sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A vida em uma Ferrovia

texto organizado por Eliana Belo com as memórias de José Luiz Sanchez (maquinista da FEPASA)
colaboraram para a revisão e adequação do texto:
Coaraci Oliveira Pais de Camargo
César Sacco
Hélio Gazetta Filho
Luiz Carlos de Almeida Souza e
Ralph Mennucci Giesbrecht (1)

Na década de 1950, Itaici foi uma estação ferroviária de entroncamento (2) da Estrada de Ferro Sorocabana, numa época em que ainda esse meio de transporte era reconhecidamente importante e muito ativo. Meu pai veio para Indaiatuba justamente para trabalhar nela, transferido da estação de Embu Guaçu onde, por volta de 1954, as locomotivas a vapor foram definitivamente extintas. Inicialmente ele trabalhava com as caldeiras (3) , um dos componentes do sistema que fazia as marias-fumaça expelir aquela densa nuvem de vapor e fuligem por suas chaminés. Depois passou a trabalhar como truqueiro (4) , função que exerceu até se aposentar em 1968.


Estação Ferroviária de Itaici

Eu tinha 7 anos quando viemos para cá. Ficamos apenas durante um ano morando em Indaiatuba, na Vila Furlan e logo depois, em 1955, mudamos para Itaici, perto da estação onde ele também cumpria a mesma função. Ali poucas composições ferroviárias ainda eram propulsionadas por locomotivas a vapor, mas muitas manobras eram feitas com elas e por isso o trabalho dele era muito importante: estava relacionado com o próprio funcionamento das máquinas. Com meu pai ferroviário, crescendo em uma família imersa nesse assunto e nessa vida, logo cedo desenvolvi não só o interesse, mas uma verdadeira paixão por trens e nem me lembro quando, exatamente, resolvi também ser um ferroviário. Creio até que já nasci para ter minha vida em uma ferrovia.

Em Itaici existia um conceituado Centro de Formação em Transportes (CFT) (5) , que funcionava no próprio pátio da estação e que preparava novos técnicos para trabalhar na ferrovia como telegrafista. Ansiosamente esperei atingir a idade para ser admitido nessa escola, que era uma porta de entrada para um futuro seguro, um embrião para uma profissão sólida, que atraia obviamente não só a mim, mas muitos jovens da época. O curso era só para meninos, durava dois anos e era equivalente ao que hoje seriam as duas séries iniciais do segundo grau. Era composto com aulas do currículo comum, como matemática, português, história e geografia. Mas o que me interessava mesmo eram as aulas específicas: operação de rádio morse, telegrafia e noções de composição de cargas, ou seja, o planejamento de qual locomotiva servia para quais carros e vagões. Iniciei o curso em 1962 com 16 anos e terminei em 1964. Repeti um ano, quem repetisse dois, não poderia se formar. Dos mestres dessa época, lembro-me do professor José Fernandes e do professor João Domingues. Para freqüentar as aulas, todos os estudantes eram registrados como aprendizes e recebiam um determinado valor, uma espécie de bolsa-estudo que podia variar de acordo com o desempenho que tinham. Mas minha aprendizagem também foi enriquecida por outros profissionais, na época um pouco mais velhos, mas que também generosamente ensinavam o que sabiam. Entre eles estão Osvaldo Salvaterra, Benedito Guimarães, Ítalo Presta e Nelson Soliani, todos funcionários da extinta Sorocabana que por muitos anos prestaram serviços e que também tiveram, de uma forma e de outra, suas vidas trilhadas em ferrovias.

Itaici - aula para ferroviários
Crédito da imagem: Museu Ferroviário de Indaiatuba (FIEC)


Terminar o curso no CFT era apenas o fim do primeiro degrau. Todos ficávamos esperando o momento de poder ingressar definitivamente ao trabalho, que nos acenava um futuro seguro. Fiquei aguardando a abertura de novas vagas disposto, como tantos, a ir trabalhar em qualquer lugar, em qualquer outra estação. Durante essa espera que me pareceu tão longa, fiquei trabalhando em Indaiatuba. Fui funcionário da Yanmar e da Singer. Mas finalmente no dia 02 de setembro de 1968 tive minha carteira carimbada pela Estrada de Ferro Sorocabana e fui para Mairinque, trabalhar como ajudante de maquinista. Mas não disse “adeus” para Indaiatuba, nem tão pouco para Itaici, onde vivi minha meninice ao redor do pátio e das linhas em que queria trabalhar.

Em Mairinque trabalhei inicialmente como ajudante de maquinista até 1970, quando fui transferido para a Barra Funda na mesma função. Em 1972 , quando a Estrada de Ferro Sorocabana passou a ser FEPASA(6) sai de lá, mas ainda não foi a hora de voltar para Indaiatuba. Fui novamente para Mairinque, promovido como maquinista. Iria finalmente comandar uma locomotiva, as composições iriam caminhar sob o meu comando! Primeiro comecei como maquinista de manobras e depois passei a ser maquinista de cargas. Com a realização do sonho, sentia que a responsabilidade também aumentava...

Em 1982 fui transferido para Campinas, onde além de passar a ser maquinista de passageiros, tive a grata oportunidade de trabalhar também como monitor de novos aprendizes no Centro de Treinamento daquele município, da FEPASA. Foi um trabalho muito gratificante, uma oportunidade de dar, de certa forma, continuidade da minha vida ferroviária. Hoje, ao lembrar que aprendizes que foram meus estão sobre os trilhos, é como se uma parte de mim ainda estivesse lá. Com a criação da FEPASA, muitas mudanças aconteceram: alguns colegas foram removidos e a identidade da saudosa Sorocabana se perdeu. Particularmente, as pessoas com quem eu trabalhava na época tiveram a mesma impressão que eu tive: que o pessoal da Sorocabana era mais respeitado, ou melhor, eram reconhecidos pelo treinamento que tinham. Por isso, todos os funcionários da Sorocabana acabavam se destacando em todas as repartições da FEPASA.

Com a transferência para Campinas pude voltar para minha Indaiatuba, onde moro até hoje. Por motivos que não posso chamar de “coincidência” sempre procurei morar perto de onde pudesse ouvir o apito de um trem. Atualmente resido em uma chácara em Itaici, de onde ouço constantemente meus amigos maquinistas apitarem, não por motivos técnicos, mas para me dar saudade. E mesmo longe de um painel de condução, ainda sinto minha vida trilhar em uma ferrovia nesses momentos.

Aposentei-me em 1992, como Maquinista. Sempre amei minha profissão, sempre disse com orgulho que era um ferroviário, função que para mim representava – por incrível que possa ser – sentimentos aparentemente contraditórios: a liberdade e a segurança. Liberdade por poder andar por tantos lugares, por tantas estações, por tantas paradas e com tanta gente; por lembrar de vários trilhos, principalmente os que me levavam até Santos, destino aonde se chegava após passar por 34 túneis! Segurança por eu ter um emprego reconhecido, seguro, onde puder crescer e obter o sustento da minha família pelo meu próprio esforço e trabalho. E não foram poucas as horas extras! Mas de forma geral posso definir as condições de trabalho como satisfatórias, inclusive com uniforme. O único desconforto, mas que era um costume na época, era ter de levar a marmita para almoçar nos horários de folga nas paradas ou dentro das próprias locomotivas.

Olho para meu passado e lembro-me do meu pai, que muitas vezes colocava lenha para queimar na locomotiva para aquecer a água da caldeira e movimentar as composições. Nessas locomotivas a vapor - que foram as primeiras que manobrei - também tantas vezes coloquei água na caldeira, impulsionando seus movimentos como quem alimenta um filho. Depois da “maria-fumaça”, que andava em uma velocidade entre 50 e 60 quilômetros por hora, veio a locomotiva diesel-elétrica, que não dava tanto trabalho para o maquinista e seu auxiliar. Enquanto que na maria-fumaça o maquinista ajudava na manutenção da caldeira, controlava a pressão, movimentava as alavancas para frente e para trás e ficava atento ao tráfego e a carga, com a tecnologia diesel-elétrica tudo ficou mais fácil e mais rápido. Cheguei a locomover grandes composições puxadas por elas em uma velocidade de até 90 quilômetros por hora carregando areia, petróleo, bauxita e outros minérios, soja e outros grãos, principalmente até o porto de Santos. Infelizmente trabalhei muito pouco com carros de passageiros, mas tenho orgulho de poder ter sido reconhecido com um maquinista onde o passageiro podia comer com o garfo. (7)




Aos poucos o governo deixou de investir nas ferrovias. Lembro-me muito bem dos políticos que eram donos de frotas de caminhões e de ônibus bem na época da formação da FEPASA, que nenhum interesse tinham na manutenção ou crescimento do sistema ferroviário. Uma pena. O transporte ferroviário é mais seguro e constante. De tão constante, muita gente tem a infeliz certeza de que ao se jogar na frente de uma locomotiva é morte certa, uma vez que frear uma composição é algo praticamente impossível.

Tenho orgulho de ter tido minha vida trilhada nas ferrovias, de ter trabalhado no que gostava, de ter ensinado o que sabia para quem ainda está na ativa. Mas não é um orgulho de soberba, é um orgulho positivo, de satisfação, de sensação de que tudo valeu a pena. Tenho também saudade de tudo, do pessoal, das máquinas, do movimento, de olhar para trás e ver como os vagões e carros estavam se comportando nas curvas, nas manobras nas descidas e subidas, dos apitos e do ritmo que meu corpo, que se acostumou nessa vida como se fosse um embalo vital. E a cada vez que ouço um apito tenho, sobretudo, saudade do som ouvido por este – para sempre – maquinista, de dentro de sua cabine: tem-dem, tem-dem, tem-dem... da composição nos trilhos da minha vida... tem-dem, tem-dem, tem-dem...






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(1) Texto originalmente publicado no livro "Um Olhar sobre Indaiatuba 2"
(2) Estação de entroncamento é onde duas ou mais rotas se cruzam ou dela se iniciam, por isso podem ocorrer baldeações. As linhas podem ser de diferentes bitolas, podem ou não ser o tronco principal ou apenas ramais. No caso de Itaici, a estação estava entre Jundiaí e Itu e também era o início para o ramal até Piracicaba.
(3) Foguista era o nome da função de quem trabalhava com as caldeiras dos sistemas ferroviários.
(4) Truqueiro é o ferroviário que inspeciona e conserva os troles de sustentação dos vagões.
(5) Os antigos centros de formação de profissionais das ferrovias foram embriões para o futuro SENAI, onde até hoje muitos ferroviários atuam como instrutores. Inclusive o SENAI de Sorocaba tem como patrono o nome de um ferroviário da EFS – o Engenheiro Gaspar Ricardo Júnior.
(6) FEPASA – Ferrovia Paulista S/A foi criada em 1971 através de um decreto do governador Laudo Natel, que uniu 5 ferrovias em paulistas uma só. Assim, passaram a ser exclusivamente FEPASA: a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a Estrada de Ferro Araraquara S/A, a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, a Estrada de Ferro São Paulo e Minas e a Estrada de Ferro Sorocabana. Atualmente a antiga malha está concedida para a Ferroban administrada pela ALL – América Latina Logística
(7) “Comer com o garfo” era uma expressão usada para definir a suavidade de uma viagem, quando a composição trilhava sem solavancos, em uma cadência suavemente ritmada.
 
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4 comentários:

  1. Que lindo trabalho você fez e está fazendo com este blog.
    Garota de talento...
    Aliás, o BOISINHO COM MARCA É MEU, tá?

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  2. Zazá querida, obrigada por suas palavras sempre carinhosas, vindas de você sei que são sinceras. O "boisinho" já arrumou vários donos! (risos). Mas tenho certeza que é seu (mais risos). Abraços querida, fica com Deus.

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  3. Parabéns, Eliana. Esses informes pontuais sobre Indaiatuba serão de muito valor para nosso vídeo-documentário sobre ferrovias no Estado. Abraços!

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  4. Nossa eu cheguei a chorar.
    Cheguei a ouvir a locomotiva,cheguei a ouvir o apito do trem é quase que fantasmagórico,como puderam deixar acabar numa terra tão subdesenvolvida que é o Brasil,as estradas de ferro.Na Europa se viaja ela inteirinha dentro de um trem.Porque no Brasil é assim.Que pessoa linda,traçar a sua vida na imagem do pai,sua vida em torno da linha de trem,sair de Indaiatuba e retornar porque aqui ele foi embalado .Nunca pensei que houvesse uma escola,que maravilhoso,quantas oportunidades havia no passado,sonhos e projetos que dava para ser realizados,hoje tudo tão difícil.
    thaisreder2006@gmail.com

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