domingo, 1 de agosto de 2010

Bonavita, Guaianazes e Machado

Eliana Belo Silva (1)


Acredito que o tempo de atraso para ações eficazes de melhoria no transporte público em nossa cidade seja de uns vinte anos; mas para não citar um tempo tão extenso no nosso passado, já que como historiadora é essa a minha tendência, diria que - para não cair no erro do exagero - nos últimos cinco anos a situação passou de crítica para trágica.

Usuários que precisam dos serviços da Viação Guaianazes e da Viação Bonavita para transitarem em Indaiatuba e cidades vizinhas, são vítimas de contratos de exclusividade que garantem a essas empresas o conforto de não terem concorrentes no mercado em que atuam, portanto, não precisarem levar em conta, em seus sistemas de gestão, as insistentes reclamações dos usuários quanto aos horários, pontualidade, trajeto, limpeza, higiene, e o mais grave, a lotação. Cortesia e conforto então... creio que sejam itens totalmente fora da pauta e motivo para que muitos que estão lendo esse texto torçam o nariz para esses dois últimos requisitos murmurando: _ Aí já é frescura, né!

Acontece que muitos usuários não têm voz, ou porque já gritaram tanto e viram-se esvair suas esperanças, ou se acomodam diante desse dito contrato de cláusulas exclusas que impede que outras empresas entrem na concorrência para ganhar os clientes através da oferta de um serviço melhor. O fato é que a lata para as sardinhas é mais confortável, pois ali elas jazem lubrificadas.

A melhoria nas condições do transporte público está diretamente relacionada com a opção de os usuários poderem escolher o melhor prestador e também para que usuários que não fazem uso do transporte coletivo passem a fazer.

E essa última opção, se aplicada por todos os municípios, é uma das ações que podem, num futuro talvez não tão próximo, melhorar as condições ambientais da orbe em que habitamos e tanto já agredimos; sem contar que simplesmente não cabem mais carros e motos andando em nossas ruas e avenidas. Por todos esses e mais alguns motivos, o transporte público tem que melhorar e esse negócio de exclusividade onde aparentemente apenas um lado ganha tem que ser revisto.

Mas não serei rabugenta e reclamona a ponto de ser injusta, escrevendo apenas um lado da versão da história, pois afinal... tem usuários dentro dos ônibus coletivos que vou te contar... E para esses, transcrevo aqui as das dez regras de bom comportamento que Machado de Assis escreveu para os usuários dos bonds, todas elas aplicáveis aos usuários dos ônibus coletivos de nossa Indaiatuba, em grafia orginal:

OCORREU-ME compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

ART. I — Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.

Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.

Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

ART II — Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

ART. III — Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

ART. IV — Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao descer.

ART. V — Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstancias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.


ART. VI — Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.


ART. VII — Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.


ART. VIII — Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

ART. IX — Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

ART.X — Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa. (2)


 
Imagens de Bondes em Campinas:
















(*) Originalmente publicado na revista Imediata Opinião, com o texto de Machado de Assis parcial.
(2) Crônica de Machado de Assis, de 1883.
Ilustrou esse post, imagens com crédito para  Getúlio Grigoletto.

Um comentário:

  1. Boa tarde Eliana, gostei muito do seu texto. Gostaria de poder conversar com a senhora um pouco mais a respeito do transporte público, estou fazendo um trabalho acadêmico sobre isso. Se for possível entre em contato nesse e-mail: cintia_jacke@hotmail.com

    Desde já obrigada.

    Cintia

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