terça-feira, 8 de junho de 2010

Toada

texto de Deize Clotildes Barnabé de Moraes

Originalmente publicado no livro "Um Olhar Sobre Indaiatuba" (I) - 2006

Ele chegava no início do outono, quando o milharal estava túrgido de seiva, as folhas quase negras e as espigas arrebentando de sumo.
Descia o morro pelo caminho que vinha da parada do trem. Nunca se soube se ele vinha de trem ou se usava as linhas como guia para sua caminhada.
Vestia calças e camisa brancas, largas e apertadas por um cinto escuro. Os pés descalços pisavam ligeiros e mansos. Na cabeça um panamá curtido pelo sol. A tiracolo a viola no peito e a trouxa nas costas.
Mal era avistado pelas crianças, dedilhava suavemente as cordas numa toada clara que percorria os montes, as matas e as baixadas. Todas corriam ao seu encontro, anunciando, pelos caminhos:
_ O Anísio chegou... O Anísio chegou...
Sem muita conversa ele cumprimentava a todos com quem cruzasse, levantando o chapéu e inclinando ligeiramente a cabeça:
_ ... tarde!
_ Anísio, você quer um quarto na colônia?
_ O quartinho dos arreio tá mais que bão!... Agardecido.
Instalava-se silenciosamente no quartinho que servia como depósito de arreios e apetrechos dos cavalos. A pequena trouxa pendurava num prego, a viola em outro. Arrumava o pelego como colchão e uma cela como travesseiro.
_ Quer um cobertor, Anísio?
_ Num carece não... Se percisar tem a manta do cavalo.
Ao anoitecer levavam-lhe um prato de arroz com feijão. Não gostava de sopa (num tem sustança prum home...).
Sentava-se à soleira da porta e suavemente afinava a viola, harmonizando-a aos poucos, com seu dedilhar sereno. O som percorria todo o vale e chegava até às casas e grotas distantes. Homens, mulheres, velhos e crianças ouviam. Alguns saiam à porta ou à janela, outros se aproximavam do quartinho e acomodavam-se ao seu redor, apoiados nos calcanhares, picando o fumo, enrolando seus cigarros de palha e fumando-os com expressão séria e concentrada. As crianças, invariavelmente, rodeavam-no e entoavam trechos de alguma melodia conhecida. Tudo estava em paz.
No dia seguinte, ia trabalhar no eito, junto com os colonos, como se sempre tivesse estado ali. Era um deles.
Era quase um deles... Diferenciava-se pelo cuidado de mãe que tinha para com os animais, principalmente as cobras.
- Não devo fazer mal a elas para não perder o dom.
Ele tinha o dom de benzer pessoas picadas de cobras e curá-las...
Seria um deles ainda se não fosse a atenção carinhosa ao crescimento do milho. Apertava delicadamente as espigas em maturação, trincava um ou outro grão nos dentes. Vigiava sua suculência para perceber “a vez”.
Quando seu toque denunciava que o milho estava “no ponto”, abandonava a lida e dedicava-se a colher o milho verde desde bem cedinho, mal o sol nascia: apanhava as espigas, transportava-as em jacás repletos, carregados dois por vez, apoiados nos ombros e depositava-as em seu quartinho.
Descascava-as, separava as palhas mais tenras para a embalagem. Ralava as espigas num antigo ralador de alumínio, coava parte do sumo em grandes tachos de cobre. Ia juntando açúcar a uma parte e sal a outra. Juntava a um, pedaços de queijo, a outro, pedaços de lingüiça. Uma terceira parte era deixada só com o açúcar. Enchia pacientemente as pequenas trouxas feitas da palha tenra e depositava-as delicadamente, em ordem meticulosa, em uma grande vasilha de água fervente, aquecida ao fogo feito ali mesmo no chão do quarto, com pedras.
O cheiro da pamonha a cozinhar, seguia o caminho dos sons da viola: dos vales às grotas mais distantes. Todos sentiam.
Ao anoitecer, as pamonhas já prontas e ainda quentes, eram arrumadas em grandes peneiras de taquara. Ele vestia sua roupa branca imaculada, sentava-se à soleira e dedilhava a viola. O som juntava-se ao cheiro do milho cozido. Era o chamado...
Vinham todos. Como em procissão.
As crianças, barulhentas, aos pinotes, chegavam primeiro.
Os mais velhos iam chegando calmamente, cumprimentando-se, tirando o chapéu, servindo-se e servindo as crianças.
Sentavam-se ao redor do fogo aceso no terreiro em frente ao quarto e comiam calmamente, comentando os vários sabores:
- Esprementa essa... de queijo...
- E essa... de lingüiça...
- Perfiro sem nada, só com doce...
Silenciando-se... Em comunhão.
Aparecia uma garrafa de pinga. Era passada de mão em mão.
A viola se incendiava.
A dança começava, natural, inevitável.
Todos dançavam... crianças, jovens, adultos, até os velhos. Em celebração.
Acabada a pamonha, a viola emudecia, todos se despediam ainda afogueados da pinga, da dança e dos sabores. Iam para casa, alguns carregando as crianças que dormiram, outros ligeiramente cambaleantes. Felizes. Plenos.
Anísio acabava, aos poucos, com o que restara da pinga. Sem alteração nenhuma visível.
Apagava a fogueira ainda em brasas, arrumava o quarto e a trouxa, depositava as palhas no aterro, dependurava o pelego e a sela que lhe serviram de cama e travesseiro, varria o chão, guardava a viola.
Quando o sol começava a despontar atrás do morro ele já ia subindo a estrada, ligeiramente cambaleante, a viola ao ombro. Muda.
_ ...dia Anísio.
_ ... !
Até o próximo outono.

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