Texto de Sérgio Mateus Squilanti
Encontrei-me
com Acrísio de Camargo num sonho; desde adolescente, na década de 1960, ao
cantar o hino indaiatubano nas aulas de Música e nas comemorações cívicas do
então Colégio Estadual Dom José de Camargo Barros, eu o procurava.
“Alma
Sombria”. Por que o poeta assim definia a alma da cidade, na letra do hino composto
em parceria com Nabor Pires de Camargo, responsável pela melodia? Eu não tinha alma
sombria, nem meus colegas. Muito menos a cidade; verdadeiro ou falso, conhecida
pela alta incidência de raios ultravioleta e irradiação solar elevada. Iluminação
aqui não faltava. “Nosso sol tem calor de amizade”, definiria um slogan da
prefeitura municipal, na década de 1980.
Quando
me deparei mais diretamente com a letra do hino indaiatubano, aos 16 anos de
idade, a época era de Alegria-Alegria, festivais de música popular brasileira, passeatas,
contestações ao regime militar. Efervescência social que varria o país de ponta
a ponta, aqui também replicada. O município iniciava um ciclo acelerado de desenvolvimento
econômico, com a instalação de multinacionais que nos tornaram conhecidos
mundialmente.
Mas,
ao cantarmos o hino indaiatubano, éramos lembrados do tipo de alma que tínhamos:
sombria, lúgubre, triste, melancólica, carrancuda, obscura, nublada, sinistra, tenebrosa,
macabra e todos os demais sinônimos pejorativos disponíveis no Google.
Eu
não me conformava com essa definição, e, quando algo me incomoda, mexe comigo, e
me dou conta de que não posso fazer nada para alterar o que me contraria, eu
sonho. Meus sonhos são sempre longos e demorados; tenho pilhas de cadernos onde
eu os anoto há décadas. A maior parte deles é indecifrável. Mas, como adiante veremos,
este não foi o caso.
O
sonho está anotado em um dos meus cadernos mais antigos. Relata o dia em que me
encontrei com Acrísio de Camargo: 9 de dezembro de 1930, aniversário da cidade,
dia da inauguração do monolito comemorativo ao centenário de elevação de Indaiatuba
a Distrito de Paz da Jurisdição de Itu, quando o hino indaiatubano seria
executado em público pela primeira vez.
Um
dia de festa, promovido pelo legendário prefeito Major Alfredo Fonseca, que
governava a cidade há 25 anos, e que deixaria o cargo no ano seguinte,
retornando à prefeitura quatro anos depois.
Encontrei-me
com Acrísio às quatro e meia da manhã no Largo da Matriz e, ainda sonolentos,
juntos, ouvimos emocionados a Corporação Musical Sete de Setembro entoar a
Alvorada, seguida de uma salva de vinte e um tiros, que além de espantar o sono,
afugentou todas as pombas e passarinhos das torres da igreja e das imediações.
Perambulamos
pelas ruas contíguas à igreja matriz Nossa Senhora da Candelária, conversando
com muitas pessoas que, apesar do horário, marcavam presença, curiosas com os
festejos, e, alegres, cumprimentavam Acrísio; algumas solicitando receitas de
remédios, por exercer ele, na cidade, a profissão de farmacêutico.
Às
seis horas da manhã, dirigimo-nos até o Paço Municipal, no centro da praça
central da cidade, para reverenciar o hasteamento do pavilhão nacional. Às dez
horas, a manhã foi encerrada com uma solene missa campal que, contritos, acompanhamos
e, ao final, até comungamos.
Vocês
sabem que nos sonhos tudo é permitido, e, no meu, Acrísio era católico, assim
como eu. Atualmente sou bem mais eclético.
Apesar
de toda essa intimidade, talvez por ainda não conhecer a letra do hino
indaiatubano, que só seria entoado ao meio-dia, no mesmo Largo da Matriz, por um
coro de senhoritas, não abordei o poeta sobre a razão da alma sombria do
município, mesmo porque nada indicava que esse estigma pairasse sobre as
cabeças dos indaiatubanos, principalmente naquela data, uma vez que o próprio
poeta era bastante alegre e divertido, o que se confirmou à noite, no salão do
Cine Internacional, ao som da animadíssima Jazz Band, quando o agora meu amigo
comprovou que além de poeta e farmacêutico era um ótimo bailarino, disputado
pelas moçoilas presentes.
Acrísio
estava sempre bem vestido, elegante e jovial em seu terno listrado, cabelos
engomados, como era moda; apenas 31 anos de idade. Embora não fosse indaiatubano,
pois nascera em Jundiaí, mas por ser poeta conhecido e admirado, morasse e
trabalhasse em Indaiatuba, fora convidado a escrever a letra da mais importante
peça cívica-musical do município, que a partir do auspicioso 9 de dezembro de
1930, e pelos 95 anos seguintes, seria cantada e recantada por dezenas de milhares
de vozes, de todas as idades e gerações, nas escolas, em comemorações oficiais
e em praça pública, apesar de nossa alma sombria.
Depois
do baile e de algumas doses a mais de bebida, de madrugada, quando cada um retornava
à própria casa, criei coragem e questionei o poeta sobre porque qualificar a
alma da cidade de forma tão negativa e se ele concordaria em reescrever a letra
do hino indaiatubano ou admitir que alguém, um vereador ou prefeito, propusesse
a substituição do termo por um outro mais adequado à realidade.
Ele
estranhou, surpreendeu-se, pois, para ele, “sombria” não tinha a mesma
conotação que para mim. Encarava como um termo romântico, típico do final do
século XIX e das primeiras décadas do século XX, quando pululavam canções,
poemas e romances, com características lúgubres semelhantes, a exemplo de A
Dama das Camélias” ou da modinha Perdão Emília, e da épica Coração Materno, canção
em que o filho mata a própria mãe para, a pedido da amante, arrancar do peito da
genitora o pulsante coração que, mesmo
assim, o perdoa, imortalizada na voz de Vicente Celestino, entre tantos outros romances,
poemas e composições no mesmo estilo “melancólico”, “sombrio”, para dizer o
mínimo.
-
Sombrio, mas com “encanto e poesia”, contestou Acrísio. - E você se esqueceu da
sequência: “E parece sorrir o seu claro infinito, a pensar: Indaiatuba sem par”,
acrescentou o poeta com um sorriso compreensivo, recitando versos do hino
indaiatubano.
Foi
nesse momento que ele e eu nos demos conta de que éramos de épocas distintas. Passado
e futuro se confrontando, separados por dezenas de décadas, postados em
arcabouços históricos radicalmente diferenciados ou mesmo antagônicos.
-
Você veio do futuro para reclamar da minha poesia? Propor que a letra do hino
que compus seja reescrita?
Ainda
que me sentindo um espião, com a identidade revelada, fiquei tentado a dizer:
sim! “Campo florente, tão vasto e bonito”, onde? Já nem tem mais campo na
cidade, é só condomínio, e avenidas asfaltadas, eu ia argumentar, mas me dei
conta que, em 1930, com pouco mais que 5 mil habitantes, Indaiatuba, de fato,
poderia ser considerada um “ninho”, e para o poeta, “de amor caro e gentil”.
Os
indaiás, que cobriam extensas áreas da cidade, aos quais ela deve o nome, só
seriam totalmente exterminados muitas décadas à frente. À época da composição
da letra do hino indaiatubano, quando Acrísio tinha apenas 31 anos de idade, podiam,
de fato, compor, juntamente com outras espécies nativas, um campo florente,
vasto e bonito, numa cidade com pouquíssimas edificações.
Atualmente,
não restou quase nenhuma palmeira indaiá, o que não seria motivo para mudar o
nome da cidade, ou seria? Tuba (muito, em tupi-guarani). Indaiá, a referida
palmeira de porte baixo, produtora de cachos de coquinhos. Em resumo: muito
indaiá (que já não há mais por aqui).
“Com
seu ar e seu clima, és uma rosa no mais lindo recanto do Brasil”. Outro verso do
referido hino que me passou pela cabeça contestar. O ar em Indaiatuba ainda é
bastante respirável, comparei e admiti, mas o clima, como em todo planeta, está
em colapso, e no verão, aqui ou alhures, é de sofrer. Porém, olhando a Indaiatuba
da época, pelos olhos inspirados do então jovem poeta, não tinha como contestar
seus versos: “ó terra querida e venturosa”, ainda que autonomear-se “o recanto
mais lindo do Brasil” seja um certo exagero, se comparado com outros recantos
do país; mas o elogio passa como licença poética para quem coube a
responsabilidade definir a cidade, há quase um século atrás, na letra do hino a
ela dedicado.
“Berço feito de sonhos e de amor... os teus
filhos te saúdam com ardor”.
Não há como não amar
Acrísio de Camargo, embora o conheçamos tão pouco, ou, basicamente pela letra
do hino indaiatubano.
E,
depois de estar com ele e de tanta discordância e questionamentos, acordei resignado
e convicto de que, afinal, alma sombria é melhor do que não ter alma alguma, e
que dá até para engatar, ainda que forçando um pouco a barra, um cunho sonhador
nos sombrios, cheios de encanto e poesia, como eu, ou como você.
Hino
de Indaiatuba - SP
Salve, ó terra querida e
venturosa,
Santo ninho de amor caro e gentil,
Com teu ar e teu clima és uma rosa
No mais lindo recanto do Brasil.
Salve, ó Berço querido
onde nasci,
Berço feito de sonhos e de amor...
Hoje em festa, a cantar, pensando em ti,
Os teus filhos te saúdam com ardor.
O teu campo florente é
tão vasto e bonito!
E tua alma sombria
Tem encanto e poesia!
E parece sorrir o teu claro infinito,
A pensar
Indaiatuba sem par.
