quarta-feira, 13 de maio de 2009

Escravos ou Bestas


"Quando os que compram escravos, ou bestas, os poderão enjeitar, por doenças ou manqueiras"
(Ordenações Manoelinas, livro 4 título XVI)
Nilson Cardoso de Carvalho (+ em 09/12/2001)*

Contrariando os desejos do ministro Ruy Barbosa de apagar pela destruição de documentos a mancha da escravidão no Brasil, em todos os arquivos ligados à memória histórica encontramos esta mancha representada por uma grande diversidade de papéis. São processos de vários tipos nos cartórios judiciais, escrituras diversas nos cartórios de notas, registros nos livros das coletorias de rendas e assentos nos livros paroquiais, entre outros. Os livros de batismos nos dão conta da presteza com que o senhor batizava o escravo africano recém adquirido, muitas vezes em lotes, não só pela determinação das Ordenações do Reino, mas também por ser o batistério registro seguro da nova propriedade. Nos cartórios judiciais encontramos processos envolvendo escravos por furtos praticados contra propriedades de outros senhores ou por assassinato de seu próprio senhor ou ainda e principalmente, por assassinatos de seus feitores; crime este dos mais comuns, praticados em legítima defesa contra a brutalidade do tratamento no eito. E, - coisa curiosa - neste caso o escravo deixava de ser considerado 'coisa', 'objeto' e se transformava em pessoa para receber o exemplar castigo. Todos os tipos de transações que se faziam com qualquer tipo de bem móvel ou de raiz encontramos realizadas com escravos devidamente registradas nos livros dos cartórios de notas, com a descrição do nome, sexo, idade e qualificação das peças, em transações tais como venda e compra a dinheiro, escritura de troca por bens móveis e imóveis, escritura de arrematação em hasta pública, escritura de hipoteca e outras. Um dos registros mais curiosos dos que tenho examinado e que caracterizam enfaticamente o escravo como coisa, objeto ou mercadoria é um processo comercial que transcrevi recentemente e que tem como autor da ação uma figura de relevo no passado de Indaiatuba. José Estanislau do Amaral foi importante senhor de engenho e cafeicultor no município de Itu, com engenho em terras da sesmaria do Quilombo, situada no território depois pertencente aos municípios de Indaiatuba e Jundiaí, na então Província de São Paulo. Iniciou-se muito cedo nas atividades da lavoura. Seu pai emancipou-o aos dezesseis anos de idade, em 1834, ocasião em que passou a gerir seus próprios negócios, e o fez sempre com tal eficiência e dedicação ao trabalho, que ao final do século era um dos homens mais ricos do Estado de São Paulo. Através da documentação cartorial examinada sabemos tratar-se de pessoa de comportamento ético condizente com os padrões de seu tempo.
Pretendo através de documento oficial revelar particularidades do tratamento dispensado ao escravo no Império e o dispositivo legal que o amparava. Trata-se de processo arquivado no Cartório do Primeiro Ofício de Itu, atualmente sob custódia do Museu Republicano Convenção de Itu (Nota 1), (da Universidade de São Paulo).

fls. 1 "Anno de 1860 Juizo Municipal da Cidade de Itu e seu Termo Auto de depositoem que são: José Estanisláo do Amaral Camargo ..............Supplicante Romão Teixeira Leomil.........................................Supplicado Escrivão Andrade

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e sessenta, trigesimo nono da Independencia, e do Imperio aos vinte e hum dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu, Comarca do mesmo nome da Provincia de São Paulo, e meu Cartorio faço esta autuação a huma petição de José Estanisláo do Amaral Camargo, despachada pelo Doutor Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da Fonseca Pacheco, afim de se proceder nos devidos termos do deposito, e exame requeridos; de que faço esta autuação, eu Francisco José de Andrade Escrivão que escrevi.


fls 2 Illmo S.r D.or Juiz Municipal Supplente

Diz José Estanisláo do Amaral Camargo da Villa de Indaiatuba que elle Supplicante comprou a Romão Teixeira Leomil da Cidade de São Paulo cinco escravos pelo preço de 9:000$000 reis em data de 21 de Julho ultimo e como em o numero desses entrou um de nome André de nação de trinta annos com pouco de differença, o qual tem molestia chronica e antiga, que o impede de trabalhar na lavoura fim para que o Supplicante os comprou a todos tem o Supplicante de o enjeitar ao vendedor protestando haver perdas e dannos e não lhe pagar o preço constante de huma obrigação, e como para segurança de seos direitos é mister que o dito escravo seja depositado e examinado por algum medico em presença de V.S.a vem o Supplicante requerer a V.S.a que haja de mandar depositar em mão de pessoa segura e que o trate e o mande examinar em presença de V.S.a por algum medico, e que dê o seo parecer por escripto mandando V.S.a notificar desse deposito e exame ao dito vendedor Romão Teixeira Leomil por precatoria ao Juizo Municipal de S.Paulo e mandando lhe tão bem intimar o protesto que faz o Supplicante de haver delle as perdas e dannos ja ocorridas e as quaes sobre vierem até afinal solução deste negocio //

fls 4 Remessa
Aos dous dias do mes de Outubro de mil oitocentos e sessenta annos, nesta Cidade de Itu, e meu Cartorio faço remessa destes autos ao Doutor Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da Fonseca Pacheco, que serve de contador do Juizo, para proceder na contagem das custas; de que faço este termo, eu Francisco José de Andrade Escrivão que o escrevy..."
O processo se encerra com a anotação das custas. Não há menção de envio de precatória ao Juízo Municipal de São Paulo, mas presume-se que o comprador José Estanislau do Amaral tenha sido ressarcido dos prejuízos pelo traficante Romão Teixeira Leomil
.
Comentário
Verifica-se a existência de norma jurídica, aplicada a este caso, tão corrente na época que até dispensava-se o suplicante de apresentar-se assistido por advogado.
De fato, no livro 4 das Ordenações Filipinas, título XVII se encontrava o texto da lei que regia o caso:

"Qualquer pessoa que comprar algum scravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se delle, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de seis mezes do dia, que o scravo lhe for entregue."
(Nota 2)

Os autos aqui transcritos e o texto da lei que regulava a matéria são demais eloqüentes e dispensam outras considerações para enfatizar o tratamento dispensado ao escravo, conceituado simplesmente como 'coisa', 'objeto' ou 'mercadoria'; de tal forma que, se a situação fosse transposta para os dias de hoje, José Estanislau do Amaral com certeza recorreria ao PROCON alegando perdas e danos, para não pagar uma das prestações devidas a Romão Teixeira Leomil.

Hipótese sobre a moléstia do escravo André

Chama-nos também a atenção nesse processo o exame médico procedido pelo Dr. Kellin, o qual constatou "que o refferido escravo se achava sofrendo de inflamação chronica do baço - oppilação - sub'aguda, ou em estado chronico ..."
Ao lermos este laudo do Dr. Kellin ocorreu-nos a hipótese de que o escravo André sofresse de anemia falciforme, doença crônica hereditária que acomete indivíduos da raça negra. De fato uma das características da doença é o aumento do volume do baço no processo de destruição dos glóbulos vermelhos - que são eliminados pelo organismo por conter um tipo de hemoglobina anormal - , o que leva o indivíduo a apresentar anemia tornando-o imprestável para "trabalhar na lavoura fim para que o Supplicante os comprou a todos".
Concorre para tornar plausível esta hipótese o fato de os dados estatísticos informarem que de cada grupo de quatrocentas pessoas da raça negra, uma é portadora do gen falciforme. Se considerarmos que estes dados - que são atuais - aproximam-se das condições existentes em 1860, podemos afirmar que a existência de escravos portadores de gens falciformes não era rara, levando os traficantes do tipo Romão Teixeira Leomil a executar esse tipo de trapaça, colocando num lote de escravos um, portador da doença hereditária.
Fato curioso referente a essa anemia foi a descoberta, na década de 50, de que em regiões da África onde a malária era endêmica, os portadores do gen falciforme não são acometidos de malária porque seus glóbulos vermelhos resistem ao ataque do protozoário causador da doença.

(nota 1) Cartório do Primeiro Ofício da Comarca de Itu / Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu-USP, maço 76, ano 1860.

(nota 2) Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870, vol. 4, p. 798 - Título XVII do livro 4.

O autor agradece a colaboração da Prof.a Anicleide Zequini, curadora do Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu.

Nilson Cardoso de Carvalho - falecido em 09/12/2001
Membro do Conselho Administrativo da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba
Pesquisa História de Indaiatuba SP - séculos XVIII-XIX e História de Barretos SP - colonização dos vales do Rio Grande e Pardo - século XIX

P.deferimento
E.R.M.ce[a]
Jose Estanisláo do Amaral Camargo

Nomeio para depositario a Antonio Dias Ferras. Marco o dia 24 do corrente as 11 horas para ser examinado o escravo sendo notificado o D.r Patricio Killiam para esse fim. Itu 21 de Setembro de 1860
[a] Francisco Pacheco

Certifico eu Escrivam abaixo assignado que notifiquei ao Depositario nomeado Antonio Dias Ferras para assignar o competente deposito de que ficou sciente. O refferido é verdade, de que dou fé. Itu 21 de Setembro de 1860

[a] Francisco José de Andrade Auto de deposito

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e sessenta, trigesimo nono da Independencia, e do Imperio, aos vinte e hum dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu, e meu Cartorio compareceu Antonio Dias Ferrás, e por elle foi dito que havia recebido em deposito o escravo André, constante da petição retro, e do mesmo se obrigava não dispôr sem expressa ordem deste Juizo, sugeitando se as penas da Lei. De como assim disse lavrei este que assigna com testemunhas, eu Francisco José de Andrade Escrivão que o escrevi.
[a] Antonio Dias FerrazComo testemunhas
[a] Antonio Augusto da Silva
[a] Antonino Carlos de Camargo Teixeira
Fls 3

Certifico eu Escrivam abaixo assignado que notifiquei ao Doutor Patricio Hart Kellin para proceder no exame requerido, tido na forma do despacho retro; de que ficou sciente. O referido é verdade, de que dou fé. Itu 24 de Setembro de 1860
[a] Francisco José de Andrade
Auto de exame
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e sessenta, trigesimo da Independencia e do Imperio aos vinte e quatro dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu, e casa do Doutor Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da Fonseca Pacheco, onde fui vindo eu Escrivão de seu cargo ao diante nomeado, sendo ahi presente o Doutor Patricio Hart Kellin, pelo Juis lhe foi defferido juramento dos Santos Evangelhos em hum livro d' elles, a cargo do qual lhe encarregou que bem e fielmente, com boa e sã consciencia procedesse o exame do preto André, e declarasse as infermidades que por ventura encontrasse no mesmo, como fora requerido, cujo juramento sendo por elle recebido assim prometteu cumprir; e passando a examinar o escravo André, que lhe fora appresentado pelo Depositario Antonio Dias Ferrás, declarou o seguinte = que o refferido escravo se achava sofrendo de inflamação chronica do baço - oppilação - sub' aguda, ou em estado chronico, que pode ceder, porem mediante huma medicação conveniente, - Nada mais declarando mandou o Juis lavrar este auto, que assigna com o examinador, e depositario, e eu Francisco José de Andrade Escrivão que o escrevy
[a] Francisco Pacheco
[a] Patricio Hart Killin

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens mais visitadas na última semana