domingo, 30 de agosto de 2009

Seu Duardo Curador

texto de Deize Clotildes Barnabé de Morais
. Nas décadas que formaram a primeira metade do século passado, havia poucos médicos em Indaiatuba.
. Aqueles que atuavam faziam-no na clinica geral, atendendo em casa ou, em último caso, no hospital. Eles eram reverenciados e seus nomes lembrados durante anos, mesmo por quem não os conhecia (Dr. Pontes, Dr. Pedro, Dr. Giácomo, hoje já fazem parte do imaginário da população). Os partos, principalmente, eram feitos em casa, por parteiras e só em casos desesperadores as parturientes eram levadas ao hospital, pois maternidade não havia. Na zona rural isso era muito mais nítido. As parteiras eram consideradas parte das famílias. Dona Maria Ambiel ajudou a vir ao mundo grande número dos indaiatubanos dessas décadas!

. As doenças corriqueiras, gripes, diarréias, sarampo, catapora, varíola (existia ainda e era corriqueira!) eram tratadas em casa, através de remédios e procedimentos de domínio público. Para gripe, nada melhor que chá de alho (num copo d’água, amasse três grãos de alho e dê ao gripado um gole a cada meia hora) e repouso, longe de correntes de vento e de outras pessoas da família. Para diarréia, chá de folha de goiabeira, de preferência do broto. Para cólicas de rim, chá de quebra-pedras e folhas de abacateiro. Para sarampo, chá e banho de sabugueiro e quarto escuro. Depois de passado o vermelhão, três fatias de laranja, com o bagaço, para evitar recaídas. Dessa forma a população se protegia e seguia sua vida...

. Mas, havia casos de algumas doenças, tão indefinidas e de causas tão desconhecidas pela população, que não havia remédios a dar jeito. Era o caso de “quebranto”, “lombrigas” (não a infestação pelo verme intestinal, mas uma vontade obsessiva por algo que se tivesse visto e não se pudesse ter!), “bucho virado”, erisipela e outras. Para essas doenças só havia uma forma de tratamento: as benzeduras.

. Muitas eram as benzedeiras. Praticamente uma a cada região da cidade e das fazendas. A faculdade de poder executar o benzimento era considerada um dom e por isso quem a recebia, por obra da graça divina, não podia receber paga, em dinheiro, por ministrá-la. A ética era respeitada por todos, que a preservavam como um bem coletivo. Invariavelmente, as benzedeiras eram muito pobres.

. O comum era que o ofício de benzer fosse exercido por mulheres, geralmente idosas que receberam o dom, pela graça divina, através de suas avós, mães, tias, ou conhecidas mais velhas, que ao transmiti-lo, deixavam elas próprias de tê-lo. Isso era o mistério do ofício!

. No entanto, havia um benzedor, homem, muito importante na época. Era um preto velho, residente nas imediações da fazenda Cachoeira, muitíssimo considerado e respeitado como um santo, mesmo em vida: Nho Duardo Curador.

. Ele benzia todo tipo de doenças, em crianças, adultos e animais, sempre com sucesso. Picada de cobra? Cascavel, jararaca, urutu... o que fosse.
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Bastava que se lhe levasse o doente e ele, chupando o ferimento, dava um gole de água ao picado e, murmurando rezas encantadas, tirava o paciente da beira da morte!
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Mesmo se o “mordido de cobra” não estivesse presente, e alguém da família procurasse Seu Duardo, ele lhe dava um copo de água, acompanhado das rezas e mandava-o de volta... Ao chegar em casa, o paciente estaria bem.
. Berne na cabeça de crianças ou no corpo de animais: “Não se preocupe. Coloque na cabeça da criança um pedacinho de toucinho fresco, sem sal, sobre cada furinho dos bichos e cubra com esparadrapo. No dia seguinte tire um a um”. Sempre dava certo.
. Bicheira em animais? Bastava que alguém o procurasse e recebesse dele a infalível água rezada e os bichos caíam da bicheira no mesmo momento.
. Pessoalmente participei de um episódio desses, do qual tenho lembranças até hoje, embora na época só tivesse cerca de quatro anos e entendesse quase nada do que acontecia:
. Morávamos na fazenda Morungaba e tínhamos um “belo touro de muito valor” (como na canção de Vicente Celestino), que havia sido criado, pela minha avó, na mamadeira, pois perdera a mãe ao nascer.
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Ao ficar adulto, tornou-se um touro muito briguento e cioso de seu território e de suas fêmeas! Um dia, começou uma grande briga com outro touro da fazenda vizinha, através da cerca de arame farpado.
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Permaneceram um dia e uma noite, cabeça contra cabeça, através do arame, mugindo surda e raivosamente e se feriram muito com isso. No local do ferimento, na testa, formou-se uma imensa bicheira, que não cedia com o uso de nenhuma técnica conhecida, por mais que se cuidasse dela.
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O touro veio para perto da casa e deitou-se, sem alimentar-se. Só gemendo baixinho... Minha mãe, levando-me pela mão, tentava dar-lhe água. Mas nem a água ele conseguia beber. Estava à morte... Meu pai, em desespero, montou no cavalo e dirigiu-se à fazenda Cachoeira, para pedir socorro a Seu Duardo.
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Lá chegando, encontrou-o a cuidar de sua plantação de mandioca e foi recebido com extrema simpatia: “Que que foi, fio? O touro tá muito mar, né ? Num se priocupe, tome esse copo de água e vorte sobre seus passo... Que Deus abençoe vassuncê!” Com toda fé, meu pai tomou a água e voltou... Em nossa casa, mamãe e eu vimos o touro sacudir fortemente a cabeça, derramar uma infinidade de bichos, levantar-se com dificuldade e afirmando-se mais e mais nas pernas, começar a pastar... Foi a primeira vez que vi meu pai chorar... de emoção, ao voltar e ver o touro pastando!
. Hoje Seu Duardo repousa no cemitério Candelária e seu túmulo está coberto de ex-votos, como gratidão à sua generosidade em distribuir seu dom.
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2 comentários:

  1. Olá Eliana,
    Primeiramente, parabens pelo blog, entrei aqui apenas para ler um post e fiquei horas navegando por ele. É sempre muito bom ver que tem pessoas interessadas em resgatar nosso passado e disponibiliza-lo a todos de maneira tão completa.
    Gostaria de me colocar também nesta batalha, este campo de valorização do patrimonio publico e da historia de uma cidade me encanta profundamente.
    Como pesquisadora no ramo teatral, me interesso em particular pela memória dos espaços construidos (ou desconstruidos) pela cidade - o que isso influencia na arte e vice versa.
    Por favor, entre em contato comigo, estou com alguns projetos e creio que sua opinião e encaminhamento me seria muito util. Claro, se for de seu interesse também.
    Obrigada
    Fernanda

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  2. Esqueci de deixar meu email
    fernandasouza.teatro@gmail.com
    Fico no aguardo
    Abraços.

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