terça-feira, 4 de março de 2014

O Crime do Poço - Capítulo 14



 

Logo cedinho, na manhã da sexta-feira, 13 de dezembro[1], os homens chamados pelo delegado já estavam perto do poço para iniciar a escavação.  O poceiro Miguel Nunes Pereira foi o encarregado de liderar o desenterro do poço que se situava, segundo o Auto de Desentupimento, na Rua Candelária número 21, num quintal em comum com a casa da mesma rua número 23, onde tinha o comércio e morava Adão.

O poço tinha sua boca coberta por paus de lenha. Após escavar aproximadamente 5 metros, o poceiro chamou a atenção para os ramos verdes que encontrara, junto com latas velhas e palhas de milho.

Ramos verdes?

Enterrados nesta profundidade?

O sargento Francisco José, que acompanhava o grupo, começou a procurar algum indício. Não foi necessário nenhum esforço extraordinário, nenhum talento investigativo: no chão da salinha da casa abandonada, encontrou restos de papel e palha queimados.  Movendo-os, viu umas manchas parecidas com sangue. O que todos já suspeitavam, começava a ganhar força, intuições e desconfianças, agora eram quase certezas. Sem perder mais tempo começaram a tirar terra do poço, mas o trabalho ia com vagar e conforme conseguiam afundar, nada aparecia.

O pai da vitima, desolado, acompanhava angustiosamente a escavação minuto a minuto, e dali não arredou o pé nem por um segundo até o triste desfecho.

Em certo momento, no meio das pessoas que se remexiam em comentários e burburinhos, acompanhando junto com ele e demais autoridades o trabalho, estava Antônio N. escondido perversamente na máscara da simples curiosidade. Numa certa altura, tentando despistar os presentes, disse “-Este trabalho que estão fazendo é inútil; o poço tem 90 palmos de fundo e aposto 200 mil réis que não irão encontrar nada.”

Por motivos óbvios ninguém aceitou o desafio, nem tão pouco alguém respondeu à tão inapropriado comentário. Após fazer esta provocação cínica, que na verdade encobria o medo de ser descoberto, afastou-se dali, resmungando, fingindo desdém.

Na esquina da Rua Candelária, no largo da Cadeia, encontrou com Domingos Gazinhato, que em depoimento, dias mais tarde, contou que, ao falar no assunto com ele, não por motivo específico, mas por ser o assunto que todos falavam, Antônio muito agitado, dissera “- Como fico nervoso quando falam nesse negócio.” Narrou ainda que, em seguida, Antônio pôs as mãos sobre os olhos, achou por um momento que ele estava chorando, mas ele justificou que “... estavam piscando” [involuntariamente], fato que ele não estranhou no momento pois "...[ele] sempre tinha olheiras roxas e se queixava de dores de cabeça.”

Ernesto Horácio Otranto, 30 anos, casado, italiano, sapateiro e patrão de Eugênio C. declarou, em depoimento, nada ter visto sobre o crime, apenas “ouvira que havia desaparecido um moço chamado Domênico de Lucca, que estavam desentupindo um poço velho no quintal da casa vizinha de Adão.” Após tomar conhecimento desses murmúrios em cada esquina que passasse, ele narrou que foi, como tantos outros naquele dia 13 de dezembro, rodear a escavação no quintal da casa da Rua Candelária.  Após testemunhar que matos verdes foram retirados de relativa profundidade, voltou para sua casa para almoçar, onde estava Eugênio C.. Comentou com aquele seu empregado que, embora nenhum cadáver tivesse sido encontrado até então, ele, e tantos outros, desconfiavam que o cadáver estaria ali mesmo e que fora jogado e escondido, uma vez que aqueles matos verdes não cresceriam naturalmente naquela profundidade.  Ao que Cardinalli respondeu "... [também acho] ...que o cadáver deve estar dentro do poço, mas se for isso exato, não será só o Adão R. o criminoso, ...[que haveria de ter mais cúmplices]...pelo menos mais dois.” E após breve pausa, Cardinalli disse: “gatto ci cova”, que significa “tem algo escondido aí.”

Mais tarde Ernesto voltou para acompanhar a morosa escavação, acompanhada em cada segundo pelo pai Modesto de Lucca, de quem todos estavam com profunda compaixão.

Ao retornar para casa e novamente conversar com seu empregado, falou com ele, em tom de brincadeira, que naquela altura estava achando que também ele iria para a cadeia, uma vez que ele estava sempre lá na venda de Adão, jogando cartas. Nesta altura não tinha certeza de nada, mas seu tom de zombaria disfarçava uma intuição, reforçada pelo tremor que percebeu em Eugênio quando falou sobre o mato.

Ernesto terminou seu depoimento dizendo que de estranho mesmo naqueles dias, só havia ocorrido duas coisas. A primeira foi que percebeu que Eugenio, que sempre saia para almoçar as dez e voltava ao meio dia, depois do dia cinco começou a voltar só após as duas horas da tarde, justificando, um dos dias, que havia ido até a estação de trem de Itaici, mandar um embrulho para o filho, que residia em Itu. Por último, não se lembrando se no dia cinco ou seis do corrente, viu uma faca “estranha”, que Ernesto tinha dito ser dele; explicando que não usara antes “por não ser boa para o serviço, [mas que agora usaria, por ter]... “sido amolada por Domingos Gazignato.” A faca foi colhida como prova do crime. Tinha trinta e dois centímetros de comprimento e dois de largura... “coberta por mancha que parece ou é de ferrugem e sangue... sangue no centro e ferrugem ao redor.”

 

 
Estação de trem de Itaici
Foto do acervo do Arquivo Público Municipal de Indaiatuba – Coleção Antonio Mingorance Filho
Fundação Pró-Memória de Indaiatuba
 
Do poço, era só terra que saia.

Terra e mais terra.

Talvez pela morosidade do pesado trabalho, que contrastava com grande excitação e ansiedade, o delegado estava começando a desconfiar que no poço não se encontraria nada. Retirou-se do local às quatro horas da tarde e resolveu então voltar à delegacia, para interrogar novamente Adão R., que continuava a declarar-se inocente e a protestar por encontrar-se na prisão sem motivo.

Já a opinião pública, sem exatamente se saber porque já tinha seu veredito; todos tinha certeza que havia um crime, e que havia sido praticado por “aqueles três”. Mas essa convergência da opinião pública não era suficiente para que a autoridade policial requisitasse a prisão dos três suspeitos.

Foi então que o delegado pensou em recorrer a uma última estratégia...

Hum... Talvez fosse dar certo!

Assim, numa certa hora, no meio do interrogatório, entrou de repente em sua sala o Major Alfredo, e dirigindo-se diretamente ao criminoso, disse “_É melhor você contar tudo, o cadáver foi encontrado no poço.”  

A firmeza do Major deixou Adão R. branco, que após vacilar um pouco, com a respiração ofegante e com os olhos voltados para o nada, finalmente começou a falar, quase que sem parar:

“que estava em sua casa no dia 05 de dezembro... que após o toque de recolhida [nove horas da noite], ao apagar o lampião do negócio, ouviu um batido na porta que já estava fechada... encontrou Eugênio C. e Antônio N.... que convidaram o interrogado a jogar, ao que respondeu que não valia a pena jogar em três, ao que Cardinalli respondeu que logo [viria] um bom parceiro, com bastante dinheiro e nós rapamos dele.”

Neste seu primeiro depoimento, tomado pelo escrivão Luiz Teixeira, que escreveu que "... o indiciado Adão R., livre dos ferros e sem constrangimento algum... [declarou] ser negociante... natural de Mantova... morador na cidade há sete meses...”, Adão R. narrou ainda, que Domênico mostrou que tinha um grande maço de dinheiro no bolso, e que havia topado jogar, dizendo “Tenho bastante dinheiro e agüento qualquer parada.”  

Narrou que, em seguida à esse colóquio, Domênico saiu até o quintal para urinar, quando então Antônio N. deu uma paulada forte em sua cabeça, agressão logo seguida por outra, desta vez, Eugênio C. esfaqueou seu pescoço. Quanto a ele, Adão, ficara somente encostado vendo tudo acontecer rapidamente e só jogou uma pedra em Domênico, que jazia no chão, porque fora ameaçado pelos dois comparsas “Se você não ajudar vai também para o poço.” Disse que jogaram o cadáver no poço dentro de um saco, jogaram cascos e terras que estavam na proximidade e dividiram o dinheiro. Embora tenha dado informações mentirosas, confessara o crime.

Enquanto isso, Atílio Colli tinha voltado para Piracicaba e tinha sido preso pelo delegado de lá, mas não custou muito a provar que o telegrama tinha sido transmitido errado. Ele o tinha redigido desta forma “seu filho não está aqui.” A fatalidade brincou com o pai da vítima e quis, que naquela altura, Modesto tivesse a esperança falsamente renovada ao ler “seu filho bom está aqui.”

O sino da matriz marcava cinco horas da tarde. O senhor José Tancler, que estava presente ao interrogatório, saiu dali rapidamente para a casa do Adão, a fim de cumprir triste propósito, o de dar a Modesto a trágica notícia. Seria portador da já indisfarçável notícia para o pobre pai, que no fundo, no fundo, não queria acreditar no que se desvendava rudemente ao seu olhar.

Diante da certeza que insistira em não ver, diante da cruel verdade revelada pelo sonho que insistira em não aceitar, o desespero abateu o pobre pai. Ouvira as surdas palavras pronunciadas pesadamente pelo senhor José Tancler. A mensagem era curta, mas de tão dolorosa parecia ecoar na escuridão do infinito. Estava profundamente abatido e mal se sustinha em pé. Por que não haveria no mundo uma lei divina que proibisse a morte dos filhos antes da morte dos pais?  

Cambaleando e sem forças, apesar de seus 42 anos apenas, sussurrou chorando de desespero:

- Dio Mio! Mataram meu bambino, mataram meu Domênico!

No rosto de todos os presentes escorreram lágrimas incontidas de comoção.

 

[...]

 

Puseram-se enfim a tirar terra outra vez. Agora era só uma questão de tempo e trabalho.

Terra e mais terra, até que o toque de recolher sonorizou o momento em que todos deveriam ir para casa.

Mas a cidade não descansaria com a tranqüilidade costumeira naquela noite... Sombria sensação ancorava nos corações tristes. E o aparente silêncio era de desassossego.

Ao redor do poço e a cheiro de querosene misturado com o cheiro agridoce de terra molhada, a fúnebre busca continuava, iluminada por poucos lampiões.  Terra e mais terra.

Passava um pouco mais das dez horas da noite quando o pai Modesto de Lucca, que não abandonara de forma alguma, nem por um minuto, a triste diligência, reconheceu alguns papeis entre a terra removida.  Entre anotações com a letra que reconheceu ser de seu filho, havia também um recibo assinado por Antônio N..  

Logo depois, uma das armas do crime: o pau de fumo de setenta centímetros de comprimento, com “manchas que pareciam sangue.” Dentro de um saco estavam uma botina e um chapéu, que Modesto reconheceu como de propriedade de seu filho. A cada profundidade revelada, as provas escancaravam o que, a todo custo, o pai se recusava a aceitar. Por fim, onze e meia da noite “...foi encontrado o cadáver que pelo mau cheiro que exalava, denotava estar em adiantado estado de putrefação ... [e]... que tendo em vista não haver na localidade peritos profissionais, o adiantado da hora e as disposições regulamentares... ordenou [a autoridade] que tudo ficasse no estado em que se achava... [e que] o poço e suas imediações ficasse guardado por um soldado...”

O delegado mandou recolher Antônio e Eugênio na cadeia da cidade.

Sobre o período em que ficaram presos, apenas foi registrado o depoimento de Adão, que dizia que os outros dois, a todo custo pediam que ele negasse o crime, ou assumisse sozinho, uma vez que o cadáver estava em seu quintal.

 



[1] As informações deste capítulo são advindas dos autos do processo.

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