terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Os Caminhos da Escola

texto de Deize Clotildes Barnabé de Morais*



Em Indaiatuba, como na maioria das pequenas vilas do Brasil, a escola pública, como local separado do lar onde as crianças são ensinadas por professores contratados pelo Estado, teve início em meados do século XIX. Os curtos espaços entre a residência e a escola eram percorridos a pé, em bandos. Não raro às meninas não se exigia que fossem à escola. Às mulheres era reservado um papel social que prescindia das letras e matemáticas.

Os filhos e filhas de famílias abastadas eram educados em colégios religiosos, onde a criança e o adolescente ficavam internados durante grande parte do ano, só vindo para casa nas férias. Percorriam corredores, capelas, escadarias e porões. Vez ou outra um mirante permitia que se lhe alargasse um pouco a vista, para além dos muros do internato.

Quando os primeiros imigrantes italianos e alemães chegaram a Indaiatuba, alguns poucos se instalaram na vila, os demais nas fazendas de café. A exceção foram os suíços, que se instalaram na “colônia” Helvetia, em terras próprias, com escola mantida às suas próprias expensas.

Os que fixaram residência na vila, dedicavam-se a trabalhos de poceiro, construção civil e um ou outro pequeno comércio.

Eram as últimas décadas do Século XIX.

A absoluta maioria instalou-se nas fazendas de café, literalmente substituindo a mão de obra escrava. O próprio regime de trabalho não se diferenciava em quase nada da escravidão: não tinham contrato, paga ou regalia. Era comum a figura do feitor a dirigir os trabalhos, com o chicote como ferramenta de persuasão. Contam os antigos que algumas fazendas tinham ainda escravos, a quem não se contara que estavam libertos!

As casas das colônias, geralmente feitas de pedra ou “barrote”, eram o mais simples que se possa imaginar: ao rés do chão, portas e janelas de madeira rústica, chão de terra batida, paredes internas que não chegavam ao teto de telhas vãs (a meia-parede), fogão a lenha.

Havia, porém um diferencial importante. Muitas famílias de imigrantes trouxeram consigo um professor, o “maestro”. Ele também um imigrante, morando nas mesmas condições e trabalhando, durante grande parte do dia, na própria lavoura. As crianças freqüentavam a casa do “maestro”, que servia de escola. O caminho era curto. A influência do mestre bastante longa. Ele tinha total controle sobre as crianças. Com a absoluta e irrestrita confiança dos pais. Os castigos corporais, freqüentes, faziam parte daquela pedagogia íntima e familiar. Nada, porém, abalava a ascendência moral e intelectual do “maestro”.

Com o passar dos anos, as famílias foram se organizando melhor, as condições do trabalho se modernizando, dando margem a que os trabalhadores fossem remunerados e também pudessem vender seu trabalho nos dias de folga, como carroceiros, pedreiros, poceiros, etc.

Até mesmo, algum pedaço de terra das fazendas foi cedido a eles, para que cuidassem de lavoura “a meia”, ou por conta própria. Com essas “regalias”, muitas famílias puderam ter seu próprio dinheiro e por volta do final do século XIX e começo do XX, era comum que comprassem sítios, pequenas fazendas e veículos próprios. Mesmo deixando a situação de colonos, mantinham relações estreitas com o maestro, já bem idoso então. As crianças caminhavam às vezes longas distâncias até sua casa para ter algumas aulas com ele. Eram alfabetizadas em italiano ou alemão, embora falassem português no dia a dia.

Os últimos filhos e os netos desses imigrantes já nasceram nessas terras próprias, integrados à comunidade, sem a presença do maestro e freqüentando as escolas da vila de Indaiatuba, de Mato Dentro ou Itaici. O caminho era longo e percorrido a pé, em bandos. A estrada era freqüëntemente deserta e poeirenta. Os mais velhos cuidavam dos mais novos. A escola era geralmente formada de uma única classe, onde a professora ministrava aulas até à terceira série, ao mesmo tempo para todas as turmas. A quarta série era ministrada somente na vila. Era freqüente que as meninas, por não serem admitidas no trabalho da roça muito novas, freqüentassem a escola por mais alguns anos, mesmo tendo concluído a terceira série. Aprendiam a bordar, fazer crochê e tricô e ajudavam a professora no trabalho com os mais novos, apagando a lousa, escrevendo textos a serem copiados e corrigindo os cadernos. Limpavam a classe e buscavam água no poço. Sobretudo acompanhavam os irmãos menores pela estrada, para evitar que fossem maltratados pelos maiores! Alguns, poucos, filhos de famílias mais abastadas, se aventuravam a pegar o trem e ir a Itu fazer o preparatório e depois o ginásio. O dia todo, desde a madrugada, era gasto nesse mister. Eram já considerados adultos, mesmo que tivessem doze ou treze anos. Vestiam ternos impecáveis de linho, que, muitas vezes chegavam queimados com as faíscas da máquina a vapor dos trens. Eram então cuidadosamente cerzidos a mão, para durar até que o rapaz crescesse! Às meninas não se permitia fazer esse percurso de trem, sozinhas. As que pudessem ou quisessem muito continuar os estudos, deveriam ficar internas em colégios de freiras. Aquelas cujas famílias não tinham alto poder aquisitivo, freqüentemente eram admitidas como bolsistas, fazendo no colégio, trabalhos os mais diversos para pagar seus estudos. Era uma vida dura e sem nenhum tipo de regalia.

Com a urbanização do município, as famílias foram se mudando para a cidade e suas vidas adquirindo o ritmo e os costumes do centro urbano. Mesmo assim, como só havia um grupo escolar, os caminhos eram longos. As ruas de terra e empoeiradas eram percorridas a pé ou de bicicleta. Das janelas ou portões, as mães e vizinhas vigiavam a passagem da criançada. Não fossem elas apanhar alguma rosa ou outra flor para levar para a professora! Ou, pecado dos pecados, tirarem algum naco do pão ou um gole do leite colocados na janela pelo padeiro e leiteiro e inadvertidamente ainda não retirados por algum morador “preguiçoso” que se levantasse mais tarde! Era a forma de a comunidade controlar a infância pelos caminhos da urbe!

As crianças que morassem nos bairros afastados por onde passava o trem, Itaici, Helvetia, Pimenta e Cardeal, usavam esse meio de transporte para vir a Indaiatuba fazer a quarta série ou, posteriormente, o curso ginasial. O trem era uma aventura diária. Os horários eram poucos e nem sempre cumpridos pontualmente. Chegavam à estação e ainda tinham que percorrer as ruas até à escola, agora já com os colegas da cidade que os esperavam. Muitos namoros começaram e terminaram no trem. Outros viraram casamentos duradouros.

Só em 1950 foi criado o curso ginasial no município. Instalado junto ao grupo escolar, os caminhos eram os mesmos. Quem quisesse continuar os estudos no nível médio ainda tinha que ir a Itu ou Campinas. Agora, de ônibus, embora as estradas ainda fossem de terra.

Para Itu ia grande parte dos estudantes: as mulheres em sua maioria fazer o “Normal” e os homens o “Científico” ou “Clássico”, que eram as denominações para os cursos médios da época. O curso Normal formava Professores Primários, o Científico era destinado aos adolescentes que quisessem fazer um curso superior na área de ciências exatas e biológicas e o Clássico para quem quisesse cursar o nível superior na área de letras ou ciências humanas. O Normal era pela manhã e os demais à tarde. Havia um ônibus, adquirido pela Prefeitura, muito velho e pintado de amarelo, que levava os estudantes para Itu. Era o famoso “Amarelinho”, que deixou de circular por volta de 1963, de irrecuperável que estava! A maioria das vezes parava no caminho, o motorista descia e como mecânico especialista (de ônibus amarelinho, evidentemente!), fazia-o funcionar de qualquer forma, mesmo que fosse aos empurrões!

- Agora... Vamos... Aí... Aí... Depressa, subam, senão morre outra vez...

E lá iam todos, em meio à poeira e buracos, mais uma vez chegando atrasados na aula! Com a roupa cheia de poeira e os cabelos... Ah, os cabelos! O ônibus era famoso em Itu. Passava pelas ruas centrais fazendo muito barulho e soltando fumaça. As moças do Normal, “lindas”, como diziam os rapazes, com a cabeça para fora, vendo e sendo vistas. Era uma festa. Às vezes mal interpretada pelas senhoras ituanas que, às janelas, torciam o nariz para “aquelas ali”!

Com o fim do amarelinho, as famílias tiveram que arcar com o transporte intermunicipal para Itu, nos ônibus de carreira. Havia somente três horários para lá: de manhãzinha, no meio do dia e ao anoitecer. Nesse período, com a dificuldade dos horários, recursos financeiros parcos e principalmente o desejo adolescente de aventurar-se e quebrar regras, desenvolveu-se um método muito econômico, no entendimento dos alunos evidentemente, de voltar da escola: pedir “carona”. O próprio termo pode ter se originado aí. Era necessário ter-se uma “cara bem grande” para fazer uso desse transporte! As meninas e meninos desciam em bando, do Colégio para a beira da ponte que separava o centro urbano de Itu da estrada para Salto, caminho único para Indaiatuba. Era necessário que se apressassem, para não correr o risco de, ao não conseguir a carona, perderem também o ônibus regular, o que seria uma catástrofe! Imaginem moças de boa família chegando à casa ao entardecer, quando seu horário habitual era, no máximo, às 14 horas! Os “caronistas” tinham regras e técnicas infalíveis de conseguir o transporte: as meninas ficavam à beira da estrada, levantando o braço para os carros que passassem (qualquer um servia, desde que viesse para Indaiatuba, por causa do horário), os rapazes ficavam escondidos embaixo da ponte, para não serem vistos da estrada e assim enganarem os motoristas que porventura quisessem dar carona só para as meninas. Ao parar o carro, imediatamente os rapazes pulavam na estrada e subiam primeiro, reservando os lugares, atrás, para as meninas. Era a forma de protegê-las do possível assédio. Algumas vezes o motorista, irritado com o estratagema, acelerava o carro e deixava a todos a ver navios...

As regras eram rígidas: não se pegava carona sozinho, nem quando no carro houvesse mais de um homem. As meninas que tinham namorado também estavam impedidas de usar esse meio de transporte. Quando, porventura, o ônibus passasse antes de a turma haver conseguido a carona, todos subiam, afogueados e “com o rabo entre as pernas”, sob as vaias dos que não admitiam essas “sem-vergonhices”. Outros tempos...

Com o passar do tempo, as estradas foram sendo asfaltadas, o transporte freqüente, os cursos foram se instalando em Indaiatuba, que foi, cada vez mais, incorporando-se à metrópole. Hoje o acesso a Campinas e Itu pouco se diferencia do acesso aos bairros da própria cidade.

Os estudantes têm transporte garantido, seguro, mas possivelmente, menos interessante. As dificuldades são outras...



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* Originalmente publicando no livro "Um Olhar sobre Indaiatuba" (1), da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba

Um comentário:

  1. Em meados do século XX, a residência onde hoje moro, na Alameda Barão do Rio Branco em Itu era a residência de meu avô Francisco Pereira Mota, que oriundo de Cabreúva fazia desta casa um recanto onde vários jovens daquela terra ficavam alojados enquanto estudavam por aqui.

    Os garotos eram tratados por minha avó como se fossem seus filhos e a casa sempre foi por isso um lugar cheio de vida.

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