quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Historiador e seu Ofício: Pedreiros da História


No "Dia do Historiador", comemorado hoje, 19 de agosto, quem ganha um presente para lá de importante é esse blog e os leitores que o acompanham, todos nós presenteados com esse texto da colaboradora Aline Antunes Zanatta, que mora em Indaiatuba e trabalha no Museu de Itu. Além de ser um dia de luta dos historiadores, que não possuem ainda sua profissão reconhecida (leia mais aqui), podemos referenciar esse dia refletindo sobre o ofício do historiador, nas sábias palavras elegantemente dispostas no texto abaixo.


O Historiador e seu Ofício: Pedreiros da História


texto de Aline Antunes Zanatta*



“Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas _ algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história - e é por isso que estou feliz por vos falar hoje, daquilo que amo”. (1)


Com essas palavras, Lucien Febvre chamava a atenção dos alunos iniciantes da Ècole Normale Supérieure, sobre a história que amava, ou seja, aquela que não se interessava pelo homem abstrato e imutável, mas sim pelos homens tomados em meio à sociedade das quais fazem parte, em um momento determinado, com funções múltiplas, com diferentes atividades, de preocupações e de aptidões diversas, que se “mesclam todas, se chocam, se contrariam, e acabam por concluir entre si uma paz de compromisso, um modus vivendi que se chama Vida”. (2)

As lições de Lucien Febvre não foram esquecidas e hoje podemos nos deleitar com leituras prazerosas, pois como pontuou Carlo Ginzburg, no passado os historiadores queriam conhecer apenas as “gestas dos reis”, mas: “... Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado...” (3) O objeto do historiador contemporâneo é a ação humana no tempo e no espaço. Os sujeitos da história não são simplesmente os grandes reis e políticos.

Hoje os “homens” que o historiador vislumbra são todos os indivíduos que compõem a sociedade: homens, mulheres e crianças que ocupam as mais diversas atividades econômicas e sociais (médicos, pedreiros, operários, políticos, professores, estudantes, jornalistas). Todos eles agiram e aspiraram uma vida melhor. Fizeram suas lutas e resistiram quando necessário. Formando grupos conscientes ou não, os homens se relacionam, trabalham, vivem no cotidiano e constroem a história. Porém, todo esse conjunto de atividades, que costumamos chamar de Vida, também pode ser vivenciada de forma diferenciada pelos sujeitos e o historiador deve estar atento a isto para evitar generalizações.

Como bem lembrou Georges Duby:

“(...) uma sociedade, como uma paisagem, é um sistema cuja estrutura e evolução são determinadas por múltiplos fatores, que as relações entre esses fatores não são de causa e efeito, mas de correlação de interferência que convém, por uma questão de método, examinar um por um tais fatores, numa primeira etapa, pois cada um deles atua e evolui em seu próprio ritmo, mas que é imperativamente necessário considerá-lo na indissociável coesão que os une, se quisermos compreender o funcionamento do sistema.” (4)

A sociedade para o historiador não é algo estático, mas sim algo construído pelos sujeitos históricos. Então, esse estudioso se interessa pela formação social, pois está atento à mudança.

Desvendar, criar hipóteses, tentar pensar sobre um universo diferente do seu é o grande desafio do historiador. Por isso, cabe ao estudioso da área de história ter consciência de suas limitações, ou seja, não buscar nos homens do passado práticas exatamente semelhantes as nossas. Temos de entender que o sujeito histórico não é universal, ou seja, embora possuam características comuns, culturalmente ele é diferente porque o que dá sentido as suas necessidades é o contexto específico da qual faz parte. Ou melhor, o sujeito tem historicidade. Mas o que isso significa? Significa, por exemplo, que ser mulher no século XXI no Brasil não é o mesmo que ser mulher no século XVIII na América portuguesa. Falo América portuguesa porque no século XVIII não existia o Brasil como Nação, e nem a população que aqui vivia considerava esse espaço como um Estado-Nação. As mulheres do século XVIII viviam dentro de um universo social específico. Aqui no Brasil viviam sob uma lei que legitimava a violência contra a mulher, a qual permitia ao homem matar sua esposa quando tivesse uma simples suspeita de adultério, o que para isso não era necessário ter prova. Neste universo de diferenças legitimadas pela Igreja e pela escravidão, quando as mulheres almejavam outros caminhos para si não podiam negar as normas ideais, mas sim, utilizá-las para obterem o que desejassem. As mulheres do século XXI, por outro lado, vivem em uma sociedade em que a igualdade entre os indivíduos está assegurada pela legislação. Não podemos negar que algumas práticas “violentas” ainda persistam, contudo, a partir do movimento feminista, da invenção da pílula, as mulheres ocuparam cada vez mais cargos administrativos e políticos, e obtiveram a liberdade sexual (quebrando o tabu do corpo feminino apenas limitado a procriação, bem como o responsável pela honra familiar).

Nota-se, pela pequena explanação, a importância de não transferirmos normas e condutas a contextos diferentes para falarmos dos indivíduos históricos. Exatamente, por isso, estudamos a ação humana em um tempo e espaço específico. Entendendo os sujeitos dentro de suas possibilidades de existências e ações.

Se os estudiosos não se debruçam simplesmente em relatar fatos e feitos militares de forma evolutiva e cronológica, é preciso enfatizar que o tempo e o espaço social é considerado também como instâncias construídas pelos homens. Assim, tempo e espaço são categorias, podendo também ser vivenciada de forma diversa pelas diferentes culturas. Por exemplo, o significado de tempo para o conquistador das Américas durante o século XV e XVI era evolutivo, progressivo, linear; enquanto, para alguns grupos pré-colombianos, como os Astecas, o tempo era circular. Ou seja, diante do calendário solar, acreditavam que a cada 52 anos, este calendário cumpriria um ciclo e, então, a partir deste momento o mundo se iniciaria. Os sacrifícios seriam os responsáveis para que este mundo continuasse e se reiniciasse.

Diante das concepções de tempo diferente o historiador deve estar atento ao tempo dentro de seu contexto. Além do que, deve perceber ao estudar qualquer tema sobre uma única cultura que as mudanças dentro das instâncias sociais não ocorrem de forma semelhante. Por exemplo, algumas mudanças políticas, nem sempre modificam diretamente ou imediatamente alguns práticas sociais. Então, percebemos mudanças lentas, rápidas e até mesmo permanecias no cotidiano social. Desta forma, não podemos entender toda a sociedade apenas por um recorte político, pois outros fatores podem levar as mudanças e até mesmo as permanências. Mesmo porque os responsáveis pela mudança são exatamente os sujeitos históricos.

Percebe-se assim, que a história é muito mais do que o texto cronológico que costumamos estudar. Entender esse cruzamento de vidas, de pensamentos que geram mudanças lentas ou rápidas, bem como adentrar no universo mental e nos conflitos de indivíduos é o grande desafio do historiador.

Mas então se toda ação humana é história, porque os livros didáticos nos trazem informações concisas e fazem recortes precisos? Isso ocorre porque cada época faz seus próprios recortes e julga o que é importante estudar. Vê-se que a memória é seletiva, portanto, cada texto produzido reflete o pensamento de uma época, bem como os interesses de quem os produziu. Acho então, que cabe a vocês pensarem por que certos temas não aparecem nos livros didáticos.

Sobre o trabalho historiográfico (estudos feitos pelos historiadores), o que posso informar é que os temas estão cada vez mais amplos. Hoje tenho amigos que estudam assuntos diversos: surgimento do movimento operário no Brasil, o negro após a abolição, os jornais do século XIX e as críticas ao Império, o movimento de esquerda durante a ditadura militar, o surgimento da imprensa no Brasil, a escravidão indígena, a família escrava, a alimentação no Brasil colônia, as cidades na Idade Média, o Populismo de Perón, a história do medo, religiosidade, entre outros temas.

Todas essas pesquisas são produzidas de acordo com os interesses do próprio estudioso, pois ele escolhe um tema e uma pergunta para ser feita. Produz um problema, pois como bem aclamou Lucien Febvre frente aos futuros historiadores, pedindo-lhes que nunca tornassem colecionadores de fatos como dantes se fazia. “Que nos dêem uma História não automática, mas sim problemática” (5) .

As perguntas partem do que havia sido produzido pela historiografia sobre o tema. Neste sentido, os autores refazem perguntas já feitas, buscam novas fontes, relem outras já trabalhadas, para posteriormente formular suas hipóteses e contestar outras já existentes. Mas, como perguntou Lucien Febvre: “...Teria eu, historiador, o direito de refazer a história”? (6) Este grande historiador respondeu que sim, pois a história é a resposta a perguntas que o homem de hoje se põe. “ Explicação de situações complicadas, no meio das quais se debaterá menos cegamente se lhes conhecer a origem. Chamada de soluções que foram as do passado e que portanto não poderiam ser, em caso nenhum, as do presente – que escola de maleabilidade para o homem formado pela história”? (7)

Neste sentido, é o olhar do historiador que faz a história. É o problema que ele levanta sobre o tema e as perguntas que as fontes ( já utilizadas ou não) que constroem a narrativa histórica, formulando hipóteses sobre suas perguntas. A matéria-prima para todo essa construção são, sobretudo, as fontes documentais.

Sobre as fontes, Samaram afirmou: “Não há história sem documentos” (8) . E realmente não há, pois não somos livres como os literatos, temos que demonstrar nossos argumentos a partir das fontes disponíveis sobre o tema estudado. Antes os registros utilizados pelo historiador eram somente as fontes diplomáticas, contudo, a partir do século XIX cada vez mais o leque de documentos foi ampliado e fontes anteriormente ignoradas foram cada vez mais utilizadas, como as fontes cartoriais e eclesiásticas (as quais ampliam o estudo sobre os grupos sociais , suas práticas e conflitos) São fontes do historiador qualquer registro humano de uma cultura: jornais, cartas, diários, processos, músicas, novelas, filmes, censos populacionais, atas, literatura, fotografia, material religioso, cultura material (quadros, cidades, arquiteturas, móveis), e vários outros. Verificamos como as possibilidades de análise do historiador é vasta. Pense, por exemplo, o que você produz, que registros deixa. Até mesmo seu lixo pode ser analisado, pois ele reflete algumas práticas sociais. É importante também lembrar que as fontes, contudo, também são preservadas de acordo com os interesses públicos ou particulares. Por exemplo, você pode receber uma carta e não querer que os demais vejam. O que você faz? Você queima, rasga. Ou seja, você elimina este registro, para preservar determinada imagem, contribuindo para a construção de uma memória. Então, não sejamos inocentes, vale a pena refletir porque alguns documentos são preservados e outros não.

Mas em que local encontram-se os documentos antigos? Eles estão preservados em arquivos públicos ou particulares. Os arquivos públicos podem ser consultados por qualquer pessoa. Você conhece algum arquivo público?

Contudo, além deste material, é importante lembrar que os próprios indivíduos podem trazer consigo a memória histórica, e, portanto, podem ser objeto de estudo quando optamos em entrevistá-los. Ao resgatar a memória por meio de entrevistas não estamos obtendo informações exatas relativas ao assunto perguntado, mas sim, apreendendo como a memória de determinado fato é lembrada e preservada pelos entrevistados. No que concerne aos registros materiais também não podemos tomá-los como verdades absolutas sobre o que ocorreu no passado, pois um texto apenas registra o olhar de quem o produziu.

Então o que está escrito na fonte é mentira? Não exatamente, pois o historiador não trabalha com o conceito de verdade, mas sim com verossimilhanças. Ou melhor, acredita que nas fontes estão produzidas determinadas versões sobre a realidade. Se é mentira ou verdade não é tão relevante, pois o importante é que foi registrada, algo levou aquele sujeito deixar um registro que pode refletir aspectos daquele universo social relatado, já que quem a produziu é um representante de sua época.

Em suma, como bem evidenciou Paul Veyne a história não é ciência. Na história não é possível estabelecer princípios gerais como se faz na ciência: Lei da gravitação Universal de Newton. Diante do fato da caneta cair no chão quando o homem a larga, vamos explicar isto recorrendo ao principio da Lei da gravidade de Newton. E eis que a explicação esta dada.

Em história já não é assim. A explicação não é dada por leis universais cientificas como já se disse, explicar em história é mostrar o desenvolvimento de uma intriga e fazer que ela seja compreendida. O historiador interessa-se pelos mais variados acontecimentos históricos apenas e somente pelo motivo de que eles tiveram lugar na face da terra e não são para ele uma oportunidade de descobrir e formular leis cientificas e universais. (9)

Se o historiador não cria leis universais, o que move então o historiador ao realizar seu ofício? Esta resposta poderia suscitar inúmeros debates e respostas, porém prefiro ficar com a lição do grande intelectual Sérgio Buarque de Holanda, de que não cabe ao historiador “erigir altares para o culto do passado, desse passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca”. Mas seria sim, missão desse estudioso ser exorcista, ou seja: “procurar afugentar do presente os demônios da História. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que corre.” (10)



(1) FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1985. P. 28.
(2) FEBVRE, Lucien. Op. Cit. .P. 31.
(3) GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. P. 15.
(4) DUBY, Georges. A história Continua. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 p. 13.
(5) FEBVRE, Lucien. Op. Cit. .P. 49.
(6) FEBVRE, Lucien. Op. Cit. .P. 48
(7) FEBVRE, Lucien. Op. Cit. P. 49.
(8)LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. P.540.
(9)VEYNE, Paul. Como se escreve a história; trad. de Antônio José da Silva Moreira, Lisboa: Ed. 70, 1987.

(10) HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso: Os motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. Coleção. São Paulo: Brasiliense, Publifolha, 2000. P.XVII


Bibliografia:

DUBY, Georges. A história Continua. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso: Os motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. Coleção. São Paulo: Brasiliense, Publifolha, 2000.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; trad. de Antônio José da Silva Moreira, Lisboa: Ed. 70, 1


* Aline Antunes Zanatta - Mestre em História Cultural – UNICAP e doutoranda em História Econômica/USP. Atua na área educativa do Museu Republicano “Convenção de Itu”/MP/USP


Dia do historiador


Para algumas pessoas, 19 de agosto é apenas o dia do historiador. Para outras é mais um motivo de luta para que a profissão seja regulamentada. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, presidente da Associação Nacional dos Historiadores (Anpuh), convoca todos os interessados no assunto a se mobilizarem pela aprovação do projeto. O processo em prol da regulamentação está tramitando no Senado. [ leia mais ]



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