sexta-feira, 21 de maio de 2010

A Bicicleta

 texto de José Roberto Effore*



Vivi em Indaiatuba, nos conturbados anos 60, e atualmente sempre me pego comparando alguma coisa com o que vivi naqueles anos.

Querer comparar o cotidiano de Indaiatuba do início dos anos 60 com os dias atuais é colocar lado a lado água e vinho.

Naquela época, as pessoas tinham objetivos mais simples, tudo caminhava mais lento. Não podiam os indaiatubanos de então, visualizar o crescimento acelerado que a cidade teria a partir dos anos seguintes.

Dentre tantas mudanças que houve nestes anos de crescimento e de conseqüente mudança de hábitos, segurança pública é o que mais chama atenção. Indaiatuba vivia dias calmos, naqueles anos 60. Era comum ver as pessoas conversando em frente as suas casas, até à noite, tempo este que era usado para colocar a conversa em dia... Quanta simplicidade e inocência a gente ouvia naquelas rodinhas amistosas e rotineiras.

Quando chegava a hora do sono, lá por volta das vinte e uma horas, todos retiravam suas cadeiras e se recolhiam. Assim, a tranqüilidade era plena e dominava aquela pequena cidade.

Praticamente nada cortava o silêncio daquelas noites: o sono era repousante e havia em cada um a certeza de que conhecia muito bem os seus vizinhos; assim todos se sentiam protegidos e protetores... Nada havia para ser temido, a não ser coisas do outro mundo, assombrações que, na verdade, nunca fizeram grande mal a ninguém.

Os dias eram calmos, o comércio pequeno não realizava grandes promoções, mesmo porque, naquele tempo, as pessoas só compravam o que realmente lhes fazia falta e a expressão “sociedade de consumo” ainda não havia sido ouvida por aqui. Os homens trabalhavam na lavoura ou nas indústrias locais e a maior parte das mulheres cuidavam da casa e dos filhos.

A cidade era tão pequena que não havia um morador sequer que não ouvisse o apito do Cotonifício, marcando a hora da entrada dos funcionários; ou que não ouvisse as badaladas do sino da Matriz, chamando os fiéis para a missa de todo o dia do padre Claret.

Foi num destes dias calmos que eu andei por alguns pontos da cidade com minha pequena bicicleta, o meio de transporte mais utilizado pelos indaiatubanos da época. Andei pelos costumeiros lugares e parei como sempre nos mesmos pontos, os quais despertavam a minha curiosidade de criança. Pegava sempre a descida da estação para ver o trem; depois ia até o pomar do hospital onde comia “os mal cheirosos” jataís; subia a Rua 9 de Julho para viver a grande aventura de passar sob o pontilhão, sempre tomando o máximo cuidado para não estar embaixo dele quando o trem passasse, pois poderia jogar água quente queimando tudo que estivesse embaixo. Era comum ainda dar uma volta no centro e mais no final da tarde passar na padaria do Denny para comprar pão para o jantar. Dona Idalina era quem sempre me atendia e quem anotava na caderneta o valor da despesa, que só era somada para ser paga no começo do mês seguinte. Comum também era passar pelo armazém do Bube que ficava na esquina da Rua de 24 de Maio com a Rua XV de Novembro, onde comprava algum alimento e sempre um doce de leite, gastos também anotados numa velha caderneta de capa cinza.

Foi num destes dias de repetidas pedaladas que algo diferente aconteceu. Meu pai, que sempre trabalhou de canteiro, chegava em casa por volta das dezessete horas, e depois de tomar banho, conversava um pouco com minha mãe enquanto esperava o jantar, depois jantávamos todos juntos meus pais e meus irmãos. Após o jantar, era a chegada a hora de conversar com os vizinhos : meu pai pegou um banquinho de madeira, um outro menor para minha mãe e foi, como de costume, até a calçada conversar com o Seu João Bersan, Seu Guido Curti e Seu Balabem. Minha mãe ficava um pouco mais de lado, juntando-se a rodinha das mulheres. O assunto corria solto noite adentro, até que o primeiro dos homens resolveu ir se deitar. Pronto, tudo acabado naquele dia, seguidamente todos se levantam e se desejavam boa noite. O trabalho mais difícil era recolher as crianças que ainda jogavam bola. Meu pai me chamou algumas vezes, mas tinha um jeito que ele chamava, com uma entonação diferente na voz, que eu sabia que era o último: se não obedecesse naquele momento, era “cinta” na certa. Entramos como de costume: minha mãe entrou primeiro para preparar o nosso banho de bacia, enquanto meu pai recolhia as coisas espalhadas pelo quintal e principalmente as três bicicletas que tínhamos em casa. Foi nessa hora que escutei meu pai chamando, usando aquela mesma entonação de voz que eu temia: “_ Roberto, onde você deixou a sua bicicleta?” Corri rápido até ele, tremendo como “vara verde” e confessei que não sabia onde ela poderia estar.

Meu pai ficou muito bravo, afinal a bicicleta era um bem importante e não podia sumir assim.

“_Venha comigo, sente-se na minha garupa e vamos procurar a sua bicicleta pela cidade...” E continuava: “_ Por onde você andou hoje?”

O lugar mais possível era o pontilhão, mas lá nos olhamos bem e nada vimos, mesmo porque o escuro da noite era muito forte; quase não havia lua.

Meu pai já estava ficando bravo quando subimos até a igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária e nada da bicicletinha... Subimos a Rua XV de Novembro com o meu pai já me prometendo vários castigos... Demos uma volta na praça central, e nada. Continuamos a subir a mesma rua, e, logo no meio do quarteirão, já pudemos avistar a minha bicicleta, encostada na porta, em frente a padaria.

Que alívio!

Peguei a bicicleta e junto com meu pai voltei para casa, onde meus irmãos curiosos me esperavam no portão. Meu pai não ficou muito bravo, entendeu que eu me distraí, trocando figurinhas com alguns amigos e esqueci a bicicleta, mas não escapei de ouvir um monte de recomendações para ser mais atento e etc. Fomos dormir logo depois, e meus irmãos ainda tiverem tempo de dar algumas risadinhas do meu susto.

Fico pensando se isso tivesse acontecido hoje e eu tivesse esquecido minha “bike” no mesmo lugar que ela ficou há quarenta anos atrás, será que ainda a encontraria estacionada no mesmo lugar depois de seis horas de abandono? Com certeza eu não a encontraria mais, provavelmente alguém já a teria levado para si, sem a menor culpa e sem muito receio.

No dia seguinte, que era um sábado, fui com meu pai buscar o pão na padaria e Dona Idalina com sua voz estridente falou: “_ Menino foi você quem esqueceu uma bicicleta aqui em frente ontem? Quando fechei a padaria, coloquei-a bem próximo da porta para não tomar chuva.”

Meu pai, sorrindo,agradeceu e explicou como achamos a bicicleta na noite anterior.

Na verdade, as pessoas também mudaram e com certeza ninguém iria tomar o cuidado de proteger minha bike sob a marquise de sua porta se fosse hoje. O espírito de cuidar das coisas dos outros, praticamente não existe mais, agora vivemos o tempo do “cada um por si”.

Atualmente Indaiatuba é uma das cidades com o maior índice de roubos da região, e não existe nenhum bem de maior valor que não precise de seguro.

Hoje é preciso segurar tudo que temos em casa, os veículos que nós usamos e até as nossas vidas.

Tudo é segurado, tanto que o número de lojas corretoras de seguro que temos hoje em nossa cidade, é a maior do que todas as lojas comerciais que existiam em Indaiatuba nos anos 60.

Este é o preço do progresso.

Mas fico feliz por lembrar que vivi em um lugar e em um tempo em que se podia esquecer uma bicicleta na rua, pois ninguém iria levá-la de mim...

 
 
 
* O texto de José Roberto Effore foi publicado graças à um projeto da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba denominado "Um Olhar Sobre Indaiatuba", que neste ano está em sua versão infantil. No final deste ano serão publicados os textos de crianças da rede de ensino particular e privada de nossa cidade, com o tema "INDAIATUBA". Professor, incentive a participação de seus alunos!

Um comentário:

  1. Que lindo!Ah! como posso entender isso,quando me mudei para essa cidade, quando morava bem diante do imenso pasto dos Bicudos ,onde havia uma estradinha de ferro era tudo verdejante,e minha filha morria de vergonha de mim de me ver com um balde pegando os maravilhosos adubos naturais dos cavalos e bois que ali pastavam.
    De ir buscar leite lá na fazenda...Um dia minha mãe que veio nos visitar me disse:Que pena Thais um dia isso vai estar repelto de casinhas,e eu mais que depressa respondi-Jamais mãe ,isso será Patrimônio da Humanidade.Santo Deus 7 anos longe daqui e quando retornei não reconheci o bairro que morei ,o Pau Prêto, a Praça da fonte foi engolida por predios belissimos,mas eu chorei.Não conseguia lembrar aonde estava a minha antiga casa, havia um alambrado separando a rua de uma via expressa que dá para a Prefeitura, e lá, acredite se quiserem ,tem um lago, e ele ficava lá longe.Mexeram até na natureza ,que sorte teve a sua bicicleta e sua memória querido Efore,como guardo saudades tuas,tomara que ainda se lembre de mim.Esse blog é uma gracinha,adoro Eliana,e ve-la com a carinha de bebê e ela ja adulta,não mudou nada ,só cresceu.Não sei o que aconteceu aqui mas estou que nem ela, não amei nem gostei dos prédios que estão aparecendo na linda Indaiatuba,deve ser terrível mesmo para os filhos desta terra ver este progresso desenfreado,isso não é bom.Amei essa história e sabendo que veio de você querido amigo.Postei como anonimo porque não sabia da outra forma mas segue meu email
    thaisreder@gmail.com

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