terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Os fora da lei

  Eliana Belo Silva


Perguntei ao ChatGPT qual é o conceito de "foras da lei" e a resposta foi bem dura: "os fora da lei" (plural de fora da lei) é uma expressão usada para designar pessoas que vivem à margem da lei, praticando atos ilegais ou criminosos, geralmente sem obedecer às normas jurídicas e sociais estabelecidas". E ainda complementou: "são indivíduos que não se submetem às regras legais, vivendo em desacordo com a justiça e a ordem; pessoas consideradas criminosas, marginais ou proscritas."

Julguei o uso desses conceitos muito arriscados para o fim ao qual este texto se destina, a não ser a parte - mais suavizada - que afirma que "são pessoas que vivem sem obedecer às normas jurídicas e sociais estabelecidas". Mas a decisão (ou não) da aplicação deixarei por conta dos leitores, ainda mais por conta da romantização do termo, que acabou tomando qualificações de heróis - a partir de certos pressupostos. Vejamos.


1. HISTÓRICO

A expressão vem da ideia de alguém que foi expulso da proteção da lei. Na Idade Média europeia, especialmente na Inglaterra, existia a figura jurídica do outlaw (literalmente “fora da lei”). Quando alguém era declarado outlawed, perdia seus direitos civis e jurídicos: podia ser perseguido, preso ou até morto sem que isso fosse considerado crime, já que não estava mais sob a proteção da lei.

Esse conceito se espalhou para outros contextos culturais, mas associado a pessoas que desafiam a ordem ou vivem à margem da legalidade, como por exemplo, na própria cultura brasileira, quando consideramos que os cangaceiros podem ser definidos, ao mesmo tempo, como criminosos e símbolos da resistência ao coronelismo. Isso vale para os filmes de faroeste, aonde “foras da lei” eram personagens centrais, ora temidos, ora valorados como rebeldes contra a ordem. Atualmente, os personagens de HQs, livros e filmes são admirados justamente por isso: por serem inimigos da polícia e da moral estabelecida, sendo retratados como anti-heróis com seu próprio código de ética e poder.  Afinal, tudo se resume a isso: ao poder.


2. A HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE - Câmara Municipal de Indaiatuba


2.1. TEORIA

O Prefeito é — e exerce — o Poder Executivo.

Os vereadores são — e exercem — o Poder Legislativo.

Ambos estão submetidos à lei. O exercício do poder não os exime do dever de cumpri-la.

Ponto.

No âmbito do Poder Legislativo municipal, os vereadores possuem, entre suas atribuições essenciais, o dever constitucional de fiscalizar o Poder Executivo. Trata-se de uma função estruturante da democracia e indispensável ao equilíbrio entre os poderes. Cabe a cada vereador acompanhar, de forma técnica, crítica e responsável, os atos do Executivo, verificando não apenas a execução orçamentária e administrativa, mas, sobretudo, se as leis aprovadas pela Câmara Municipal estão sendo efetivamente aplicadas.

Essa atuação fiscalizatória é o que impede que as leis se reduzam a meros enunciados formais. Quando bem exercida, transforma normas em instrumentos concretos de política pública, assegura a correta aplicação dos recursos públicos, previne abusos de poder, promove transparência e fortalece a confiança da sociedade na gestão municipal.

Fiscalizar não é opção. É dever.


2.2. PRÁTICA  ATUAL

Nesse contexto, os dados da Câmara Municipal de Indaiatuba são eloquentes. Foram apresentadas 3.378 Indicações no ano de 2025, das quais 32 tinham por objeto explícito solicitar ao Prefeito que cumprisse leis já existentes. Trata-se de um indicador inequívoco de que parte significativa da atuação parlamentar tem se concentrado não na criação de novas normas, mas na cobrança da aplicação da legislação vigente. Ao cumprir sua obrigação institucional, um conjunto de vereadores — inclusive integrantes da base de apoio ao Chefe do Executivo — tem cobrado de forma aberta, reiterada e pública, por meio de Indicações formalmente apresentadas e defendidas no púlpito da Câmara, que o Poder Executivo observe e execute as leis aprovadas. 

Esse quadro, contudo, revela uma distorção institucional que não pode ser ignorada. Há algo estruturalmente errado quando vereadores da base de apoio do Prefeito precisam recorrer reiteradamente à Indicações para pedir que o Chefe do Executivo, pertencente ao mesmo grupo político, cumpra ou faça cumprir leis já aprovadas. Em um ambiente de normalidade administrativa, a aplicação da legislação vigente deveria ser um ato automático do Executivo, especialmente quando há alinhamento político entre os poderes. Quando a cobrança parte da própria base governista, evidencia-se um problema de gestão, de prioridade política ou de respeito à legalidade, transformando o que deveria ser rotina administrativa em objeto de pressão pública. Esse cenário fragiliza a governança, expõe falhas na articulação institucional e reforça a necessidade de uma fiscalização ainda mais firme, não como gesto de oposição, mas como exigência mínima do tão falado Estado de Direito.


2.3. PRÁTICA HISTÓRICA

Neste cenário confirmado por números, é indispensável recorrer à História como chave interpretativa do presente e neste sentido, acompanhei todas as seções desta legislatura de 2025 para registra a prática, o fazer da História em tempo real.

A História é a mãe de todas as ciências: é dela que tudo advém, a partir de suas permanências e transformações — que nem sempre podem ser confundidas com evolução — e de seu motor fundamental, a luta de classes. Enquanto ciência e enquanto guardiã da memória, a História revela a microfísica do poder ao expor os mecanismos sutis, as engrenagens ocultas e as relações assimétricas que moldam a vida social e política


Ao iluminar aquilo que se tenta naturalizar ou silenciar, a História rompe narrativas convenientes, desvela conflitos encobertos e permite compreender por que determinadas práticas institucionais se repetem, mesmo quando contrariam  os conchavos de um mesmo grupo político, a legalidade e o mais importante: interesse público. Vejamos:


  • O primeiro dessa Legislatura a pedir que o prefeito - então recém-empossado - cumprisse a lei foi o Vereador Alexandre Peres que, em 06 de janeiro, protocolou a primeira Indicação do ano, pedindo para intensificar a fiscalização acerca da Lei nº 7.306/2020, que proíbe a fabricação, posse e utilização de cerol, linha chilena, linha indonésia e outras linhas cortantes no município.
  • Hélio Ribeiro pediu a aplicação da Lei 7678, de 08 de outubro de 2021 na Indicação 23/2025, solicitando que a placa de identificação da EMEB Parque das Nações fosse substituída pelo nome de  EMEB Leonardo Braz Zuppa.
  • Também foi do vereador Hélio Ribeiro a terceira matéria protocolada, que pediu, na Indicação 24/2025, a inclusão do símbolo mundial do autismo nas placas de atendimento prioritário nos estabelecimentos do município, conforme disposição da Lei 6.739 de 03 de julho de 2017.
  • O vereador Du Tonin da Oposição, protocolou, ainda em janeiro antes da primeira Sessão Plenária, a matéria 42/2025 - mas com um agravante: solicita que o prefeito cumpra duas leis federais, as de nº 14.851/2024 e nº 14.685/2023, referentes ao levantamento e divulgação da demanda por vagas na educação infantil e à lista de espera na educação básica. Até o momento, oito meses depois, a Secretaria da Educação ainda não aplicou.
  • Em 10 de fevereiro, foi a vez do vereador Othniel Harfuch pedir o cumprimento da Lei nº 5478/2008 que exige a fiscalização acerca da circulação de veículos automotores pesados, do tipo caminhão, através da Indicação 87/2025.
  • Em 14 de fevereiro o vereador Prof. Sérgio foi o primeiro desta Legislatura a chamar a atenção para os semáforos, que é um dos assuntos mais presentes nas reclamações dos indaiatubanos atualmente. O vereador pediu, através da Indicação 138/20025 que esse equipamentos da cidade fossem regulados conforme O Código de Trânsito Brasileiro. Não, isso não é piada nem ironia da página: um vereador teve que pedir para a Prefeitura cumprir uma Lei de 1997!
  • Em 25 de fevereiro, a vereadora Clélia dos Santos com menos de dois meses de mandato, já sugere, através de sua Indicação 256/2025 que o prefeito cumpra a Lei Federal nº 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica.  
  • No dia seguinte, 26 de fevereiro a mesma vereadora pede, em Indicação, para que o prefeito cumpra a Lei Estadual  nº 17.949/24, que assegura a oferta de leito ou ala separada para as mães de natimorto e/ou mães com óbito fetal, nas redes pública e privada de saúde. A nova vereadora e única representante do gênero feminino aprendeu rápido.
  • Em 27 de fevereiro, o vereador Leandro Pinto pede para o Prefeito asfaltar o  bairro Recanto/Recreio Campestre Internacional Viracopos, conforme Lei Nº 8225/2024, aprovada pela Câmara. Nessa Indicação, o vereador ainda justifica que o asfaltamento foi prometido pelo ex-prefeito e prefeito.
  • O vereador Du Tonin pediu, em 12 de março, para a prefeitura fiscalizar e solucionar os problemas de sujeira, mato, entulhos que geram vetores como escorpiões, insetos e outros animais peçonhentos, conforme Lei nº 5.035/2005.
  • Em 14 de março, o vereador Du Tonin pediu para o prefeito regulamentar definitivamente o procedimento para garantir a entrega de medicamentos para  portadores de Fibromialgia conforme a Lei 14.705 de 2023. Segundo o vereador, está legalmente estabelecido o direito inalienável das pessoas acometidas pela síndrome de fibromialgia ou fadiga crônica de receberem atendimento integral por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
  • Em 27 de março, o outro vereador da oposição — eleito sob a bandeira de pautas extremistas de direita associadas ao chamado “Estado Mínimo” —, em gesto que oscila entre a ironia e a hipocrisia, solicitou ao prefeito a efetiva execução da Lei nº 6.014, de 18 de maio de 2012, que proíbe a permanência de veículos abandonados nas vias públicas, requerendo vistorias e as providências necessárias para sua remoção, com o objetivo de assegurar condições adequadas de tráfego e segurança à população; na prática, trata-se de um parlamentar que se elegeu propagando a redução do Estado, mas que, quando confrontado com as demandas do grupo que representa, passa a exigir justamente a atuação plena e intensiva do poder público — um “Estado Máximo” sob medida para os seus.
  • Também no dia 27 de março, o vereador Du Tonin pediu o cumprimento da Lei Federal .624 que formalizou o uso nacional da fita com desenhos de girassóis como identificação de pessoas com deficiências ocultas.
  • No dia 2 de abril foi a vez do vereador Alexandre Peres pedir que o Executivo passasse a cumprir a Lei Federal  nº 12.317 e PL 2.635/20 em tramitação no Congresso Nacional que diminui a carga horária das Assistentes Sociais municipais para 30 horas semanais. 
  • Hélio Ribeiro protocolou, em 07 de abril, o pedido para que o prefeito tomasse medidas, junto às escolas públicas e privadas, de conscientização, prevenção e combate ao “bullying”, para dar cumprimento às disposições da Lei Municipal nº 5.792, de 20 de setembro de 2010. Mesmo antes de virar pauta comum e sempre presente na imprensa, o vereador já lutava por essa causa, inclusive ELE foi o autor - já em 2010 - do Projeto de Lei que derivou a lei que ele pediu para que seja comprida 16 anos depois!
  • Embora sua aplicação não seja obrigatória nos municípios, a vereadora Clélia dos Santos sugeriu, em 10 de abril que o prefeito fizesse a adesão à Lei Federal  nº 14.129/2021 (Lei do Governo Digital) por entender ser um marco importante no processo de modernização da administração pública, com o objetivo de reduzir a burocracia, melhorar a qualidade dos serviços públicos e facilitar o acesso do cidadão às informações governamentais.
  • Em 04 de junho, a vereadora Clélia dos Santos pediu para o prefeito tomar providências para o fortalecer das ações de prevenção, diagnóstico e reabilitação do AVC em Indaiatuba, conforme Lei nº 7.221/2019.
  • Em 02 de julho, mesmo com a Câmara Municipal de Indaiatuba em recesso, o vereador Hélio Ribeiro pediu que fossem providenciadas a implantação de medidas para o cumprimento da Lei 4.900, de 17 de abril de 2006, que trata da obrigatoriedade do uso de focinheira em cães de grande porte e de raças consideradas violentas em vias públicas, acompanhados de seus donos.
  • O mesmo vereador Hélio pediu, no dia 16 do mesmo mês, que a Lei Municipal nº 7106 fosse cumprida e que a Prefeitura  realizasse a afixação da lista de medicamentos padronizados nas farmácias unificadas do município
  • Hélio Ribeiro protocolou, no dia 06 de agosto, um pedido para fazer a efetiva aplicação da Lei Municipal nº 6.014, que trata da remoção de veículos abandonados nas vias públicas.
  • Em coerência apenas aparente, aquele vereador da oposição autoproclamado defensor do “Estado Mínimo” voltou a acionar o aparato público no dia 07/08 ao apresentar indicação com a seguinte ementa: intensificar a fiscalização da Guarda Civil Municipal quanto ao cumprimento da chamada Lei do Silêncio no bairro Jardim Morada do Sol, reivindicando maior presença do poder coercitivo do Estado para regular comportamentos, coibir excessos e impor normas — o que reforça a contradição recorrente entre o discurso ideológico de redução da máquina pública e a prática política concreta, que recorre sistematicamente a um Estado forte, vigilante e interventor sempre que lhe convém.
  • A vereadora Clélia dos Santos apresentou, em 7 de agosto de 2025, indicação solicitando a viabilização do efetivo cumprimento da Lei nº 13.896/2019, com a adoção de fluxos mais ágeis no Sistema Único de Saúde para garantir celeridade no diagnóstico e no início do tratamento do câncer.
  • O vereador Hélio Alves Ribeiro apresentou, em 12 de agosto de 2025, indicação solicitando que a secretaria competente viabilize a criação e a emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com Fibromialgia (CIPF), de modo a assegurar o atendimento preferencial previsto na Lei Municipal nº 7.184/2019.
  • O vereador Eduardo Tonin apresentou, em 15 de agosto, indicação solicitando a regulamentação e a efetiva implementação da Lei Federal nº 15.176/2025 em Indaiatuba, de modo a garantir que pessoas com fibromialgia, síndrome da fadiga crônica e síndrome da dor regional complexa tenham acesso aos mesmos direitos assegurados às pessoas com deficiência (PcD).
  • Vereador Leandro Pinto subiu no púlpito e justificou seu pedido protocolado em 21 de agosto para que o Prefeito cumpra leis trabalhistas e aplique Normas Regulamentadoras para prover insalubridade para os funcionários públicos que trabalham no Cata-Bagulho, uma vez que entram em contato com resíduos sólidos que são fontes de riscos e perigos. Para dar robustez ao seu pedido, utilizou de seus quatro anos trabalhando na Pasta e convivendo com eles. Leia aqui.
  • Reiterando a ironia recorrente de seu discurso, o vereador da oposição eleito sob a retórica do “Estado Mínimo”, apresentou em 11 de setembro indicação exigindo um Estado plenamente mobilizado, ao solicitar que a Secretaria Municipal de Assistência Social promova as articulações indispensáveis à realização de qualificações profissionalizantes gratuitas, destinadas à preparação de pessoas em situação de rua para o preenchimento das vagas de trabalho reservadas pela Lei Municipal nº 8.306/2025 — um clássico caso de defesa abstrata da redução do Estado combinada à demanda concreta por um Estado máximo, estruturado e atuante.
  • A vereadora Clélia dos Santos apresentou, em 23 de setembro, a indicação de protocolo nº 4628/2025, solicitando a imediata implementação e estruturação do Banco de Ração para Animais, conforme previsto na Lei Municipal nº 7.360/2020.
  • O vereador Hélio Alves Ribeiro apresentou, em 13 de outubro, indicação solicitando a adoção de providências para a realização de campanha de prevenção e conscientização sobre as principais doenças que acometem a saúde do homem, em alusão à Lei nº 8.047/2023.
  • Em 29 de outubro, foi apresentada pela vereadora Clélia dos Santos de Carvalho indicação que propõe a implementação de ações locais voltadas ao combate à perda e ao desperdício de alimentos, em conformidade com a Lei nº 15.224/2025.
  • Em 13 de novembro, o vereador Eduardo Tonin apresentou indicação solicitando a adoção das providências necessárias para assegurar o cumprimento integral da Lei Federal nº 15.249/2025 no município de Indaiatuba, com foco na ampliação da acessibilidade em espaços públicos e na garantia de comunicação inclusiva para pessoas com dificuldades de comunicação.
  • A Indicação nº 3298/2025 foi apresentada pelo vereador Sérgio José Teixeira em 11/12 , propondo a implantação e a efetiva implementação, no âmbito do município de Indaiatuba, da Lei Federal nº 13.935/2019, que trata da inserção de profissionais de Psicologia e de Serviço Social na rede pública de educação básica.
  • Para encerrar, em mais uma demonstração eloquente da incoerência entre discurso e prática, o vereador arauto do “Estado Mínimo” — apresentou no dia 11/12 a Indicação nº 3316/2025 exigindo, novamente, um Estado máximo, ao solicitar a intensificação da fiscalização para cumprimento da Lei Municipal nº 3.281/1995, que proíbe o uso de vias e logradouros públicos para o depósito de entulho ou lixo.

3. Conclusão

No gráfico seguinte, vê-se os vereadores que levaram para o Plenário matérias solicitando para o Poder Executivo cumprir e/ou fazer cumprir leis. Em azul, estão os vereadores da Base do prefeito, em vermelho, os vereadores da Oposição.


O gráfico evidencia, de forma objetiva, um fenômeno institucional que atravessa toda a Legislatura analisada: parte da atuação parlamentar tem sido direcionada não à formulação de novas políticas públicas, mas à cobrança reiterada do cumprimento de leis já vigentes pelo Poder Executivo.

A distinção cromática reforça esse diagnóstico. Em azul, aparecem os vereadores da base de apoio ao prefeito, que, paradoxalmente, figuram entre os que mais protocolaram Indicações exigindo a aplicação de normas legais. Esse dado revela uma disfunção relevante no arranjo político-administrativo: quando parlamentares alinhados ao Executivo precisam recorrer formalmente ao instrumento da Indicação para lembrar o próprio governo de suas obrigações legais, há um indício claro de fragilidade na governança, na coordenação interna e na efetividade da gestão pública.

Em vermelho, estão os vereadores da oposição, cuja atuação, embora previsível sob o ponto de vista do controle político, expõe uma contradição adicional. Um deles, aquele que se elegeu sob o discurso do “Estado Mínimo” recorre, na prática, a demandas que pressupõem fiscalização intensa, aparato administrativo robusto e presença ativa do poder público — ou seja, exige exatamente o Estado forte que negou veementemente em sua retórica eleitoral.

O estudo como um todo demonstra que o problema central não é quantitativo, mas estrutural. A repetição de Indicações voltadas ao simples cumprimento da lei aponta para um esvaziamento da função executiva, deslocando para o Legislativo a tarefa de cobrar o óbvio: que a lei seja aplicada. Em termos históricos e institucionais, trata-se de um sintoma clássico de desequilíbrio entre os Poderes, no qual o Legislativo passa a atuar como fiscal informal permanente de deveres que deveriam ser automaticamente observados pela Administração.

Em síntese, o gráfico não apenas quantifica Indicações; ele expõe a microfísica do poder em funcionamento durante o ano de 2025, revelando contradições políticas, fragilidades administrativas e a distância entre discurso e prática no período analisado. 

Mais do que um retrato estatístico, trata-se de um documento político que evidencia que, em Indaiatuba, cumprir a lei ainda depende — de forma excessiva — de reiteradas cobranças formais do Poder Legislativo.





Câmara Municipal aprova a ROMARIA PARA PIRAPORA como manifestação cultural local

Na sessão ordinária realizada ontem, 15 de dezembro de 2025, a Câmara Municipal de Indaiatuba aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei de autoria do vereador Luiz Alberto Pereira, o “Cebolinha”, que declara a Romaria de Indaiatuba como manifestação cultural local, reconhecendo-a como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural do Município.

Com a aprovação unânime do plenário , que reconheceu oficialmente a Romaria de Indaiatuba como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural do Município, assegurando assim sua valorização e a preservação de uma das mais significativas expressões da identidade indaiatubana, o projeto segue agora para sanção do prefeito Custódio Tavares.


O vereador responsável pela matéria justificou que "a Romaria de Indaiatuba a Bom Jesus de Pirapora representa um dos maiores símbolos da cultura popular e da identidade coletiva do Município, com mais de oitenta anos de tradição. Trata-se de um verdadeiro patrimônio imaterial, que envolve gerações de moradores em uma experiência de fé, devoção, resistência física, solidariedade e expressão cultural, fortalecendo os laços comunitários e o sentimento de pertencimento".

Lembrou que a peregrinação dos pedestres de Indaiatuba à cidade de Bom Jesus de Pirapora ocorre anualmente desde o início da Romaria e, há mais de três décadas, realiza-se tradicionalmente na Sexta-Feira Santa. Nos últimos anos, o evento tem reunido cerca de quatrocentos peregrinos, acompanhados por aproximadamente cem voluntários e membros da diretoria, além de veículos de apoio que garantem segurança, hidratação e suporte durante todo o trajeto.  O vereador ainda destacou que a estrutura de apoio conta ainda com o auxílio da Prefeitura Municipal de Indaiatuba, que disponibiliza vans e ônibus para transporte de romeiros, caminhão para mantimentos, ambulância, escolta da equipe de trânsito e apoio da Polícia Militar, demonstrando o reconhecimento e a importância do evento para o Município.

O vereador informou ainda que será criando um Museu do Romeiro com o objetivo de preservar e difundir a memória dessa tradição, valorizando seus aspectos históricos, religiosos, culturais e antropológicos, de modo a garantir que essa herança seja transmitida às futuras gerações. 

Por último, argumentou que "o reconhecimento da Romaria como manifestação cultural local contribui para o fortalecimento do turismo religioso e cultural, a geração de renda, e a promoção da diversidade das manifestações populares de Indaiatuba".

Imagem da primeira romaria oficial de Indaiatuba para Pirapora.


RELEVÂNCIA

A aprovação deste Projeto de Lei representa um avanço significativo na preservação da história, da memória coletiva e do patrimônio cultural imaterial de Indaiatuba, áreas que historicamente recebem pouca atenção nas agendas legislativas. Ao reconhecer a Romaria de Indaiatuba como manifestação cultural local após a sanção do Prefeito Custódio Tavares, será dado um passo concreto no sentido de valorizar práticas, saberes e tradições que não se materializam em edifícios ou monumentos, mas que constituem o tecido simbólico e identitário da comunidade.

O patrimônio imaterial — composto por celebrações, rituais, expressões religiosas, modos de fazer (saberes) e de viver — é, muitas vezes, o mais vulnerável ao esquecimento, justamente por não deixar marcas físicas permanentes. Sem reconhecimento legal, essas manifestações ficam à margem das políticas públicas, dependentes apenas da memória oral e do esforço de seus participantes (leia sobre isso aqui, aqui e aqui). O enquadramento jurídico conferido por este projeto cria condições para que a Romaria seja protegida, documentada, difundida e incorporada de forma mais consistente às políticas culturais de nossa cidade.

Além disso, o projeto se destaca por ir além do padrão recorrente do Legislativo local, frequentemente marcado pela apresentação de indicações em grande volume, mas com baixo efeito prático, por dependerem exclusivamente da vontade do Executivo para sua implementação. Ao propor e aprovar uma lei de reconhecimento cultural, a Câmara exerce efetivamente sua função normativa, produzindo um resultado concreto, com impacto direto na política de preservação da memória e da identidade indaiatubana. E é isso que precisamos: menos conversas e promessas e mais comprometimento prático, visível, materializado.

Trata-se, portanto, de uma iniciativa que reafirma a importância de se pensar o patrimônio cultural de forma ampla, incluindo o imaterial, e que sinaliza a necessidade de o Poder Legislativo assumir um papel mais ativo, qualificado e comprometido com a salvaguarda da história local — não apenas como registro do passado, mas como elemento vivo, compartilhado e fundamental para a construção do futuro de Indaiatuba.

Parabenizo a iniciativa.

Eliana Belo Silva

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

O Vale das Laranjeiras e as histórias pouco conhecidas da margem esquerda do Rio Jundiaí

Eliana Belo Silva 


INTRODUÇÃO – FUNDAÇÃO DO VALE DAS LARANJEIRAS

O projeto de loteamento destinado à formação de sítios de recreio do Vale das Laranjeiras foi aprovado por meio da Portaria INCRA nº 728, de 23 de julho de 1976, incidindo sobre um imóvel rural com área total de 3.259.258,55 m².

Menos de dois meses após essa aprovação, em 8 de setembro de 1976, os então proprietários do imóvel — Santa Carmem S.A. Agricultura, Comércio e Indústria, cujo diretor-presidente era Gabriel Gonçalves Júnior, e Itaici – Empreendimentos Imobiliários S.A. — protocolaram no Cartório de Registro de Imóveis de Indaiatuba o pedido de registro do loteamento, sob a denominação “Colinas do Mosteiro de Itaici – Vale das Laranjeiras”.

Na mesma semana, em 13 de setembro, conforme exigência legal, o Cartório de Registro de Imóveis publicou o respectivo Edital de Loteamento, informando que, na ausência de impugnações, o empreendimento seria regularmente registrado. Entretanto, houve impugnação formal ao processo.

O impasse entre o impugnador e os empreendedores prolongou-se por aproximadamente um ano, sendo finalmente solucionado em 12 de outubro de 1977, data em que foi efetivado o registro do loteamento sob a matrícula nº 3.630 do Cartório de Registro de Imóveis de Indaiatuba. Nessa ocasião, nascia oficialmente o “Colinas do Mosteiro de Itaici – Vale das Laranjeiras”.

Conforme descrito na matrícula imobiliária, o empreendimento, planejado e aprovado em uma área de 325,93 hectares, ou 134,68 alqueires, previa a implantação de 697 lotes distribuídos ao longo da estrada que liga Indaiatuba a Itupeva — atual Estrada Municipal José Boldrini. O projeto incluía a construção de dois lagos artificiais rasos, destinados ao embelezamento paisagístico da área, além de alamedas com passeios gramados e arborizados, obras de engenharia voltadas à manutenção da declividade das vias abaixo de 10%, favorecendo o escoamento natural das águas pluviais, e a demarcação das propriedades com estacas de pedra natural em granito de Itu.

Para muitos moradores, a história do condomínio resume-se à ideia de que teria sido implantado em um antigo laranjal pertencente aos padres de Itaici. Poucos, entretanto, tiveram a oportunidade de conhecer a profundidade histórica desse território e suas múltiplas conexões com a História de Indaiatuba, do Estado de São Paulo e do Brasil.

Este artigo convida o leitor a percorrer alguns desses caminhos históricos, articulando-os às memórias pessoais construídas ao longo do tempo. Trata-se de uma oportunidade de reconhecer vestígios do passado que, muitas vezes, passam despercebidos no cotidiano, e de relacioná-los às lembranças afetivas associadas a esse querido pedaço de chão.

À medida que memórias individuais se entrelaçam com a história documentada do lugar, a sensação de pertencimento ao Vale ou a qualquer outra área indaiatubana na margem esquerda do Rio Jundiaí tende a se fortalecer, ampliando o significado simbólico e afetivo desse território. Conhecer sua história é também compreender o quanto esse espaço está impregnado de vivências, lembranças e sentidos construídos ao longo do tempo.

“Bem-vindo à aventura histórica do Vale das Laranjeiras e das terras da margem esquerda do Rio Jundiaí, onde memórias, paisagens e tempos esquecidos revelam uma Indaiatuba ainda pouco conhecida.”


O VALE E O BANDEIRANTE

Até onde a documentação histórica permite alcançar, a referência mais antiga ao território onde hoje se localiza o Vale das Laranjeiras e demais propriedades adjacentes remete à presença de um bandeirante, personagem central de um tempo marcado pela ocupação violenta de territórios indígenas. Os contornos dessa vida, entretanto, ainda nos escapam em muitos aspectos, e talvez a prova mais eloquente dessa distância histórica esteja na própria origem do nome Itaici, palavra de raiz tupi-guarani, vestígio linguístico de uma presença indígena muito anterior à colonização.

Sim, um bandeirante. Figura emblemática do chamado Ciclo das Entradas e Bandeiras, aquele mesmo personagem que ocupava capítulos inteiros nos livros didáticos de História do Brasil. Todo o extenso território onde hoje se situam Itaici, bem como áreas atualmente ocupadas por condomínios, chácaras e sítios, pertenceu ao conhecido bandeirante Pai-Pirá. É ele a figura histórica mais antiga da História de Indaiatuba.

Pai-Pirá foi proprietário de um vasto latifúndio denominado Fazenda Taipas. Seu nome completo era Coronel Antônio Pires de Campos, sertanista que chegou a manter sob seu domínio cerca de 600 indígenas da etnia Bororó, então classificados, na linguagem da época, como “domesticados” ou “administrados” — termos que mascaram práticas de coerção e violência hoje reconhecidas como formas de escravização.

O domínio dessas terras por Pai-Pirá, ou por seus descendentes, estendeu-se até aproximadamente a década de 1780. As informações sobre sua vida permanecem fragmentadas: algumas fontes indicam que teria nascido em 1702 e falecido em 1751, vítima de malária; outras registram sua morte em 1755, em decorrência de uma flechada. As divergências documentais reforçam o caráter lacunar dessas narrativas e evidenciam o quanto ainda há a ser investigado e compreendido sobre esse período da história regional.

O pai, que trazia o mesmo nome, e o avô, Manoel Campos Bicudo, eram naturais da Vila de Itu, na então Capitania de São Paulo. A família possuía extensas propriedades rurais na região, entre elas a Fazenda Taipas, inserindo-se no grupo de grandes proprietários que participaram ativamente do processo de expansão territorial paulista. Esses homens estiveram profundamente ligados à vida nos sertões, movidos pela busca do ouro e pela captura de populações indígenas, práticas recorrentes no universo do bandeirantismo.

Foi nesse ambiente que cresceu Antônio Pires de Campos, absorvendo desde cedo as experiências, valores e métodos de seus antepassados. A convivência com essas incursões e com a lógica de dominação sobre os povos indígenas moldou sua formação e definiu sua trajetória como sertanista, refletindo uma herança familiar marcada pela violência colonial e pela exploração dos territórios interiores.

Conhecido pelo epípeto Pai-Pirá — expressão de origem indígena que pode ser traduzida como “pai de todos” —, Antônio Pires de Campos figura na historiografia como personagem de destaque. O historiador Afonso d’E. Taunay, em Relatos Sertanistas (1954, p. 181), refere-se a ele como um dos informantes mais “capacitados” de sua época sobre os Cayapós, povo indígena do Brasil Central, tendo deixado inclusive registros escritos sobre esses grupos. Essa aparente autoridade etnográfica, no entanto, coexistiu com uma atuação marcada pela extrema violência.

Contratado pelo governo colonial, Pai-Pirá recebeu a incumbência de combater e eliminar os chamados “índios hostis”, missão que cumpriu por meio de um exército formado exclusivamente por indígenas Bororó, muitos deles herdados da administração exercida por seu pai e por seu avô. Esse contingente, composto por centenas de homens e sem a participação de combatentes brancos, foi utilizado como instrumento de guerra contra outros povos originários.

A finalidade dessa ação era assegurar a circulação pela Estrada do Anhanguera, também conhecida como Caminho de Goiás, rota estratégica para o escoamento do ouro das minas de Minas Gerais em direção a São Paulo. Na região então denominada Sertão da Farinha Podre, correspondente ao atual Triângulo Mineiro, viviam os Cayapós, que resistiam às invasões e aos saques de seus territórios.

Segundo o próprio Taunay, a repressão conduzida por Pai-Pirá foi marcada por “barbaridades espantosas e grande mortandade”. Para legitimar a violência e assegurar a recompensa prometida — uma arroba de ouro pela expulsão ou destruição desses povos —, os Cayapós foram acusados de canibalismo, argumento recorrente na retórica colonial para justificar ações de extermínio e apagar a condição humana dos grupos atacados.

Em 1774, já exauridos pela guerra, pela dispersão e pelas perdas sucessivas, os poucos sobreviventes foram conduzidos à aldeia de São José. Os registros indicam que o local rapidamente entrou em decadência, “caindo em ruínas por motivo da mortandade e da deserção”, encerrando de forma silenciosa e trágica a presença Cayapó naquele território.

O temperamento tirânico e escravizador de Pai-Pirá no trato com os povos indígenas é mencionado por diversas fontes contemporâneas. Entre elas, destaca-se uma carta datada de 1775, de autoria de José Pinto da Fonseca, na qual são relatados episódios de extrema agressividade e violência praticados contra os Carajás da Ilha do Bananal. Segundo esse registro, Pai-Pirá teria açoitado, aprisionado e executado indígenas, promovendo ainda a separação deliberada de famílias, chegando a trocar alguns dos cativos por gado, prática que evidencia o caráter mercantil atribuído à vida humana no contexto colonial.

É importante recordar que a imagem do bandeirante como herói paulista, corajoso e responsável pela expansão territorial do Brasil, constitui uma construção historiográfica que perdurou por décadas. Essa narrativa só começou a ser efetivamente questionada ao longo do século XX, quando a ampliação do acesso a fontes documentais confiáveis revelou o quanto essas expedições foram marcadas por impiedade, violência sistemática e interesses econômicos predatórios, sobretudo em relação às populações indígenas.

Outro aspecto da trajetória de Pai-Pirá que tem sido objeto de estudos mais recentes diz respeito à sua inteligência estratégica e habilidade de negociação, perceptíveis nos textos que deixou registrados. Essa característica se manifesta, em especial, na relação estabelecida com os Bororó. Pesquisas contemporâneas indicam que esse grupo indígena não permaneceu submetido de forma inteiramente passiva por longos períodos, mas foi aldeado a partir de interesses específicos, em processos que envolveram acordos, mediações e negociações complexas entre as partes.




O VALE E OS FÉRRER DO AMARAL

Em 1798, a então Fazenda Taipas encontrava-se sob a propriedade do grande latifundiário Vicente Férrer do Amaral. Apenas nessa unidade rural, registrava-se a presença de 22 trabalhadores negros escravizados, evidência da inserção da propriedade no sistema econômico baseado na escravidão que sustentava a ocupação e a produção agrícola da região naquele período.

Vicente Férrer do Amaral era casado com Brígida Soares de Camargo, com quem teve doze filhos. O casal é reconhecido pela historiografia local como um dos núcleos familiares pioneiros na povoação de Indaiatuba, contribuindo para a consolidação do território e para a formação das primeiras redes sociais e econômicas do então povoado.

Com a morte de Vicente, em 1817, Brígida Soares de Camargo assumiu a administração e a propriedade de um conjunto significativo de terras, entre as quais se destacavam as Fazendas de Feital, Cocais, Pau-Preto e Itaici. Sua atuação como proprietária rural revela a continuidade das grandes estruturas fundiárias na região e o papel ativo exercido por viúvas na gestão patrimonial no contexto do século XIX.

Em 1835, Brígida promoveu a alienação de diversos bens, incluindo a Fazenda Itaici, que foi vendida ao alferes Lourenço Xavier de Almeida Prado. Essa transação marca mais um capítulo na longa trajetória de sucessivas posses que moldaram a ocupação das terras situadas na margem esquerda do Rio Jundiaí, território onde, décadas mais tarde, se inscreveriam novas camadas da história de Indaiatuba.




O VALE E OS TIBIRIÇÁ PIRATININGA

Em 1851, o alferes Lourenço Xavier de Almeida Prado alienou a propriedade para João de Almeida Prado Júnior (*1802 – †1851), mais conhecido como João Tibiriçá Piratininga, o “Pai”. Essa transação marca a entrada de uma família cuja trajetória se confunde com as origens mais antigas da ocupação paulista.

A família Almeida Prado chegou ao Brasil durante a segunda expedição de Martim Afonso de Souza, primeiro donatário da Capitania Hereditária de São Vicente. Com o passar do tempo, passou a adotar dois sobrenomes de origem tipicamente indígena — Tibiriçá e Piratininga — ambos em referência ao cacique Tibiriçá, reconhecido como o principal líder indígena do Planalto de Piratininga e figura central nas alianças que marcaram o início da colonização da região.

Em 1857, a propriedade foi herdada por seu filho, o indaiatubano João Tibiriçá Piratininga, o “Moço” (1829 – †1888). Após permanecer cerca de seis anos na Europa, onde se dedicou ao estudo de disciplinas relacionadas às Ciências Físicas e Naturais aplicadas à agricultura, com especial atenção à produção açucareira — base da riqueza familiar —, João Tibiriçá promoveu profundas transformações na fazenda.

Entre essas iniciativas, destacou-se a instalação de um engenho a vapor, equipamento de grande porte importado da França, cuja chegada a Itaici demandou cerca de dois anos de transporte, realizado por meio de carros de boi, alavancas e força de trabalho escravizada, desde o porto de Santos até o interior paulista. Posteriormente, adquiriu de seu irmão José a Fazenda Tranqueiras, ampliando ainda mais a extensão das terras, que passaram a ser conhecidas como o “Engenho de Itaici”.

A propriedade contava com uma lavoura organizada segundo o sistema de afolhamento, cultivando cana-de-açúcar, algodão e feijão, configurando-se como uma típica fazenda do período conhecido como Ciclo da Cana. O cotidiano estruturava-se, como em tantas outras propriedades do período, entre a casa-grande e a senzala, refletindo as profundas desigualdades sociais que sustentavam a produção agrícola.

Esse complexo rural legou à região um patrimônio edificado ainda pouco explorado pela historiografia e pela memória local. A antiga casa-grande, sede da fazenda, corresponde hoje à chamada Vila Manresa, situada na Vila Kostka, área que pode ser visitada por aqueles que se dirigem ao Mosteiro de Itaici. Trata-se de um testemunho material silencioso, mas fundamental, das camadas históricas que moldaram o território e a paisagem cultural de Indaiatuba.


Em 1891 o filho de Tibiriçá Piratininga ‘O Moço’, Jorge Tibiriçá, vendeu a fazenda que herdou com a morte do pai para construir um palacete na Rua Tamandaré, em São Paulo, capital.



AO VALE E A ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE ITAICI

Durante muitos anos, o nome Itaici foi utilizado como referência ampla ao território onde se localizava a antiga Fazenda Taipas. Entretanto, foi com a implantação da Estação Ferroviária de Itaici que a denominação se consolidou e ganhou maior projeção regional, passando a identificar não apenas um ponto geográfico, mas um lugar de circulação, encontro e permanência.

A festa oficial de inauguração da estação ocorreu em 11 de dezembro de 1879. Ainda assim, os registros indicam que suas atividades possivelmente já se encontravam em funcionamento desde 1873, quando, ao lado das estações de Itu, Salto e Pimenta, integrou a linha-tronco da Estrada de Ferro Ituana, no trecho que ligava Itu a Jundiaí. A partir de 1914, a estação passou a atender o ramal de Campinas, ampliando sua importância no sistema ferroviário paulista.

A Estação Ferroviária de Itaici ultrapassou em muito a função de simples ponto de embarque e desembarque. Tratava-se de um entroncamento ferroviário estratégico, por onde transitavam quatro composições, cruzando-se três vezes ao dia. Essa intensa circulação transformou o local em um polo logístico de relevância estadual, especialmente no final do século XIX e início do século XX.

Além de sua função ferroviária, a estação abrigou serviços essenciais à vida cotidiana da região. Funcionou como sede de correio, escola ferroviária e espaço de sociabilidade, concentrando atividades administrativas, educacionais e comerciais. O bar-restaurante instalado no local adquiriu tamanha importância que seu proprietário tornou-se figura de destaque na comunidade, recebendo, de forma emblemática, o título informal de “Barão de Itaici”.

Assim, a estação não apenas marcou a paisagem física do Vale das Laranjeiras e todo seu entorno na margem esquerda e direita do Rio Jundiaí, como redefiniu sua inserção no território, conectando-o às dinâmicas econômicas, sociais e culturais que moldaram a história de Indaiatuba e de toda a região.

A Estação Ferroviária de Itaici teve suas atividades encerradas em 1986, em decorrência da construção da variante Boa Vista–Guaianã, que redefiniu os fluxos ferroviários da região. A partir de então, o edifício passou a experimentar sucessivos ciclos de uso, abandono e ressignificação, refletindo as transformações do território ao longo das décadas.

Em 2004, a estação encontrava-se ocupada pela comunidade da Paróquia Santa Terezinha, sob a coordenação do padre Artur Sampaio, funcionando como centro comunitário voltado a crianças e adolescentes de 7 a 14 anos. Alguns anos depois, em 2010, o imóvel já se encontrava invadido, evidenciando o período de degradação e vulnerabilidade do patrimônio ferroviário.

Em setembro de 2014, o edifício passou por um processo de restauração, conduzido pela FCBA Construtora, empresa vencedora da licitação promovida pela Prefeitura, marcando uma nova tentativa de preservação e reaproveitamento do espaço histórico.

Por fim, em 12 de agosto de 2022, após nova intervenção de restauro e adequação, o antigo edifício ferroviário foi oficialmente inaugurado como Centro Cultural Itaici, encerrando um longo ciclo de incertezas e inaugurando uma nova etapa de uso público e valorização cultural de um dos mais importantes marcos da memória local.


O VALE E O MOSTEIRO DE ITAICI 

Em 1896, o então proprietário Cândido de Moraes Bueno, que havia adquirido a fazenda de Jorge Tibiriçá em 1891, alienou parte dessas terras à Companhia de Jesus. Um total de 250 alqueires passou a integrar o patrimônio do Internato São Luiz de Itu, marcando o início de uma nova e decisiva etapa na história do território da margem esquerda do Rio Jundiaí.

O valor da transação foi registrado como “simbólico”, e as negociações teriam sido conduzidas diretamente entre o padre Luís Tabar, representante do Internato, e o capitão Cândido de Moraes Bueno. A intenção era dupla: instalar no local um sanatório para doentes e, simultaneamente, criar um espaço destinado ao retiro e à formação de jovens seminaristas, em ambiente de recolhimento e contato com a natureza.

Os relatos dos jesuítas mais antigos que ali residiram descrevem um período de tranquilidade e abundância natural. O Rio Jundiaí, então límpido e piscoso, era utilizado para banhos, enquanto a mata ao redor ainda abrigava jaguatiricas e onças, compondo uma paisagem marcada pela presença quase intacta da fauna e da flora.

A partir de 1917, sob a liderança do irmão Larrañaga, cerca de cem pessoas — entre irmãos, padres e jovens noviços — passaram a atuar na construção do conjunto arquitetônico que viria a formar o atual Mosteiro de Itaici. Como mestre de obras, Larrañaga coordenou um processo construtivo essencialmente artesanal, com materiais beneficiados no próprio local.

Os religiosos da casa exerciam múltiplos ofícios, distribuindo-se entre atividades na olaria, na oficina de ferragens e na carpintaria, até que fosse concluída a escola de seminaristas, que funcionou até 1972. Nesse ano, o Mosteiro foi oficialmente transformado em Casa de Retiros, redefinindo sua vocação institucional.

O complexo também desempenhou papel relevante como sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), acolhendo encontros que reuniam, entre bispos, padres, assessores e leigos, contingentes que chegavam a trezentos hóspedes. Já na década de 1970, parte do patrimônio fundiário foi alienada, e, atualmente, a manutenção do Mosteiro ocorre principalmente por meio das atividades e eventos promovidos para os retiros espirituais.

Assim, o Mosteiro de Itaici consolidou-se como um espaço onde espiritualidade, trabalho, memória e paisagem se entrelaçam, inscrevendo-se de forma profunda na história da margem esquerda do Rio Jundiaí em Indaiatuba.



CONCLUSÃO – CAMADAS DE TEMPO E MEMÓRIA

A história do Vale das Laranjeiras e de todo o território indaiatubano da margem esquerda do Rio Jundiaí, observada em perspectiva de longa duração, revela um espaço moldado por sucessivas camadas de ocupação, apropriação e ressignificação. Antes de se tornar loteamento, fazenda, entorno ferroviário ou espaço de retiro, esse território foi chão indígena e palco de conflitos coloniais, marcados por violência, resistência e apagamentos. Cada período deixou vestígios — alguns visíveis na paisagem, muitos silenciados na memória coletiva — em grande parte eclipsados por uma narrativa oficial que centraliza a História de Indaiatuba a partir da Igreja Nossa Senhora da Candelária.

O avanço bandeirante, a formação dos latifúndios, o uso sistemático da mão de obra escravizada, os ciclos produtivos da cana-de-açúcar e, posteriormente, a chegada da ferrovia, reorganizaram o território segundo lógicas econômicas e políticas específicas de cada época. Esses processos foram sustentados por relações desiguais de poder, deslocamentos forçados e pela supressão de modos de vida preexistentes, primeiro indígenas, depois de populações subalternizadas ao longo do período colonial e imperial.

No século XIX, famílias como os Férrer do Amaral e os Tibiriçá Piratininga consolidaram uma paisagem rural marcada pela grande propriedade, estruturada entre a casa-grande e a senzala. A ferrovia redefiniu fluxos e conexões, inserindo Itaici em circuitos mais amplos de circulação, trabalho e sociabilidade. Já no final do século XIX e ao longo do século XX, o Mosteiro de Itaici inaugurou uma nova camada de uso do território, associada ao recolhimento, à espiritualidade e ao trabalho comunitário, sobrepondo-se — sem apagar — as marcas anteriores.

Mais recentemente, empreendimentos como o Vale das Laranjeiras expressam a transformação de áreas rurais em espaços de lazer e descanso, convivendo com pequenas propriedades familiares que buscam novas estratégias de permanência, como o turismo rural. Essa etapa contemporânea reafirma o caráter dinâmico do território, continuamente reinterpretado conforme valores, necessidades e projetos de cada tempo.

Conhecer essa trajetória não é apenas reunir fatos, datas e nomes, mas exercitar uma escuta atenta das memórias inscritas no espaço. Ao revisitar essas camadas históricas, amplia-se o sentido de pertencimento e aprofunda-se o vínculo com o lugar. O Vale e todo o território da margem direita do Rio Jundiaí deixa de ser apenas um espaço ocupado para se afirmar como território vivido, atravessado por tempos diversos e narrativas entrelaçadas. É nesse reconhecimento do passado que se constrói uma relação mais consciente, responsável e sensível com o presente — e com o futuro — desse lugar.


O FUTURO 

“A viagem não acaba nunca. 
Só os viajantes acabam. 
E mesmo estes podem prolongar-se em memória, 
em lembrança, 
em narrativa. 
Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: 
“Não há mais o que ver”, 
saiba que não era assim. 
O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. 
É preciso ver o que não foi visto, 
ver outra vez o que se viu já, 
ver na primavera o que se vira no verão, 
ver de dia o que se viu de noite, 
com o sol onde primeiramente a chuva caía, 
ver a seara verde, 
o fruto maduro, 
a pedra que mudou de lugar, 
a sombra que aqui não estava. 
É preciso voltar aos passos que foram dados, 
para repetir 
e para traçar caminhos novos ao lado deles. 
É preciso recomeçar a viagem. 
Sempre”. 

José Saramago 


_________________________________________________________________

Agradecimentos

Kléber Patrício, pela amizade, confiança e indicação.

Associação Vale das Laranjeiras, que patrocinou essa pesquisa.

Cartório de Registro de Imóveis de Indaiatuba, pelo apoio na pesquisa das propriedades e sucessão do território estudado.




terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Indaiatuba: das palmeiras ao município — uma trajetória para além da fundação oficial

Eliana Belo Silva

Introdução

A cidade de Indaiatuba comemora oficialmente seu aniversário no dia 9 de dezembro com base na ação do curador da capela da Capela de Nossa Senhora da Candelária, o senhor Pedro Gonçalves Meira, ação feita em 1830. No entanto — e importa dizer —, essa data institucional não capta a totalidade da história da nossa terra, que remonta muito além dos marcos religiosos ou administrativos. 

Este artigo busca resgatar essa trajetória mais longa, visibilizar as camadas indígenas, rurais, coloniais e urbanas que a antecederam, e oferecer aos indaiatubanos uma compreensão mais rica sobre o que se comemora quando se celebra Indaiatuba.


As origens indígenas e o topônimo

O próprio nome “Indaiatuba” indica um passado anterior à colonização: deriva do tupi-guarani inaîá-tyba, ou “ajuntamento de indaiás” (uma palmeira). Essa etimologia COMPROVA que o lugar, coberto originalmente de palmeiras indaiás, era já reconhecido e habitado por povos indígenas.

Estudos e registros locais apontam que, às margens do Rio Capivari‑Mirim, entre Monte Mor e Indaiatuba, havia ocupações indígenas com mais de oito séculos — ou seja, bem antes da formalização colonial. Essa antiguidade reforça que a história da cidade não começa com a capela, mas sim com “quem aqui já vivia”. Aqueles que batizaram a terra.

Povoado colonial e período rural

Antes da fundação oficial, sabe-se que o povoado já existia formalmente desde pelo menos 1768, quando Indaiatuba figurava como uma das esquadras rurais de Itu. A presença de fazendas de açúcar, engenhos rurais e assentamentos dispersos marca o período colonial. A fazenda denominada Engenho d’Água, por exemplo, datada de meados do século XVIII, é um desses vestígios.

Esse contexto rural antecede a fundação institucional e mostra que a ocupação se deu por meio de agricultura, laços comunitários, relações de trabalho e paisagens que hoje talvez já não vemos com clareza.

Fundação oficial e marco católico

O ato de Pedro Gonçalves Meira — doação de terras para a capela de Nossa Senhora da Candelária — torna-se o marco oficial da cidade. Essa fundação institucional traz consigo o recado da igreja, da colonização organizada e de uma nova ordem de ocupação. A partir desse momento, o povoado passa a ter traço de vila/cidade, câmara municipal, paróquia e outros instrumentos de poder colonial.

Entretanto, ao celebrarmos esse ato como “aniversário da cidade”, corremos o risco de invisibilizar a longa vida que lhe precedeu — o que esse artigo quer corrigir.


Memória, arqueologia e invisibilização

É importante afirmar que muitos dos sítios arqueológicos — pelo menos cinco identificados no município — permanecem pouco divulgados e estudados. Esses locais são testemunhas das populações indígenas, seus modos de vida, seus assentamentos e sua permanência na terra. Quando a comemoração se centra apenas na fundação oficial, esses capítulos ficam apagados.

Ao afirmarmos que Indaiatuba “tem 195 anos” — para fins de aniversário oficial — também deveríamos lembrar que as populações originárias estiveram aqui por pelo menos mais de 800 anos. Essa invisibilização não é mero detalhe: é parte significativa da memória da terra e da comunidade local.

Cultura, identidade e território

A cidade contemporânea herda esse acréscimo de temporalidades: o indígena, o rural, o colonial, o urbano. A palavra “Indaiatuba” carrega consigo a paisagem das palmeiras, mas a paisagem real mudou — por ocupação, transformação, urbanização. Reler a origem é ler-se como comunidade que está em permanente construção: somos herdeiros, somos responsáveis, somos continuadores.

As celebrações de aniversário podem e devem se tornar momentos de reflexão — não somente sobre o que se fez nos últimos 195 anos, mas sobre quem esteve aqui muito antes, quais memórias faltam ser contadas e os motivos do apagamento, que não é neutro.

Considerações finais

Comemorar o aniversário oficial de Indaiatuba é legítimo e importante — marca uma institucionalização, uma identidade, uma convivência coletiva. Mas, se celebrarmos apenas esse marco, deixaremos de reconhecer o “antes”, que é igualmente constitutivo da nossa existência. A cidade que conhecemos hoje foi preparada por gerações indígenas, por trabalhadores rurais, por comunidades que não deixaram registro em pedra — mas deixaram pegadas.

Que ao celebrarmos, possamos olhar para o solo que pisamos, reconhecer os sulcos mais antigos, e afirmar que nossa história não começa com uma  capela, mas com os povos que aqui viveram em meio a muitas palmeiras hoje quase extintas. 

A data do aniversário oficial pode, assim, ser uma efeméride de reconhecimento, de memória ampliada e de compromisso com todos os capítulos da nossa terra, sem excluir ninguém.

Postagens mais visitadas na última semana

APOIO

Este blog é um arquivo independente de pesquisa histórica sobre Indaiatuba. Se este conteúdo contribui para seus estudos, projetos ou compreensão da cidade, considere apoiar sua manutenção através do pix: historiadeindaiatuba@gmail.com