúcar e lavradores de cana  e aos seus partidistas desta capitania o privilégio de não serem executados nos pertences de suas fábricas e escravos, devendo os credores ser pagos pelos  rendimentos delas, os quais devem somente ficar obrigados à importância das dívidas, para a segurança”.

A conjuntura internacional mais uma vez veio em socorro dos fazendeiros  de Itu. A série de guerras napoleônicas na Europa provocou a retomada da cotação elevada do açúcar. Os preços declinaram um pouco somente a partir de 1830, mas mantiveram-se durante o século 19 em nível comparado ao do século anterior. Entretanto, a partir de 1850 o café tornava-se pouco a pouco no principal produto brasileiro de exportação, deslocando o açúcar para uma segunda posição. Campinas, por exemplo, que antes fora grande produtora  e que em 1839 tivera  93 engenhos e uma produção de 158.477 arrobas, já em 1854 contava com apenas 44 engenhos e uma produção de 62.290 arrobas de açúcar. Enquanto isso, cresciam suas fazendas de café. Nesse  mesmo ano já eram 177 fazendas produzindo 335.550 arrobas de café.

Em Itu, porém, o café não chegou a ultrapassar o açúcar nesse período: eram 60 fazendas produzindo  16.702 arrobas de café, contra 164 engenhos produzindo 159.070 arrobas de açúcar. Como bem demostrou a historiadora Maria Thereza Schorer Petrone, em Itu estava concentrada as maior parte da indústria açucareira de São Paulo, pois toda a Província tinha 667 fazendas de açúcar e uma produção total de 866.140 arrobas de açúcar.

J.J. von Tschuddi, nomeado embaixador no Brasil pelo Governo da Confederação Helvética, visitou  Itu na década de 1860 e deixou a seguinte observação no seu livro de viagens -  “no distrito da cidade cultiva-se  em várias fazendas a cana de açúcar, sendo algumas destas fazendas otimamente instaladas, nada ficando a dever aos melhores engenhos de Pernambuco”.

Por outro lado, os fazendeiros ituanos disseminavam a cultura da cana nas terras dos municípios ao seu redor.  A lavoura de cana de Porto Feliz dever ser considerada uma expansão da ituana -  “Gente de Itu, à procura de novas terras, levaram o interesse pela lavoura canavieira à antiga Araritaguaba induzindo, inclusive, os primitivos moradores a plantar cana”. Ao encerrar o período colonial, a antiga freguesia de Araritaguaba, juntamente com Itu e Campinas, controlava a produção de açúcar da Capitania.

Os ituanos foram também  responsáveis pela expansão dos canaviais até Piracicaba. Em 1790 o governador da Capitania de São Paulo, Bernardo José de Lorena, solicitou ao capitão-mor de Itu providencias necessárias para o povoamento das terras da então freguesia de Piracicaba. Tomadas as providências, em pouco tempo a cultura da cana se desenvolveu e oito anos depois havia um conjunto de três engenhos produzindo 700 arrobas de açúcar.

De certa forma,  a cultura da cana em Porto Feliz e Piracicaba  era resultado da falta de terras em Itu.  Já em 1784 o capitão-mor de Itu dizia – “não se acham muitos terrenos, onde possam estabelecer-se” para erigir novos engenhos. Em todo o caso, durante um bom tempo desse novo “ciclo do açúcar” as terras da  antiga povoação de Nossa Senhora da Candelária formavam a maior área produtora da Capitania e depois Província de São Paulo.

Enriquecidos, alguns  senhores-de-engenho mandavam construir sólidos e imponentes sobradões na cidade. Mas eram sobradões  que ficavam desocupados e fechados durante a maior parte do ano. O costume  era tão freqüente que chamou a atenção do naturalista Auguste Saint–Hilaire. Ele anotou em seu livro Viagem à Província de São Paulo que os proprietários só iam à cidade aos domingos, afim  de  ouvir missa, “não se podendo mesmo em rigor computá-los como elementos constituintes da população”. 

Os senhores-de-engenho ituanos permaneciam isolados em suas terras levando uma vida modesta, sem grandes atividades sociais e culturais. “De maneira geral, pode-se afirmar que não houve em São Paulo, pelo menos durante o período colonial, uma sociedade do açúcar como haveria mais tarde a sociedade do café, com suas ricas casas na cidade, temporadas na Corte...”


Engenhos e sedes de fazendas

Dos engenhos do período restaram poucas evidências. Uma idéia de como eram as fábricas de açúcar da região nos fins do século 18 e primeiras décadas do 19 pode ser inferida a partir das construções, apesar de posteriores, existentes na fazenda Vassoural  (Engenho Vassoural) em Itu.

Em Porto Feliz,  das sedes de fazendas destacam-se a da Fazenda do Moinho e o Engenho D’água. A sede da Fazenda Engenho D’água foi construída em 1858, quando era seu proprietário Antônio Paula Leite de Barros. A denominação da fazenda se deve à existência, naquela altura, de um pequeno engenho tocado à água.  O proprietário era um grande plantador de cana-de-açúcar e   foi um dos acionistas da Companhia Açucareira de Porto Feliz, empresa que em 1878 colocou em funcionamento o Engenho Central de Porto Feliz.

O casarão de grandes dimensões  apresenta uma pavimento inferior, que acompanha toda a extensão da construção. Esse pavimento inferior, com piso de terra batida,  era usado como depósito de mantimentos, ferramentas, utensílios  agrícolas, e arreios. (1)

A parte superior, com assoalho de madeira,  era o espaço da moradia isolada. Uma grande sala central de entrada, a chamada “sala da frente”,  própria das casas do tempo do açúcar,  dava acesso aos dormitórios e locais de serviço doméstico, incluindo a cozinha. Uma parcela das atividades de preparação dos alimentos era realizada fora da casa, em um puxado pegado à casa e munido de fogão e forno e aparelhagem para o fabrico de farinha de milho ou de mandioca. 

Nos locais de serviço doméstico se fazia o queijo e se guardava os gêneros. A cozinha era uma vasta dependência, provida de fogões, grandes mesas, pilões, potes de água, tachos de cobre.

No centro da planta, as alcovas. Antigamente denominadas “camarinhas”, as alcovas foram aperfeiçoadas e profusamente adotadas do século 18 em diante, principalmente nas casas urbanas. Mas, verdadeiro contra-senso, foram adotadas na roça, onde não havia problemas de espaço. A tradição identifica  as alcovas como o lugar ideal de dormir, onde o recato e a segurança se aliavam salvaguardando a intimidade. Eram cubículos estanques sem ar e luz diretos, onde as lamparinas dos oratórios e candeias a óleo de algodão se encarregavam de aquecer e viciar a atmosfera enclausurada, como afirmou o arquiteto Carlos Lemos em estudo sobre a arquitetura tradicional paulista.

Olhando do lado externo,  o casarão apresenta fachadas simétricas, com todas as janelas e porta alinhadas. A fachada principal apresenta três janelas de um lado e quatro do outro, e uma ornamentação simples, de forma a permitir diferenciá-la das demais fachadas. A escada de acesso  ao pavimento superior sobe paralela à sua fachada principal, levando a uma porta de entrada no meio da construção.

Com o passar do tempo o casarão sofreu diversas intervenções, que modificaram a distribuição e o uso dos cômodos internos. A senzala, próxima da construção principal, cedeu espaço às pequenas casas de colonos. As “casinhas”,  privadas masculina e feminina que não tinham sistema de esgoto, e  o primitivo moinho, o “engenho d’água”, desapareceram. Durante algum tempo a fazenda Engenho D’água forneceu cana ao Engenho Central. Mais adiante suas terras e a sede foram incorporadas à Société de Sucrèries Bresiliennes,  com sede em Paris, que adquiriu o antigo Engenho Central e o transformou em moderna usina de açúcar. 

Atualmente, a velha sede da Engenho D’água, exemplar típico da arquitetura do açúcar na bacia do rio Tietê, pertence à União São Paulo. Trata-se de construção que merece ser preservada  por seu valor arquitetônico (um dos poucos exemplares remanescentes da arquitetura do açúcar em nossa região) e histórico (testemunho arquitetônico de um período da formação social, cultural e econômica Porto Feliz). Além disso, é um referencial simbólico da cidade do mais alto significado. Quem em Porto Feliz não se vale do Engenho D’água como ponto de referência (de orientação geográfica, de recordação sentimental, de “estilo de casa”, de indicação de local de trabalho etc.)

O levantamento exaustivo   das arquiteturas do açúcar na região foi realizado pelo arquiteto Júlio Roberto Katinsky, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo,  dentro de um projeto       de identificação dos remanescentes de engenhos de açúcar da primeira fase da instalação dessa indústria no planalto paulista. O levantamento identificou os alambiques em torno de Cabreúva e as fazendas em torno de Itu e Porto Feliz e Salto, nas margens direita e esquerda do Tietê.


O sistema de engenho-central

Na primeira metade do século 19, um século de tantas novidades tecnológicas,  há de se notar que a cultura da cana e o fabrico do açúcar na região, bem como no resto do país,  ainda se processavam com base em técnicas antiquadas. Tanto assim que o uso do arado na fazenda do Marques de Monte Alegre,  nas proximidades de Capivari,  despertou a atenção de J. J. von Tschuddi. Ao registrar o fato no seu diário de viagem, justificou  sua menção “porque este instrumento agrícola é quase desconhecido em toda a Província, embora a configuração do terreno se preste muito bem a seu uso”.  

Apesar dessa observação, cabe lembrar que o marechal Pedro Daniel Muller faz referência ao uso do arado nas proximidades das vilas de Porto Feliz, Itu e São Carlos [Campinas] no Quadro Estatístico da Província de São Paulo , relativo a 1836/1837.  Outro viajante da  segunda metade do século 19, Augusto Emílio Zaluar,  enxergou um estado de decadência em Porto Feliz naquele tempo. Segundo ele, existia um conjunto de circunstâncias favoráveis ao progresso do povoado: clima ameno e sadio e fertilidade do terreno, bom para o cultivo de café, cana-de-açúcar, chá e fumo. Zaluar entendeu a decadência do lugar como resultado da falta de trabalhadores na lavoura e em decorrência do estabelecimento de uma nova rota para as monções cuiabanas, que no século 18 partiam do antigo porto de Araritaguaba. A população de Porto Feliz, que na primeira metade do século 19 chegara a 11.000 habitantes, em 1860 estava reduzida a 7.000 habitantes, divididos em 5.000 livres e 2.000 escravos. O comércio nessa mesma época era insignificante, segundo Zaluar: algumas tabernas e umas poucas lojas de fazendas e armazéns.

Na área do fabrico é interessante  ressaltar a iniciativa de João Tibiriçá Piratininga, que por volta de 1850  encomendou na Europa um moderno equipamento destinado à fábrica de açúcar da sua fazenda em Indaiatuba. Porém, não se tem notícia dos resultados da sua experiência, nem mesmo se de fato ela foi efetivada.

Produzido assim com técnicas ultrapassadas, o açúcar brasileiro não era páreo para o açúcar porto-riquenho, cubano  ou filipino no mercado norte-americano e muito menos para  o açúcar de beterraba nos mercados europeus. 

Chegou-se a conclusão que era impraticável a continuidade do velho sistema de engenhos isolados. Surgiu então a proposta renovadora do sistema de engenhos centrais. Nesse sistema,  o engenho-central deveria ser uma grande unidade de produção, separada da área agrícola e equipada com maquinaria moderna, e dentro da fábrica  deveria ser proibida a exploração do trabalho escravo. O sistema de engenho-central respondia a necessidade de adaptação da fabricação do açúcar  à passagem do trabalho escravo ao trabalho livre. 

O seu aparecimento revolucionou os meios de produção e promoveu o uso de estradas-de-ferro, com a substituição do transporte animal pelo transporte à vapor. O primeiro a ser implantado no Brasil foi o Engenho Central de Quiçamã, no município de Macaé, Rio de Janeiro. Por sua vez, o primeiro da então província de São Paulo foi o Engenho Central de Porto Feliz, que foi inaugurado a 28 de outubro de 1878.

O projeto e a construção do Engenho Central de Porto Feliz coube à Companhia Açucareira de Porto Feliz, uma sociedade organizada por Joaquim Carlos Travassos, Bernardo Avelino Gavião Peixoto, Augusto Fomm, José Manuel de Arruda Alvim, Luís Antônio de Carvalho, Delfino Antônio de Carvalho e Antônio de Paula Leite de Barros.  

O grande edifício do novo engenho tinha a forma de cruz, sendo cada asa apropriada a uma fase da produção do açúcar, como às moendas e às casas de caldeira, purgar e destilar. Essa planta em cruz teve uma certa aceitação em várias regiões açucareiras. Ruy Gama, estudioso da arquitetura e tecnologia do açúcar, alertou para o fato de a planta adotada ser uma planta internacionalizada, como o são as máquinas e aparelhos do engenho. Mas parece ser a última das plantas propostas para o engenho, “permitindo que o proprietário, postado na intersecção dos braços da cruz, vigiasse pessoalmente todos os trabalhos”, como grifou Ruy Gama,  inspirado em Michel Foucault , de Vigiar e punir. 

O Engenho Central de Porto Feliz foi absorvido em 1907 e totalmente remodelado pela Société de Sucrèries Bresiliennes. A nova usina resultante dessa intervenção produziu açúcar e álcool  até 1991, ano no qual foram encerradas suas atividades mais que centenárias.  As imponentes ruínas que se vêem hoje, às margens do Tietê, pouco tem a ver com a construção pioneira de 1878.

Jonas Soares de Souza
Museu Paulista  -  USP

(1) Como tem no Casarão Pau-Preto em Indaiatuba

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